Quando soube, em 2005, que os compositores de marchinhas de carnaval Manoel Ferreira e Ruth Amaral haviam aparecido na televisão mais uma vez, a professora aposentada Oriede Gentil, então com 85 anos, teve o primeiro acesso de hipertensão da sua vida - desmaiou, na sala de casa, em Higienópolis, zona oeste de São Paulo. Ela se recuperou na mesma noite, mas o susto serviu para os familiares decidirem: a preocupação de Oriede teria de terminar. "Fazer justiça virou questão de honra", diz o genro, o médico Roberto Tassi. O desmaio foi o auge de um tormento que se desenrola há 30 anos, desde a morte do marido de Oriede, o educador Leopoldo Gentil Junior, em 4 de fevereiro de 1978. "Desde que o Léo morreu, o Manoel e a Ruth simplesmente omitem o nome dele em entrevistas para jornais, rádios e TV. É revoltante", diz a viúva, levantando os braços e o tom de voz. Tudo o que ela quer é que o marido seja reconhecido como co-autor de canções carnavalescas como "Marcha do barrigudinho" e "Transplante de Corintiano", imortalizadas na voz de Sílvio Santos. Depois de ler reportagem no Estado sobre o casal de compositores, a família Gentil decidiu tentar, finalmente, fazer justiça. Conseguiram: Leopoldo Gentil Junior é, realmente, co-autor das marchinhas. Quem confirma é a Sociedade Administradora de Direitos de Execução Musical do Brasil (Sadembra), que credita a autoria ao trio Manoel Ferreira, Ruth Amaral e Gentil Junior. "Mas o nome dele nunca é citado na imprensa. Temos tanto orgulho, mas todos duvidam da nossa palavra. É constrangedor", diz Carolina, uma das três filhas de Oriede e Leopoldo, segurando um troféu de "Marchinha campeã" do carnaval de 1969. O prêmio, em nome de Gentil Junior, é para a canção "Transplante de Corintiano". "Ele não tinha vaidade, não se importava com a mídia e compunha somente por distração, por isso não aparece tanto", diz outra das filhas, Silvia, com duas pastas de documentos em que o pai é citado como co-autor das marchinhas. Embora digam que não querem briga, os Gentil também contestam as versões de Manoel e Ruth a respeito de suas fontes de inspiração. Oriede diz que a idéia do "Transplante de Corintiano" - uma junção do jejum de títulos que o Corinthians vivia na década de 1960 com o primeiro transplante de coração da história, realizado em 1967 - foi de seu marido, e não de Manoel, como é alardeado. Em sua defesa, Manoel Ferreira afirma que os fatos que o inspiraram a compor as marchinhas são legítimos. "De maneira nenhuma eu me apropriaria de histórias do Gentil, inventaria ou omitiria seu nome. Ele foi meu amigo e, quando lembro, cito a co-autoria nas entrevistas", diz. "Mas, por distração, é possível que esqueça de citar seu nome às vezes." Entre as três filhas de Leopoldo e Oriede, é Carolina quem leva adiante o repertório de cerca de 40 canções do pai - sempre que pode, reúne a família para cantar. Para ela, uma música chamada "Noite de Natal" é especial. "É a mais triste. Ele cantava assim, para mim e minhas irmãs: ‘Três menininhas, de mãos pequeninas, não devem chorar’." Desta vez, porém, Carolina e Silvia não agüentaram. Uma, depois a outra, levantam das cadeiras e vão para a cozinha, atrás de um lenço para enxugar os olhos. Oriede não se abala. Observada pelo genro, que segura um aparelho de medir pressão, continua firme, sentada no sofá da sala.