Na Fazenda Campanaí, a 18,8 quilômetros da fronteira de Aral Moreira (MS) com a cidade paraguaia de Capitán Bado, 4 mil cabeças de gado continuam espalhadas no pasto e 8 mil tilápias, no lago artificial. São a parte visível de um esquema criminoso que continua intacto, apesar do esforço de policiais, procuradores e da Justiça Federal. As criações de gado e peixes são fruto direto do tráfico de drogas para o Brasil, em especial para o Rio. A fazenda - com pista de avião de 1 quilômetro, piscina e ampla casa - pertence a Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, preso na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS). A parte oculta desse esquema só é revelada esporadicamente. Como na apreensão pela Polícia Federal, em 10 de dezembro, de 20 toneladas de maconha, saídas do Paraguai em uma carreta com carvão. Ela seria distribuída entre traficantes de São Paulo, Rio e Minas, num "consórcio" capitaneado pelo grupo de Beira-Mar. Com o consórcio, os bandidos não só barateiam o preço pago aos produtores, como repartem o custo - e riscos - do transporte. A droga foi apreendida quando era descarregada, num sítio de Conceição das Alagoas (MG). Apesar de bem-sucedida, a operação representou uma gota d’água no oceano. Os traficantes brasileiros, Beira-Mar à frente, trazem para o País cerca de 80% das 12 mil toneladas anuais de maconha produzidas no Paraguai. Se dependesse da Justiça brasileira, a fazenda e os animais de Beira-Mar no Paraguai estariam confiscados. Em novembro, graças à Operação Fênix, realizada pela PF de Curitiba e Brasília com a Procuradoria da República, o seqüestro dos bens do traficante foi determinado pela 2ª Vara da Justiça Federal no Paraná. O pedido foi enviado ao Judiciário paraguaio, que não deu resposta oficial. Procurada pelo Estado, a Fiscalía General, o Ministério Público do Paraguai, não soube informar o que ocorreu com a solicitação. Filho assume patrimônio Assim como a Estância Campanaí com as cabeças de gado e tilápias, a estrutura montada por Fernandinho Beira-Mar para trazer maconha e cocaína para o Brasil sobreviveu à prisão do chefão, detido desde abril de 2001, e de 24 integrantes do bando, ocorrida em novembro, na Operação Fênix. A renovação foi rápida. Hoje a quadrilha é liderada por aquele a quem Beira-Mar chama de "filho loiro": Marcelo da Silva Leandro, o Marcelinho Niterói. Fernandinho fica por trás das operações, como um fiador, graças à sua "grife". "Beira-Mar já tem nome", diz, sob o compromisso de anonimato, um dos cinco procuradores federais do Paraná que assinaram a denúncia enviada à Justiça após a Fênix. "Consegue droga ‘em consignação’, mesmo sem dinheiro." O pior é que Beira-Mar nem precisa usar o "bom nome" na praça. Pela simples razão de que lhe sobra dinheiro. Nas 34 buscas realizadas na Fênix foram apreendidos US$ 134,4 mil e R$ 52 mil. Valores modestos, por exemplo, perto do que Beira-Mar e comparsas são acusados de movimentar num único processo que corre na 3ª Vara Federal de Campo Grande: R$ 12 milhões, em apenas dois anos. A PF não encontrou maiores pistas de onde Beira-Mar investiu a bolada do tráfico. Ainda que, na Fênix, tenha prendido pessoas importantes da quadrilha, como a mulher do chefão, Jaqueline de Moraes Costa, e o irmão dela, Ronaldo. Os dois chefiavam o grupo desde o desaparecimento, em junho, do advogado João José de Vasconcelos Kolling - ele é dado como morto, após ter sido flagrado dando um desfalque no "patrão". Mas a PF passou longe dos paraguaios da quadrilha. Entre eles estão Nestor Baez e Nelson Mendonza, o Tio Nelson. Segundo a denúncia da Fênix, eles repassam ao bando a cocaína recebida de Barrancominas, região colombiana onde Beira-Mar se escondeu nos anos 90, abrigado pelos narcoterroristas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A polícia tampouco prendeu o "filho loiro" de Beira-Mar, que, segundo a denúncia dos procuradores, era o "gerente financeiro da organização" até a Fênix lhe abrir o caminho para o comando. Marcelinho chegou a ser detido no Paraguai duas vezes, a última em julho, num carro com três comparsas, que levavam armas pesadas. O porte dessas armas lá é um ilícito mais leve que no Brasil, punido com multas. Marcelinho foi, então, entregue à PF, que o soltou, alegando que não existia mandado de prisão contra ele. Refugiou-se no Morro da Mangueira, Rio, de onde saiu antes da operação que destruiu um bunker do tráfico, em janeiro. Marcelinho acompanhava as andanças de Beira-Mar no Paraguai desde meados dos anos 90. O chefão refugiou-se em Capitán Bado - vizinha de Coronel Sapucaia (MS), apontada como a cidade mais violenta do Brasil na última edição do Mapa da Violência - em 1997, após escapar da carceragem do Departamento Estadual de Operações Especial (Deoesp), em Belo Horizonte. Aliás, escapar não é bem o termo. Beira-Mar saiu pela porta da frente. Amigo do peito Quem abrigou o chefão em Capitán Bado foi seu então fornecedor de maconha, João Morel, brasileiro radicado havia anos no Paraguai. Hospitaleiro, ofereceu-lhe a casa da amante, Terenzia. "Beira-Mar descobriu que a polícia, o juiz e o fiscal (promotor), todos eram baratos", afirma o ex-governador da Província de Amambay, Roberto Acevedo. "Ele trouxe os pretinhos que andavam com armas pesadas em caminhonetes, engravidavam as meninas, davam presentes e faziam festas." Beira-Mar descobriu também que o apetite dos traficantes locais era pequeno perto do seu. Só existia a venda de maconha, feita por um grupo de "bons companheiros": Morel e os filhos (Ramon e Manoel), Magno Rios, Lino Palácios, Quelká Sanches e o brasileiro Carlos Cabral, o Líder Cabral. "Com Beira-Mar começou o tráfico de cocaína pelo Paraguai. Ele passou a trazer a droga da Colômbia e outros o seguiram", diz Acevedo. Entre os seguidores estavam outros brasileiros, como Jarvis Pavão, Erineu Soligo e Luiz Carlos da Rocha - hoje donos de fazendas perto da Campanaí. Beira-Mar quis dominar o tráfico local de vez e deu início a uma guerra. A seu mando foram mortos João Morel, executado na Penitenciária Estadual de Mato Grosso do Sul, e os filhos. Também ordenou uma emboscada para matar Cabral. O bandido escapou, mas perdeu o filho de 3 anos, e jurou vingança. Pool de traficantes A concentração de traficantes na fronteira atraiu a atenção da PF. Em fins dos anos 90, agentes brasileiros e a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) do Paraguai fecharam o cerco ao chefão.Beira-Mar mudou-se para a selva colombiana, em 1999. Lá foi preso, em abril de 2001, nos domínios das Farc. Desde então, Beira-Mar já rodou por oito cadeias de vários Estados. O que não o impediu de continuar a tocar seus negócios - na maioria das vezes, usou celulares ou bilhetes entregues a visitas, os "telegramas". Graças aos grampos de telefonemas, a polícia descobriu detalhes da organização. "Eram dois grandes grupos independentes", diz a denúncia da Procuradoria. O primeiro era composto por Alexsandro Cardoso, o Tarta, já morto, e por Ubiratã Brescovit, o Boticário. Piloto, Brescovit cuidava do transporte e arranjava fazendas para o pouso dos dois aviões desse núcleo da quadrilha. O outro grupo, chefiado pela então estrela ascendente Marcelinho Niterói, tinha direito a um avião. Aos grupos de Tarta e Marcelinho cabia ainda outra incumbência. A compra da "vacina" - a lidocaína e cafeína usadas para "batizar" a cocaína, aumentando a quantidade para revenda.