‘Foi um equívoco criar o modelo de presídios federais’, diz especialista após fuga em Mossoró


Ex-diretora do Sistema Penitenciário do Rio avalia que prisões federais viraram um celeiro para as principais facções criminosas do País

Por Marcio Dolzan
Atualização:
Foto: Reprodução/Instagram/@jlemgruber
Entrevista comJulita LemgruberCoordenadora do CESeC

A fuga de dois detentos da penitenciária federal de Mossoró, o primeiro caso em quase duas décadas de existência do sistema, ainda não foi esclarecida, mas liga o sinal de alerta sobre a real segurança dessas instituições. Para a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o modelo de penitenciárias federais “foi um equívoco, que hoje é difícil de desfazer”.

Diretora-geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro no período de 1991 a 1994, Julita afirma que as unidades federais servem para os secretários de Segurança Pública dos Estados “exportarem seus problemas”. Ela diz que o modelo, além de desrespeitar a Lei de Execução Penal (LEP) por mandar o preso para locais distantes de suas famílias, serve como um verdadeiro celeiro para as principais facções criminosas do País. “Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar”, aponta.

Como avalia o modelo dos presídios federais?

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A primeira avaliação que se deve fazer é sobre a conveniência da criação dessas unidades federais. Foi um equívoco, que hoje é difícil você desfazer. Se tornou muito conveniente para os secretários de Segurança dos Estados exportarem para as unidades federais os seus problemas. Eu dirigi o sistema penitenciário no Rio, não havia as unidades federais, mas já naquela época alguns Estados intercambiavam presos. Sempre achei um absurdo. Cada sistema penitenciário precisa criar condições para lidar com seus problemas. É muito fácil exportar problemas.

Penitenciaria Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte Foto: Reprodução Google Earth

Como fica a relação das organizações criminosas?

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As unidades federais concentram hoje quase todos os presos mais perigosos de vários Estados. Ao longo dos anos, essas unidades federais se tornaram o celeiro das organizações criminosas. Foram nessas unidades que lideranças do Comando Vermelho e do PCC, ao longo de quase 20 anos, conseguiram criar vínculos locais para aumentar seus exércitos. Na verdade, essas unidades são um problema desde a sua fundação. É claro que se vendeu essa ideia de que são inexpugnáveis, de segurança máxima, mas essa fuga agora mostra que não há nenhuma unidade de segurança máxima se tiver corrupção e conivência com funcionários.

Por que as unidades federais se distanciam tanto da realidade dos demais presídios brasileiros, em geral muito precários?

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Porque são unidades que custam muito caro, que exigem uma quantidade de funcionários muito grande. Essa de Mossoró é impressionante. Se é verdade o que já foi noticiado, ela tem menos de 100 presos e quase 300 funcionários. São três funcionários por preso. É inaceitável uma fuga com três pessoas cuidando de cada preso, isso mostra que houve conivência numa dimensão absolutamente impressionante. Elas custam muito caro porque têm um número de funcionários muito grande, mas não existe essa ideia de que vai criar algo intransponível. Você não vai deixar um preso no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) durante 365 dias por ano, porque é ilegal, a legislação não permite. É óbvio que algum momento ele vai ter contato com outras pessoas. Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar.

Há uma crítica às penitenciárias federais pelo excesso de isolamento dos presos…

Esse é outro problema. A Lei de Execução Penal (LEP) diz que o preso deve cumprir pena próximo ao seu domicílio de origem, para que a família possa visitá-lo. A proximidade contribui para a posterior reintegração do preso com a sociedade. As estruturas locais têm de contribuir para a reintegração. Se eles estão longe, isso se torna um obstáculo.

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Isso contribuiu para a reincidência penitenciária, por exemplo?

Fizemos uma pesquisa sobre reincidência penitenciária há muitos anos, e ficou claro que quando os presos estão mais próximos de casa eles voltam a cometer novos crimes em menor proporção. Mas, agora você manda um preso do Rio para Mossoró ou para quaisquer dessas penitenciárias federais, que ficam muito longe. Os únicos presos que recebem visita são os que têm boa estrutura financeira em seus locais de origem. A família não vai sair do Rio para ir a Porto Velho, por exemplo, de ônibus. Ela vai de avião, e isso não é barato. Só os presos com estrutura financeira local muito estável vão conseguir. Isso é um absurdo. Se você considerar o que consta na LEP, uma legislação de 1984, vai ver que ela é ignorada praticamente na totalidade. No capítulo sobre os direitos dos presos, é uma vergonha (o que não é cumprido). O Brasil não cumpre sua própria legislação. A lei diz que o preso é obrigado ao trabalho - não que ele pode trabalhar; ele tem que trabalhar. Mas, o Estado não oferece condições de trabalho. A lei diz que se o preso não tem ensino fundamental completo, a unidade deve prover, mas ela não provê. Quando se criou as penitenciárias federais, se deu as costas para a lei.

Essas penitenciárias abrigam importantes chefes do tráfico, e como tal ficam na mira das maiores facções do crime para operações de resgate. O quanto isso aumenta as exigências por parte dos órgãos de Justiça?

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O que é um preso perigoso? É um preso violento ou um preso que potencialmente pode comprar sua fuga. Unidades de segurança máxima não são só as federais, no Rio tem Bangu 1, que também é segurança máxima. Bangu 1 tem 48 vagas. É claro que o Rio tem mais de 48 problemas. Só que é muito fácil um preso dar entrada nos sistema e o administrador penitenciário dizer que não tem como, aí manda para uma unidade federal. As administrações precisam aprender a lidar com seus problemas.

Há algum modelo no mundo que tenha se mostrado à prova de fugas?

Você tem algumas prisões americanas em que é muito difícil fugir, porque tem que vencer tantos obstáculos, que teria que subornar uma quantidade muito grande de funcionários. Por aqui, o sistema penitenciário é recheado de corrupção. Se não houvesse tanta corrupção, não haveria tantos celulares nos presídios. Se fizer uma visita no sistema penitenciário do Rio hoje, você encontraria talvez 300 celulares. Se recolhesse todos, daqui a três meses vai encontrar um número igual ou maior. A corrupção faz parte do cotidiano do sistema penitenciário do Brasil. E, até agora, parecia que o sistema penitenciário federal era imune à corrupção, mas está se vendo que não é.

A fuga de dois detentos da penitenciária federal de Mossoró, o primeiro caso em quase duas décadas de existência do sistema, ainda não foi esclarecida, mas liga o sinal de alerta sobre a real segurança dessas instituições. Para a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o modelo de penitenciárias federais “foi um equívoco, que hoje é difícil de desfazer”.

Diretora-geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro no período de 1991 a 1994, Julita afirma que as unidades federais servem para os secretários de Segurança Pública dos Estados “exportarem seus problemas”. Ela diz que o modelo, além de desrespeitar a Lei de Execução Penal (LEP) por mandar o preso para locais distantes de suas famílias, serve como um verdadeiro celeiro para as principais facções criminosas do País. “Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar”, aponta.

Como avalia o modelo dos presídios federais?

A primeira avaliação que se deve fazer é sobre a conveniência da criação dessas unidades federais. Foi um equívoco, que hoje é difícil você desfazer. Se tornou muito conveniente para os secretários de Segurança dos Estados exportarem para as unidades federais os seus problemas. Eu dirigi o sistema penitenciário no Rio, não havia as unidades federais, mas já naquela época alguns Estados intercambiavam presos. Sempre achei um absurdo. Cada sistema penitenciário precisa criar condições para lidar com seus problemas. É muito fácil exportar problemas.

Penitenciaria Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte Foto: Reprodução Google Earth

Como fica a relação das organizações criminosas?

As unidades federais concentram hoje quase todos os presos mais perigosos de vários Estados. Ao longo dos anos, essas unidades federais se tornaram o celeiro das organizações criminosas. Foram nessas unidades que lideranças do Comando Vermelho e do PCC, ao longo de quase 20 anos, conseguiram criar vínculos locais para aumentar seus exércitos. Na verdade, essas unidades são um problema desde a sua fundação. É claro que se vendeu essa ideia de que são inexpugnáveis, de segurança máxima, mas essa fuga agora mostra que não há nenhuma unidade de segurança máxima se tiver corrupção e conivência com funcionários.

Por que as unidades federais se distanciam tanto da realidade dos demais presídios brasileiros, em geral muito precários?

Porque são unidades que custam muito caro, que exigem uma quantidade de funcionários muito grande. Essa de Mossoró é impressionante. Se é verdade o que já foi noticiado, ela tem menos de 100 presos e quase 300 funcionários. São três funcionários por preso. É inaceitável uma fuga com três pessoas cuidando de cada preso, isso mostra que houve conivência numa dimensão absolutamente impressionante. Elas custam muito caro porque têm um número de funcionários muito grande, mas não existe essa ideia de que vai criar algo intransponível. Você não vai deixar um preso no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) durante 365 dias por ano, porque é ilegal, a legislação não permite. É óbvio que algum momento ele vai ter contato com outras pessoas. Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar.

Há uma crítica às penitenciárias federais pelo excesso de isolamento dos presos…

Esse é outro problema. A Lei de Execução Penal (LEP) diz que o preso deve cumprir pena próximo ao seu domicílio de origem, para que a família possa visitá-lo. A proximidade contribui para a posterior reintegração do preso com a sociedade. As estruturas locais têm de contribuir para a reintegração. Se eles estão longe, isso se torna um obstáculo.

Isso contribuiu para a reincidência penitenciária, por exemplo?

Fizemos uma pesquisa sobre reincidência penitenciária há muitos anos, e ficou claro que quando os presos estão mais próximos de casa eles voltam a cometer novos crimes em menor proporção. Mas, agora você manda um preso do Rio para Mossoró ou para quaisquer dessas penitenciárias federais, que ficam muito longe. Os únicos presos que recebem visita são os que têm boa estrutura financeira em seus locais de origem. A família não vai sair do Rio para ir a Porto Velho, por exemplo, de ônibus. Ela vai de avião, e isso não é barato. Só os presos com estrutura financeira local muito estável vão conseguir. Isso é um absurdo. Se você considerar o que consta na LEP, uma legislação de 1984, vai ver que ela é ignorada praticamente na totalidade. No capítulo sobre os direitos dos presos, é uma vergonha (o que não é cumprido). O Brasil não cumpre sua própria legislação. A lei diz que o preso é obrigado ao trabalho - não que ele pode trabalhar; ele tem que trabalhar. Mas, o Estado não oferece condições de trabalho. A lei diz que se o preso não tem ensino fundamental completo, a unidade deve prover, mas ela não provê. Quando se criou as penitenciárias federais, se deu as costas para a lei.

Essas penitenciárias abrigam importantes chefes do tráfico, e como tal ficam na mira das maiores facções do crime para operações de resgate. O quanto isso aumenta as exigências por parte dos órgãos de Justiça?

O que é um preso perigoso? É um preso violento ou um preso que potencialmente pode comprar sua fuga. Unidades de segurança máxima não são só as federais, no Rio tem Bangu 1, que também é segurança máxima. Bangu 1 tem 48 vagas. É claro que o Rio tem mais de 48 problemas. Só que é muito fácil um preso dar entrada nos sistema e o administrador penitenciário dizer que não tem como, aí manda para uma unidade federal. As administrações precisam aprender a lidar com seus problemas.

Há algum modelo no mundo que tenha se mostrado à prova de fugas?

Você tem algumas prisões americanas em que é muito difícil fugir, porque tem que vencer tantos obstáculos, que teria que subornar uma quantidade muito grande de funcionários. Por aqui, o sistema penitenciário é recheado de corrupção. Se não houvesse tanta corrupção, não haveria tantos celulares nos presídios. Se fizer uma visita no sistema penitenciário do Rio hoje, você encontraria talvez 300 celulares. Se recolhesse todos, daqui a três meses vai encontrar um número igual ou maior. A corrupção faz parte do cotidiano do sistema penitenciário do Brasil. E, até agora, parecia que o sistema penitenciário federal era imune à corrupção, mas está se vendo que não é.

A fuga de dois detentos da penitenciária federal de Mossoró, o primeiro caso em quase duas décadas de existência do sistema, ainda não foi esclarecida, mas liga o sinal de alerta sobre a real segurança dessas instituições. Para a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o modelo de penitenciárias federais “foi um equívoco, que hoje é difícil de desfazer”.

Diretora-geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro no período de 1991 a 1994, Julita afirma que as unidades federais servem para os secretários de Segurança Pública dos Estados “exportarem seus problemas”. Ela diz que o modelo, além de desrespeitar a Lei de Execução Penal (LEP) por mandar o preso para locais distantes de suas famílias, serve como um verdadeiro celeiro para as principais facções criminosas do País. “Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar”, aponta.

Como avalia o modelo dos presídios federais?

A primeira avaliação que se deve fazer é sobre a conveniência da criação dessas unidades federais. Foi um equívoco, que hoje é difícil você desfazer. Se tornou muito conveniente para os secretários de Segurança dos Estados exportarem para as unidades federais os seus problemas. Eu dirigi o sistema penitenciário no Rio, não havia as unidades federais, mas já naquela época alguns Estados intercambiavam presos. Sempre achei um absurdo. Cada sistema penitenciário precisa criar condições para lidar com seus problemas. É muito fácil exportar problemas.

Penitenciaria Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte Foto: Reprodução Google Earth

Como fica a relação das organizações criminosas?

As unidades federais concentram hoje quase todos os presos mais perigosos de vários Estados. Ao longo dos anos, essas unidades federais se tornaram o celeiro das organizações criminosas. Foram nessas unidades que lideranças do Comando Vermelho e do PCC, ao longo de quase 20 anos, conseguiram criar vínculos locais para aumentar seus exércitos. Na verdade, essas unidades são um problema desde a sua fundação. É claro que se vendeu essa ideia de que são inexpugnáveis, de segurança máxima, mas essa fuga agora mostra que não há nenhuma unidade de segurança máxima se tiver corrupção e conivência com funcionários.

Por que as unidades federais se distanciam tanto da realidade dos demais presídios brasileiros, em geral muito precários?

Porque são unidades que custam muito caro, que exigem uma quantidade de funcionários muito grande. Essa de Mossoró é impressionante. Se é verdade o que já foi noticiado, ela tem menos de 100 presos e quase 300 funcionários. São três funcionários por preso. É inaceitável uma fuga com três pessoas cuidando de cada preso, isso mostra que houve conivência numa dimensão absolutamente impressionante. Elas custam muito caro porque têm um número de funcionários muito grande, mas não existe essa ideia de que vai criar algo intransponível. Você não vai deixar um preso no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) durante 365 dias por ano, porque é ilegal, a legislação não permite. É óbvio que algum momento ele vai ter contato com outras pessoas. Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar.

Há uma crítica às penitenciárias federais pelo excesso de isolamento dos presos…

Esse é outro problema. A Lei de Execução Penal (LEP) diz que o preso deve cumprir pena próximo ao seu domicílio de origem, para que a família possa visitá-lo. A proximidade contribui para a posterior reintegração do preso com a sociedade. As estruturas locais têm de contribuir para a reintegração. Se eles estão longe, isso se torna um obstáculo.

Isso contribuiu para a reincidência penitenciária, por exemplo?

Fizemos uma pesquisa sobre reincidência penitenciária há muitos anos, e ficou claro que quando os presos estão mais próximos de casa eles voltam a cometer novos crimes em menor proporção. Mas, agora você manda um preso do Rio para Mossoró ou para quaisquer dessas penitenciárias federais, que ficam muito longe. Os únicos presos que recebem visita são os que têm boa estrutura financeira em seus locais de origem. A família não vai sair do Rio para ir a Porto Velho, por exemplo, de ônibus. Ela vai de avião, e isso não é barato. Só os presos com estrutura financeira local muito estável vão conseguir. Isso é um absurdo. Se você considerar o que consta na LEP, uma legislação de 1984, vai ver que ela é ignorada praticamente na totalidade. No capítulo sobre os direitos dos presos, é uma vergonha (o que não é cumprido). O Brasil não cumpre sua própria legislação. A lei diz que o preso é obrigado ao trabalho - não que ele pode trabalhar; ele tem que trabalhar. Mas, o Estado não oferece condições de trabalho. A lei diz que se o preso não tem ensino fundamental completo, a unidade deve prover, mas ela não provê. Quando se criou as penitenciárias federais, se deu as costas para a lei.

Essas penitenciárias abrigam importantes chefes do tráfico, e como tal ficam na mira das maiores facções do crime para operações de resgate. O quanto isso aumenta as exigências por parte dos órgãos de Justiça?

O que é um preso perigoso? É um preso violento ou um preso que potencialmente pode comprar sua fuga. Unidades de segurança máxima não são só as federais, no Rio tem Bangu 1, que também é segurança máxima. Bangu 1 tem 48 vagas. É claro que o Rio tem mais de 48 problemas. Só que é muito fácil um preso dar entrada nos sistema e o administrador penitenciário dizer que não tem como, aí manda para uma unidade federal. As administrações precisam aprender a lidar com seus problemas.

Há algum modelo no mundo que tenha se mostrado à prova de fugas?

Você tem algumas prisões americanas em que é muito difícil fugir, porque tem que vencer tantos obstáculos, que teria que subornar uma quantidade muito grande de funcionários. Por aqui, o sistema penitenciário é recheado de corrupção. Se não houvesse tanta corrupção, não haveria tantos celulares nos presídios. Se fizer uma visita no sistema penitenciário do Rio hoje, você encontraria talvez 300 celulares. Se recolhesse todos, daqui a três meses vai encontrar um número igual ou maior. A corrupção faz parte do cotidiano do sistema penitenciário do Brasil. E, até agora, parecia que o sistema penitenciário federal era imune à corrupção, mas está se vendo que não é.

A fuga de dois detentos da penitenciária federal de Mossoró, o primeiro caso em quase duas décadas de existência do sistema, ainda não foi esclarecida, mas liga o sinal de alerta sobre a real segurança dessas instituições. Para a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o modelo de penitenciárias federais “foi um equívoco, que hoje é difícil de desfazer”.

Diretora-geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro no período de 1991 a 1994, Julita afirma que as unidades federais servem para os secretários de Segurança Pública dos Estados “exportarem seus problemas”. Ela diz que o modelo, além de desrespeitar a Lei de Execução Penal (LEP) por mandar o preso para locais distantes de suas famílias, serve como um verdadeiro celeiro para as principais facções criminosas do País. “Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar”, aponta.

Como avalia o modelo dos presídios federais?

A primeira avaliação que se deve fazer é sobre a conveniência da criação dessas unidades federais. Foi um equívoco, que hoje é difícil você desfazer. Se tornou muito conveniente para os secretários de Segurança dos Estados exportarem para as unidades federais os seus problemas. Eu dirigi o sistema penitenciário no Rio, não havia as unidades federais, mas já naquela época alguns Estados intercambiavam presos. Sempre achei um absurdo. Cada sistema penitenciário precisa criar condições para lidar com seus problemas. É muito fácil exportar problemas.

Penitenciaria Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte Foto: Reprodução Google Earth

Como fica a relação das organizações criminosas?

As unidades federais concentram hoje quase todos os presos mais perigosos de vários Estados. Ao longo dos anos, essas unidades federais se tornaram o celeiro das organizações criminosas. Foram nessas unidades que lideranças do Comando Vermelho e do PCC, ao longo de quase 20 anos, conseguiram criar vínculos locais para aumentar seus exércitos. Na verdade, essas unidades são um problema desde a sua fundação. É claro que se vendeu essa ideia de que são inexpugnáveis, de segurança máxima, mas essa fuga agora mostra que não há nenhuma unidade de segurança máxima se tiver corrupção e conivência com funcionários.

Por que as unidades federais se distanciam tanto da realidade dos demais presídios brasileiros, em geral muito precários?

Porque são unidades que custam muito caro, que exigem uma quantidade de funcionários muito grande. Essa de Mossoró é impressionante. Se é verdade o que já foi noticiado, ela tem menos de 100 presos e quase 300 funcionários. São três funcionários por preso. É inaceitável uma fuga com três pessoas cuidando de cada preso, isso mostra que houve conivência numa dimensão absolutamente impressionante. Elas custam muito caro porque têm um número de funcionários muito grande, mas não existe essa ideia de que vai criar algo intransponível. Você não vai deixar um preso no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) durante 365 dias por ano, porque é ilegal, a legislação não permite. É óbvio que algum momento ele vai ter contato com outras pessoas. Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar.

Há uma crítica às penitenciárias federais pelo excesso de isolamento dos presos…

Esse é outro problema. A Lei de Execução Penal (LEP) diz que o preso deve cumprir pena próximo ao seu domicílio de origem, para que a família possa visitá-lo. A proximidade contribui para a posterior reintegração do preso com a sociedade. As estruturas locais têm de contribuir para a reintegração. Se eles estão longe, isso se torna um obstáculo.

Isso contribuiu para a reincidência penitenciária, por exemplo?

Fizemos uma pesquisa sobre reincidência penitenciária há muitos anos, e ficou claro que quando os presos estão mais próximos de casa eles voltam a cometer novos crimes em menor proporção. Mas, agora você manda um preso do Rio para Mossoró ou para quaisquer dessas penitenciárias federais, que ficam muito longe. Os únicos presos que recebem visita são os que têm boa estrutura financeira em seus locais de origem. A família não vai sair do Rio para ir a Porto Velho, por exemplo, de ônibus. Ela vai de avião, e isso não é barato. Só os presos com estrutura financeira local muito estável vão conseguir. Isso é um absurdo. Se você considerar o que consta na LEP, uma legislação de 1984, vai ver que ela é ignorada praticamente na totalidade. No capítulo sobre os direitos dos presos, é uma vergonha (o que não é cumprido). O Brasil não cumpre sua própria legislação. A lei diz que o preso é obrigado ao trabalho - não que ele pode trabalhar; ele tem que trabalhar. Mas, o Estado não oferece condições de trabalho. A lei diz que se o preso não tem ensino fundamental completo, a unidade deve prover, mas ela não provê. Quando se criou as penitenciárias federais, se deu as costas para a lei.

Essas penitenciárias abrigam importantes chefes do tráfico, e como tal ficam na mira das maiores facções do crime para operações de resgate. O quanto isso aumenta as exigências por parte dos órgãos de Justiça?

O que é um preso perigoso? É um preso violento ou um preso que potencialmente pode comprar sua fuga. Unidades de segurança máxima não são só as federais, no Rio tem Bangu 1, que também é segurança máxima. Bangu 1 tem 48 vagas. É claro que o Rio tem mais de 48 problemas. Só que é muito fácil um preso dar entrada nos sistema e o administrador penitenciário dizer que não tem como, aí manda para uma unidade federal. As administrações precisam aprender a lidar com seus problemas.

Há algum modelo no mundo que tenha se mostrado à prova de fugas?

Você tem algumas prisões americanas em que é muito difícil fugir, porque tem que vencer tantos obstáculos, que teria que subornar uma quantidade muito grande de funcionários. Por aqui, o sistema penitenciário é recheado de corrupção. Se não houvesse tanta corrupção, não haveria tantos celulares nos presídios. Se fizer uma visita no sistema penitenciário do Rio hoje, você encontraria talvez 300 celulares. Se recolhesse todos, daqui a três meses vai encontrar um número igual ou maior. A corrupção faz parte do cotidiano do sistema penitenciário do Brasil. E, até agora, parecia que o sistema penitenciário federal era imune à corrupção, mas está se vendo que não é.

A fuga de dois detentos da penitenciária federal de Mossoró, o primeiro caso em quase duas décadas de existência do sistema, ainda não foi esclarecida, mas liga o sinal de alerta sobre a real segurança dessas instituições. Para a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o modelo de penitenciárias federais “foi um equívoco, que hoje é difícil de desfazer”.

Diretora-geral do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro no período de 1991 a 1994, Julita afirma que as unidades federais servem para os secretários de Segurança Pública dos Estados “exportarem seus problemas”. Ela diz que o modelo, além de desrespeitar a Lei de Execução Penal (LEP) por mandar o preso para locais distantes de suas famílias, serve como um verdadeiro celeiro para as principais facções criminosas do País. “Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar”, aponta.

Como avalia o modelo dos presídios federais?

A primeira avaliação que se deve fazer é sobre a conveniência da criação dessas unidades federais. Foi um equívoco, que hoje é difícil você desfazer. Se tornou muito conveniente para os secretários de Segurança dos Estados exportarem para as unidades federais os seus problemas. Eu dirigi o sistema penitenciário no Rio, não havia as unidades federais, mas já naquela época alguns Estados intercambiavam presos. Sempre achei um absurdo. Cada sistema penitenciário precisa criar condições para lidar com seus problemas. É muito fácil exportar problemas.

Penitenciaria Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte Foto: Reprodução Google Earth

Como fica a relação das organizações criminosas?

As unidades federais concentram hoje quase todos os presos mais perigosos de vários Estados. Ao longo dos anos, essas unidades federais se tornaram o celeiro das organizações criminosas. Foram nessas unidades que lideranças do Comando Vermelho e do PCC, ao longo de quase 20 anos, conseguiram criar vínculos locais para aumentar seus exércitos. Na verdade, essas unidades são um problema desde a sua fundação. É claro que se vendeu essa ideia de que são inexpugnáveis, de segurança máxima, mas essa fuga agora mostra que não há nenhuma unidade de segurança máxima se tiver corrupção e conivência com funcionários.

Por que as unidades federais se distanciam tanto da realidade dos demais presídios brasileiros, em geral muito precários?

Porque são unidades que custam muito caro, que exigem uma quantidade de funcionários muito grande. Essa de Mossoró é impressionante. Se é verdade o que já foi noticiado, ela tem menos de 100 presos e quase 300 funcionários. São três funcionários por preso. É inaceitável uma fuga com três pessoas cuidando de cada preso, isso mostra que houve conivência numa dimensão absolutamente impressionante. Elas custam muito caro porque têm um número de funcionários muito grande, mas não existe essa ideia de que vai criar algo intransponível. Você não vai deixar um preso no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) durante 365 dias por ano, porque é ilegal, a legislação não permite. É óbvio que algum momento ele vai ter contato com outras pessoas. Se há uma contribuição inegável das unidades federais é que as lideranças de facções conseguiram se agrupar.

Há uma crítica às penitenciárias federais pelo excesso de isolamento dos presos…

Esse é outro problema. A Lei de Execução Penal (LEP) diz que o preso deve cumprir pena próximo ao seu domicílio de origem, para que a família possa visitá-lo. A proximidade contribui para a posterior reintegração do preso com a sociedade. As estruturas locais têm de contribuir para a reintegração. Se eles estão longe, isso se torna um obstáculo.

Isso contribuiu para a reincidência penitenciária, por exemplo?

Fizemos uma pesquisa sobre reincidência penitenciária há muitos anos, e ficou claro que quando os presos estão mais próximos de casa eles voltam a cometer novos crimes em menor proporção. Mas, agora você manda um preso do Rio para Mossoró ou para quaisquer dessas penitenciárias federais, que ficam muito longe. Os únicos presos que recebem visita são os que têm boa estrutura financeira em seus locais de origem. A família não vai sair do Rio para ir a Porto Velho, por exemplo, de ônibus. Ela vai de avião, e isso não é barato. Só os presos com estrutura financeira local muito estável vão conseguir. Isso é um absurdo. Se você considerar o que consta na LEP, uma legislação de 1984, vai ver que ela é ignorada praticamente na totalidade. No capítulo sobre os direitos dos presos, é uma vergonha (o que não é cumprido). O Brasil não cumpre sua própria legislação. A lei diz que o preso é obrigado ao trabalho - não que ele pode trabalhar; ele tem que trabalhar. Mas, o Estado não oferece condições de trabalho. A lei diz que se o preso não tem ensino fundamental completo, a unidade deve prover, mas ela não provê. Quando se criou as penitenciárias federais, se deu as costas para a lei.

Essas penitenciárias abrigam importantes chefes do tráfico, e como tal ficam na mira das maiores facções do crime para operações de resgate. O quanto isso aumenta as exigências por parte dos órgãos de Justiça?

O que é um preso perigoso? É um preso violento ou um preso que potencialmente pode comprar sua fuga. Unidades de segurança máxima não são só as federais, no Rio tem Bangu 1, que também é segurança máxima. Bangu 1 tem 48 vagas. É claro que o Rio tem mais de 48 problemas. Só que é muito fácil um preso dar entrada nos sistema e o administrador penitenciário dizer que não tem como, aí manda para uma unidade federal. As administrações precisam aprender a lidar com seus problemas.

Há algum modelo no mundo que tenha se mostrado à prova de fugas?

Você tem algumas prisões americanas em que é muito difícil fugir, porque tem que vencer tantos obstáculos, que teria que subornar uma quantidade muito grande de funcionários. Por aqui, o sistema penitenciário é recheado de corrupção. Se não houvesse tanta corrupção, não haveria tantos celulares nos presídios. Se fizer uma visita no sistema penitenciário do Rio hoje, você encontraria talvez 300 celulares. Se recolhesse todos, daqui a três meses vai encontrar um número igual ou maior. A corrupção faz parte do cotidiano do sistema penitenciário do Brasil. E, até agora, parecia que o sistema penitenciário federal era imune à corrupção, mas está se vendo que não é.

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