Valdeci de Souza Boareto é autor do livro Comportamento que te salva - A vida sob o olhar de um gari que só quer respeito, que conta como é trabalhar nas ruas do Rio de Janeiro em uma das profissões mais desvalorizadas do Brasil.
Nem em seus sonhos ele, que é negro e tem 55 anos, poderia imaginar dar uma palestra na prestigiosa Universidade Harvard (EUA), como aconteceu no início do mês, durante a Brazil Conference.
O trabalhador da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) citou os três principais temas do livro: “a inteligência emocional, a resiliência e a empatia”.
Um dos casos apresentados no livro aconteceu durante a limpeza do Viaduto do Méier, na capital fluminense.
“Eu estava lavando tudo bonitinho e todo mundo feliz gritando ‘Comlurb, Comlurb’, (...) Só que a felicidade durou muito pouco. No momento que tava tudo limpinho, veio uma pessoa, até bem vestida, (...) que urinou no chão. E olhava pra mim enquanto fazia isso, me dando uma angústia”, relembra, em conversa com o Estadão.
O autor conta que os moradores e comerciantes que viram a cena se irritaram, sugerindo que jogasse o jato de água no infrator. Mas Boareto pensou melhor. “Tive de respirar e pensar: esse jato de água é muito forte. Posso derrubar ou até cegá-lo”, considerou, constatando que “as duas famílias (dele e do homem) iriam sofrer”.
Boareto pediu que o motorista desligasse o caminhão da água e se dirigiu ao homem. “Eu disse: ‘sou seu amigo, rapaz. Eu estou fazendo isso aqui para a sociedade, para você também. Isso que você está fazendo não é normal, conta para mim o que tá acontecendo?’”.
O gari chegou perto do autor das ofensas e o abraçou. O homem começou a chorar, conta o escritor. “Independente do que você faça, você sempre vai encontrar, de alguma forma, alguém que vai urinar naquilo que você esteja limpando com tanto amor e carinho”, diz.
Desde pequeno, Boarete conviveu numa cidade não tão maravilhosa assim. Ele acredita repetiu o ano letivo porque a escola era vista como local para conseguir alimentação não como local de estudo. Sem a merenda, diversas vezes não conseguia alimentação na casa onde morava com a mãe e outros quatro irmãos.
Uma das alternativas era a “xepa”, frutas, legumes e verduras que eram vendidos ou eram descartados na Central de Abastecimento (Ceasa). Na adolescência, aprendeu a retirar a parte podre ou machucada das frutas e comer o restante. Por isso, recebeu o apelido de “xepeiro”.
Presença negra em espaços de poder amplia pontos de vista
A ida para a Brazil Conference representou várias “primeiras vezes” na vida de Boareto. Foi a primeira vez que ele viajou de avião e saiu do País. Antes só havia saído do Estado do Rio em uma breve visita a Minas Gerais.
Dentre os palestrantes do evento na universidade americana, estavam Edilene Lobo, primeira mulher negra a integrar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE); a líder indígena Lutana Kokama; Ernesto Batista Mané Júnior, uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo na área de política e governança; Reginaldo Lima, morador do Complexo do Alemão que aprendeu a ler no lixo e se tornou historiador, e Arthur Abrantes, que se formou em Harvard.
Agora, segundo ele, já surgiram propostas para lançar o livro em outras línguas, como francês e alemão, e de palestras em outros locais.
Além disso, no próximo dia 15 de maio, Boareto lança seu segundo livro. Em uma versão ilustrada, ele se transforma no “garizinho toddy” para ensinar as crianças o que fazer com o lixo para cuidar melhor do planeta, além de ter uma atitude de respeito com o próximo. O objetivo é levar a nova publicação para todas as escolas do Rio e, quem sabe, do Brasil.
Questionado sobre o que diria para a criança que repetiu de ano na escolar e era chamada de “xepeiro”, Boareto respondeu. “Continue acreditando que os sonhos podem se tornar realidade. Acredite porque foi o que me levou a ser esse cidadão de hoje, funcionário público com uma vida bem estabilizada e que teve sucesso com esse livro’”.
“A importância das pessoas negras ocuparem espaços de poder e/ou visibilidade não diz respeito somente à representatividade, mas ao fato de que adicionamos diferentes pontos de vista na construção de políticas, acordos e teorias”, afirma Marta Celestino, pesquisadora e CEO da Ebony English, empresa de tecnologia educacional que alia o ensino do inglês à cultura negra.
“Esse movimento diz respeito à desconstrução da ideia de supremacia branca imposta pelo racismo estrutural. É a normalização da diversidade étnico racial”, completa.
*Este conteúdo foi produzido em parceria com a Ebony English, empresa de tecnologia educacional que alia o ensino do inglês à cultura negra.