A paisagem parece uma pincelada descuidada na tela branca da janela. Bato a cabeça no vidro e desperto. Nem sei se ainda é sonho. Mas, de relance, vejo um par de tênis pendurado nos fios de alta-tensão, uma antena parabólica torta apontada para uma constelação desconhecida, uma bola de capotão murcha no acostamento da estrada, um boi magro ruminando velhas mágoas, uma velha na cadeira de balanço bordando o futuro.
Crianças de uniforme escolar tentando atravessar a pista. Galhos retorcidos. Um vendedor de chocolate e de carregadores de celular. A carcaça de um carro abandonado. Dentro de uma casa simples, a luz fria da televisão ligada na novela. Um punhado de feno. Uma manjedoura vazia. Uma placa de aluga-se. Uma criança com a camisa do Corinthians. Frango frito no quilômetro quinze. No muro, leio que Jesus está voltando.
O motorista passa em cima de um buraco. Melhor que não tente ultrapassar o carro da frente. Uma bebê abre o berreiro. A mãe se levanta e começa a ninar a criança no corredor do ônibus. Um homem ronca. Alguém está há mais de 20 minutos no banheiro. Sim, o motorista ultrapassou o carro da frente invadindo, perigosamente, a outra pista. Fecho os olhos como se o fato de não enxergar me livrasse da dor ou da tragédia.
Nada aconteceu. Segue a viagem. São muitas horas ainda. Quase um dia e meio. O mundo inteiro cabe em uma viagem de ônibus.
Do meu lado um sujeito parece discutir por WhatsApp. Os dedos tocam a tela do celular em ritmo de treta. Ou está brigando ou fazendo sexo virtual. Tento ler uma palavra ou outra. Mas aquilo que consigo identificar serviria para as minhas duas hipóteses.
Penso em abrir um livro, mas tem tanta coisa acontecendo ao meu redor que seria improvável ficar focado por mais de três parágrafos.
O ônibus faz uma parada. Hora de esticar as pernas. Lavar o rosto. Um banho? Não dá. A água desce em pingos. Molho o cabelo e só. O ralo está entupido. Cabelos de um outro viajante. Troco de roupa e termino com um tubo de desodorante. Se eu me apressar, ainda dá tempo de comer um lanche.
A coxinha é triste. Parece desolada. Melhor um misto quente e um suco de laranja. Peço com o presunto bem torrado. Não sinto o gosto de nada. Melhor assim. Lanchonete de beira de estrada só funciona no cinema. Não fumo. E não fumar me atrapalha. Um cachorro deita perto de mim.
Hora de seguir viagem. Sou um dos primeiros a subir. Do fundo, vejo quase todo mundo que está nessa comigo. Não tenho pudor em colocá-los em prateleiras simplistas e marcá-los como “amigáveis”, “emocionalmente instáveis”, “serial killer”, “alcoólatra anônimo” , “casa comigo”... Não é legal, mas acho que todo mundo faz algo parecido. Em qual prateleira estarão me colocando agora? “Esquisitão”, aposto.
A paisagem noturna exige mais imaginação. Acho que vi um gato, uma empilhadeira desativada, um fantasma pedindo carona, uma segunda lua, uma geladeira enferrujada, um boteco vazio, ou melhor, um quadro do Edward Hopper, uma mulher que acho que conheço de outra vida...
O motorista mete a mão na buzina, com força. Diminui a velocidade, mas não chega a parar. Sabe-se lá o que ele viu (ou não viu). Vou fechar os olhos mesmo sem nenhuma possibilidade de dormir. Vou fingir que não tem nada acontecendo. Não tenho medo de avião. Viajar de ônibus, ao contrário, me põe em um estado de atenção.
No ônibus, a viagem também acontece dentro da gente. Às vezes, me perco um pouquinho antes de chegar ao destino.
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