NOVA YORK- As consequências do massacre hediondo de 16 civis afegãos nas mãos de um soldado americano estacionado em Kandahar, no domingo passado, continuam a se multiplicar. É cedo para saber se o gesto isolado de um atirador de elite vai ser visto como uma aberração - com possível escalada de violência e retaliação - ou vai se tornar só mais um símbolo de fracasso de uma ocupação estrangeira no Afeganistão.
No dia 17 de fevereiro, um personagem improvável apareceu no telejornal da PBS, a rede pública americana: um militar da ativa, recém-chegado do Afeganistão, acusava seus comandantes de mentir. Minto. O tenente-coronel Dan Davis usou, de fato, o verbo "enganar" para descrever o que considera bravatas do comando militar, ou seja, as afirmações de que o Exército dos Estados Unidos está derrotando os taleban. Davis passou um ano lá, fazendo mais de 200 entrevistas, e chegou a conclusão oposta: os taleban estão longe de serem derrotados.
Mentir é um verbo muito carregado, especialmente quando se trata da guerra mais longa da história americana, iniciada em 2001. A que começou como a "guerra justa", para contrapor a sensatez ocidental moderna à barbárie medieval dos taleban anfitriões da Al-Qaeda. A mesma guerra que, ao ser relegada pela aventura no Iraque, começou, a atrair comparações com outra, a que os Estados Unidos perderam, no Vietnã.
Davis, ao justificar sua decisão de entregar um relatório secreto ao Congresso sobre a guerra no Afeganistão e ainda divulgar uma versão censurada ao público, afirmou: "Eu simplesmente perdi a confiança no alto comando para policiar a si mesmo". O relatório levou o jornalista e acadêmico Marvin Kalb a denunciar um fosso de credibilidade sobre o Afeganistão. E, aos 71 anos, Kalb entende de guerra e de credibilidade. Ele foi o último repórter a ser contratado na rede CBS pelo lendário Edward Murrow, vivido por David Strathairn no filme Boa Noite e Boa Sorte. Como um bom membro do grupo dos "Murrow Boys", ele constou da lista de inimigos de Richard Nixon e construiu um vasto currículo de correspondente internacional. Kalb e sua filha, a também jornalista Deborah Kalb, acabam de escrever o livro Haunting Legacy, Vietnam and the American Presidency from Ford to Obama (Herança persistente, o Vietnã e a presidência americana de Ford a Obama), Brookings Institution Press, 300 páginas.
Os autores argumentam que, desde a humilhação dos Estados Unidos no "paisinho" descrito por Lyndon Johnson com um palavreado um tanto chulo para um suplemento dominical, todos os presidentes americanos decidiram evitar e começar guerras sob a névoa traumática do Vietnã.
Marvin Kalb conversou com o Aliás de seu escritório na Brookings Institution, de Washington. Ele acha que a lição do Vietnã continua atual. O poder de infligir derrotas militares não deve iludir os americanos sobre a possibilidade de ganhar uma guerra. E o fato de que os soldados lutando hoje não foram alistados, entraram nas Forcas Armadas por vontade própria, diz Kalb, não é desculpa para não haver um debate nacional sobre o que os Estados Unidos conseguiram nestes quase 11 anos de presença no Afeganistão.
Por que o sr. considerou o relatório secreto do tenente-coronel Dan Davis um ponto de virada para a credibilidade da ocupação americana no Afeganistão?
Devo lembrar que o relatório saiu em duas partes, uma divulgada, a outra secreta, enviada ao Congresso. Fui informado de que a diferença relevante entre as duas versões é a omissão de nomes, figuras públicas que podem sofrer embaraço. Mas a mensagem era a mesma, com dois pontos básicos. Primeiro, Davis, apoiado em duas passagens como combatente no Afeganistão, concluiu que os esforços militares americanos estavam fracassando. O segundo argumento dele era que o comando militar, incluindo o general David Petraeus, não contava a verdade para o Congresso ou o público.
Qual a solução para a falta de credibilidade?
Nos anos 60, o senador William Fulbright presidiu uma série de audiências no Comitê de Relações Exteriores que foram transmitidas pela TV. Tenho a profunda convicção de que chegou a hora de tomar uma iniciativa semelhante sobre o Afeganistão. Um efeito das audiências sobre o Vietnã foi transformar a oposição à guerra, que antes era considerada antipatriótica, numa postura de dissidência legítima e respeitável. É preciso ver generais e líderes civis num debate em audiências abertas. O público deve ter acesso a seu testemunho. Afinal, a situação mudou no Afeganistão e os americanos não ouviram essa narrativa.
Uma diferença do período do Vietnã é a extinção do serviço militar obrigatório. O exército formado de voluntários não tende a ser ignorado pelo resto da população?
Esse é um dos aspectos mais importantes do problema. Se o tenente-coronel Davis está correto em seu relatório, há muitos soldados descontentes servindo na guerra. Se ele está certo, essa questão tem que ser explorada. Especialmente em meio a uma campanha eleitoral. É natural que o presidente Obama não queira se deter sobre a guerra, mas à medida que passamos de uma calamidade a outra, do episódio da queima do Alcorão ao massacre em Kandahar, o presidente deve satisfações ao público.
Por que a ferida do Vietnã continua aberta?
Quando os EUA se envolvem numa guerra longa, o povo americano inevitavelmente se torna impaciente com o custo em vítimas e em dinheiro público. O Vietnã provou pela primeira vez que os Estados Unidos podiam ganhar batalhas militares e perder uma guerra. Essa é a questão chave com que nos confrontamos agora. Os comandantes militares americanos dizem que obtiveram vitórias em Helman, em Kandahar. Não tenho por que duvidar deles. Mas me parece que ainda continuamos a perder a guerra no Afeganistão. O Vietnã nos ensinou isso e precisamos impedir que a história se repita. Se Obama explicar melhor a guerra ao público, seu compromisso com as soluções para a ocupação deve se transformar.
Seu livro fala da tensão entre a estratégia militar cirúrgica, contra a insurgência, e a chamada conquista de ‘corações e mentes’, o esforço de construir apoio entre as populações locais.
De novo, o Vietnã: os americanos mataram incontáveis vietcongues, o sucesso de uma guerra não se mede pelo número de baixas contra o adversário. Se a ocupação americana não engaja os afegãos, se eles não se consideram protegidos pelas tropas, de que adianta tanto esforço? E um crime como o massacre de domingo passado sugere aos afegãos que as tropas estrangeiras estão lá para proteger os próprios interesses. Ainda vamos saber as consequências desse massacre.
Quanto o 11 de Setembro ainda continua impactando sobre o pensamento dos militares americanos?
Os atentados tiveram um efeito profundo. Desde o ataque de Pearl Harbor, 60 anos antes, o país não se sentia tão vulnerável. A invasão do Afeganistão, como sabemos, foi a reação imediata ao 11 de Setembro, era vista como a "guerra justa". De certa forma, ela começou como uma catarse para punir os autores do atentado. Mas o 11 de Setembro também deixou claro que tínhamos uma nova vulnerabilidade e nos despertou para dúvidas sobre nosso poder. Os militares, surpresos com a facilidade do ataque, começaram a debater se o papel americano era combater o terrorismo no mundo.
O sr. pertenceu a uma equipe lendária de jornalistas cujo trabalho se fez sentir no curso do macarthismo e da Guerra do Vietnã. Como as mudanças no consumo de notícias afetam o grau de informação sobre uma guerra?
Você tocou num ponto crucial que afeta o público em qualquer parte do mundo. Nós vivemos com os benefícios e as limitações da internet. No meu tempo de correspondente internacional, o espectador da CBS contava comigo para o informar sobre o que acontecia num determinado país onde eu estivesse trabalhando. Hoje ele pode acessar um volume enorme de informação. E, quando se trata de um local distante de sua área de familiaridade, o público precisa navegar nesse mar de informação não filtrada, frequentemente contaminada por agendas políticas e interesses de propaganda. Não costumamos desconfiar, a distância, da informação não conferida por fontes independentes. O público, cada vez mais, procura a notícia que confirme suas posições ideológicas.
O mesmo senador Fulbright que o sr. citou presidiu, em 1971, a famosa audiência em que o veterano do Vietnã, futuro senador e candidato a presidente John Kerry, perguntou: ‘Como você pede a um homem para ser o último a morrer por um erro?’
O tenente-coronel Davis fez a mesma pergunta sobre o Afeganistão. É imoral pedir a soldados para morrer por um erro. A pergunta, nesse caso, questiona a validade política e deixa em aberto o dilema moral. É hora de discutir essa guerra em público.
ENTREVISTA: Marvin Kalb
PROFESSOR EMÉRITO DA HARVARD KENNEDY SCHOOL E AUTOR DE HAUNTING LEGACY: VIETNAM AND THE AMERICAN PRESIDENCY FROM FORD TO OBAMA