NATAL - "Vai fazer um ano, dia 14 de janeiro de 2018, que degolaram meu marido". Jonas Victor de Barros Neto, que cumpria pena no Pavilhão 4 da Penitenciária Estadual de Alcaçuz, havia completado 39 anos poucos dias antes de ser brutalmente assassinado na maior chacina já registrada no Sistema Penitenciário do Rio Grande do Norte. Naquele dia de janeiro e por outros 14 seguintes, o duelo entre membros de facções rivais - Primeiro Comando da Capital (PCC) e Sindicato do Crime - deixou um complexo prisional destruído, saldo oficial de 26 detentos mortos - a maioria por degola - e expôs a fragilidade da Segurança Pública potiguar.
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Aos 50 anos, a dona de casa Maria José de Souza, moradora da periferia de Natal, fala do companheiro com o qual dividiu 14 anos de vida com emoção. Relembrar como ele foi morto e, principalmente, como a família descobriu o homicídio, desperta um turbilhão de emoções. "Meu filho, eu reconheci meu marido pela televisão. O corpo dele em cima da fossa, sem cabeça. Ele tinha uma tatuagem no braço que todos nós reconhecemos. Eu recebi fotos no celular. Foi a coisa mais horrível da minha vida. Eu enterrei meu marido sem cabeça. Até hoje, não sabemos onde está a cabeça dele. Ninguém diz nada, ninguém faz nada por nós", diz enquanto as lágrimas percorrem o rosto marcado pelo sofrimento.
O assassinato de Jonas Victor e dos outros 25 colegas de prisão, poderá cair na vala comum dos processos criminais arquivados no Brasil. O inquérito policial que investiga o caso está longe de ser concluído, se isso ocorrer de maneira positiva. "Desde que aconteceu a matança, foi criada uma comissão de delegados para investigar o massacre. Nós tivemos uma boa evolução ao longo deste ano", afirma Marcos Vinícius, delegado responsável pela comissão. Fotografias, filmagens e mensagens compõem o arcabouço probatório analisado pelos agentes de Polícia Civil que trabalham no processo.
Rebelião em maior presídio do Rio Grande do Norte
Apesar de detalhar "evolução", Marcos Vinícius afirma "que há entraves para que o inquérito seja mais rápido". Um deles é a falta de efetivo e equipamentos específicos para investigações complexas como a da matança de Alcaçuz. "Existiam entre 400 e 500 presos nos pavilhões envolvidos na confusão. Separamos, de imediato, cinco líderes do PCC que confirmaram a autoria dos crimes. Achamos armas, revólveres e artefatos usados nos assassinatos. Indiciamos outros 111 presos, mas o flagrante foi relaxado por falta de provas. É complicado. Tanto é que vai completar um ano e não conseguimos concluir", lamenta o delegado.
Até hoje, de acordo com Marcos Vinícius, 68 pessoas - entre presos, agentes públicos de segurança e familiares - foram ouvidos no processo. Composto por cinco volumes, 900 páginas integram o "quebra-cabeças" da investigação mais complexa até agora presidida pelo delegado que também atua na Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). "É muito difícil chegar a todos os envolvidos. Se não chegarmos a nada, recomendaremos o arquivamento. É um grande quebra-cabeças, é um processo muito complexo", declara.
Quase um ano após o massacre, o Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) silencia sobre o caso. Hoje, dos quatro pavilhões de Alcaçuz, dois estão desocupados. Cerca de dois mil presos dividem celas dos dois pavilhões em funcionamento na unidade, além do de segurança máxima da Penitenciária Estadual Rogério Coutinho Madruga, chamada de Pavilhão 5. O número de presos atual corresponde a mais que o dobro da capacidade nominal do complexo e varia a cada dia. Desde o início do ano, a Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania (Sejuc/RN) fechou oito Centros de Detenção Provisória (CDP) em todo o Rio Grande do Norte e mais de 500 presos foram levados à Alcaçuz, que deveria receber somente presos sentenciados.
A Sejuc não reconhece como super lotação e afirma que irá distribuir os presos nos demais pavilhões logo que os 571 novos agentes assumirem os postos de trabalho. Além disso, diz que o número de presos varia diariamente, em decorrência de serem provisórios. Com a extinção dos CDPs, o efetivo de agentes penitenciários foi reforçado em Alcaçuz e no Rogério Coutinho Madruga.
DepoimentoMaria José de Souza, de 50 anos, viúva do detento Jonas Victor de Barros Neto
"Conheci meu marido quando fui visitar meu irmão que estava preso. Vi aquele homem sozinho, sem ninguém e fui ajudá-lo. Acabamos nos apaixonando. Ele foi preso a primeira vez no final dos anos 90, por homicídio. Foi sentenciado a 30 anos. Cumpriu 10 anos e 11 meses em regime fechado até sair na progressão. Ele era uma pessoa boa, mas não tinha ninguém por ele na cadeia. Ele pagou cadeia e saiu em condicional. Mas tinha medo de morrer no albergue e deixou de ir dormir lá. Foi quando ficou como foragido por seis anos. Um dia, ele foi pego com drogas e preso novamente. Desceu para Alcaçuz. Ele ia sair em junho desse ano, com a progressão da pena. Eu sabia que ele não iria mais voltar. Ficamos cinco anos sem nos ver. Sofri muito. Mas depois eu fui visitá-lo e tudo ficou bem. E ele me dizia que não iria sobrar nada de Alcaçuz, que ela ficaria rente com o chão.
Ele teria que partir para a guerra ou morrer. Eu tenho certeza que aquela chacina foi facilitada e que ainda tem preso morto, enterrado lá dentro. Cadê a cabeça do meu marido? Eu recebi o corpo dele podre, cheio de bicho, não pude nem reconhecer. O corpo dele ficou no chão, no relento do Itep por oito dias. Não recebi nenhuma ajuda do Estado. Só o caixão que a Prefeitura deu. Eu enterrei ele sem a cabeça. O povo nos mostrava fotos no computador para que a gente reconhecesse. Meu Deus! A minha dor eu entrego a Deus. Mas eu queria que o Estado fizesse alguma coisa. Faz quase um ano e até hoje eu não tenho o atestado de óbito do meu marido. Meu Deus! Meu Deus!".