‘Itália precisa de profissionais estrangeiros’, diz embaixador em Roma sobre migração de brasileiros


Em 2024, completam-se 150 anos da imigração italiana no Brasil; data é vista como novo impulso no relacionamento entre os dois países

Por Edison Veiga (Especial para o Estadão)
Atualização:
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Entrevista comRenato Mosca de SouzaEmbaixador do Brasil na Itália

Seja pela visibilidade do cargo, seja pela importância que Itália tem para o Brasil — e vice-versa —, é possível julgar que a carreira do diplomata Renato Mosca de Souza, de 58 anos, está em seu auge. Desde setembro, ele é o embaixador brasileiro em Roma.

Em 2024, um momento histórico singular: 150 anos da imigração italiana no Brasil. O presidente da Itália, Sergio Mattarella, está no Brasil esta semana. Após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília, na segunda-feira, 15, vai visitar São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e o Rio Grande do Sul.

Como brasileiro em Roma, Souza atua como interlocutor diante de um governo comandado pela premiê Giorgia Meloni, vista como ascendente líder da direita europeia.

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Com a peculiar habilidade dos diplomatas, o embaixador diz encarar com naturalidade o papel — e, no mês passado, mediou um encontro bilateral entre Lula e Meloni, costurado por ele meses antes.

Antes do posto em Roma, Souza destacou-se no Itamaraty por funções como a chefia do cerimonial da então presidente Dilma Rousseff, missões permanentes em Washington, Cidade do México, Caracas, Vancouver e na sede da FAO, o braço para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas.

Em Roma, ele vive com a mulher, Luciana, no Palácio Pamphili, edifício histórico do século 17 que, desde 1920, é a sede da Embaixada Brasileira no país.

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Escadarias da Praça da Espanha, no centro de Roma; Itália e Brasil estão reforçando as relações bilaterais. Foto: Filippo Monteforte/AFP

Na espaçosa e confortável biblioteca contígua ao seu quarto, o embaixador lê os jornais e, sempre conectado, informa-se acerca do Brasil, da Europa e do resto do mundo.

Sobre a crescente demanda de brasileiros que desejam o passaporte europeu, ele afirma ver uma necessidade da economia italiana de mão de obra estrangeira.

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Diz também atuar para facilitar os trâmites de acesso à cidadania e à residência no país. “Não faz sentido bloquear o acesso de estrangeiros. A economia italiana precisa desses profissionais”, acrescenta.

Leia os principais trechos da entrevista de Renato Mosca de Souza ao Estadão:

Em 2024, celebra-se o sesquicentenário da imigração italiana no Brasil. O senhor abriu as solenidades aí na Itália, como embaixador. Como se sente neste posto em tal momento histórico? O fato de o senhor também ter antepassados italianos pesa de alguma forma?

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De fato, abrimos 2024 com comemorações nessa moldura, o sesquicentenário da chegada do primeiro grupo de imigrantes italianos no Brasil, em 21 de fevereiro de 1874. A data é importante porque motiva uma retomada, um novo impulso no nosso relacionamento. É algo que aproxima nossos países na medida em que há 35 milhões de descendentes de italianos no Brasil, quase um milhão com passaporte italiano. Estamos promovendo uma retomada de relações bilaterais após alguns anos de letargia. Nesse contexto, a origem italiana da minha família é um elemento adicional que me motiva na reconstrução dessa relação.

A ‘italianidade’ está muito presente no Brasil, sobretudo no Sul e no Sudeste, o que faz com que a Itália seja vista com simpatia por boa parte do povo brasileiro. Daí de Roma, nota uma reciprocidade? Italianos também sentem apreço especial porque, em algum momento, antepassados da família se mudaram para o Brasil?

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Os brasileiros nutrem especial afeição pela Itália e pelos italianos. Milhões de famílias têm parentes na Itália. Além das afinidades, as pessoas admiram a cultura, a língua, os produtos. Fazer turismo na Itália muitas vezes representa a viagem da vida, inesquecível. Além disso, a influência italiana na formação da sociedade e da cultura brasileiras tem sido imensa. Somos parecidos no comportamento, nos valores, povos criativos, empreendedores. Na Itália, acontece o mesmo: os italianos admiram o Brasil, a música, o futebol, as riquezas e a diversidade do nosso País. Não é pequeno o número de italianos que vêm para o Brasil e decide começar uma nova vida.

Como estão sendo as celebrações pelos 150 da imigração? O que já aconteceu e o que está por vir?

Em 21 de fevereiro organizamos um grande jantar que reuniu autoridades governamentais, empresários e representantes do mundo acadêmico e cultural, italianos e brasileiros. Não foi mero evento social, mas uma oportunidade de conectar e reconectar pessoas, buscar oportunidades de negócios, de cooperação bilateral e de iniciativas conjuntas. Na área cultural, por exemplo, com o apoio do Itamaraty, promovemos apresentações de Fafá de Belém e André Mehmari, da cantora amazonense Karine Aguiar, do violonista Iuri Bittar, da cantora Cristina Renzetti e musicistas italianos de primeira linha, para citar apenas alguns. Tem sido uma intensa programação cultural, mas igualmente iniciativas políticas, econômicas e acadêmicas.

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A influência italiana na formação da sociedade e da cultura brasileiras tem sido imensa, somos parecidos no comportamento, nos valores, somos povos criativos, empreendedores.

Ainda sobre imigração italiana… Há um movimento de brasileiros descendentes de italianos que requerem a cidadania italiana e, em muitos casos, passam a viver na Itália ou em outros países europeus. Como interpreta esse movimento?

Este movimento é linear. Há no Brasil quase um milhão de brasileiros com passaporte italiano, milhares na fila para obtenção de cidadania. Sempre houve estudantes e profissionais que escolhem a Itália para viver um período ou decidem estabelecer-se definitivamente no país, mas este contingente ainda está abaixo do que já foi no passado recente, antes da pandemia.

Sempre converso nas universidades italianas, de Roma, Bolonha, Siena, Nápoles, e todas são sempre muito receptivas aos estudantes, professores e pesquisadores brasileiros. O mercado de trabalho na Itália é amplo e demanda mão de obra qualificada em todos os setores, e sabemos que os brasileiros são qualificados, dedicados e proativos. Mas devo ressaltar, no entanto, que há muitas barreiras, como a burocracia e mesmo os custos de vida, que ainda dificultam maior mobilidade. Por essa razão, estamos trabalhando para facilitar o acesso dos brasileiros que escolhem este caminho.

Lula condecorou o presidente da Itália, Sergio Mattarella, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração brasileira atribuída a cidadãos estrangeiros. Foto: Wilton Junior/Estadão

O Parlamento italiano tem buscado, nos últimos anos, restringir esse direito, colocando limites na quantidade de gerações ou mesmo buscando balizar com outras regras, como o vínculo com o país ou o conhecimento da língua italiana. Como o senhor avalia isso? Há riscos de a Itália parar de conceder cidadania a descendentes?

Há muita polêmica sobre imigração na Europa, e a Itália não é uma exceção. De fato, às vezes se ventilam propostas para limitar acesso de estrangeiros, de reconhecimento de cidadania, mas esta é uma visão sem conexão com a realidade. Os dados demográficos italianos estão encolhendo, apesar da chegada de muitos imigrantes. O mercado de trabalho demanda profissionais em número maior que a oferta interna.

Vou lhe dar um dado concreto: em 2013, 800 mil crianças entraram no sistema educacional. Em 2023, foram 385 mil crianças, menos da metade. É uma tendência, um inverno demográfico. Portanto, não faz sentido bloquear o acesso de estrangeiros. A economia italiana precisa desses profissionais. No que diz respeito ao reconhecimento de ítalo-descendentes, o direito está assentado na Constituição. Claro que sempre se pode mudar, mas não é uma medida de fácil aprovação. O Brasil é apenas um dos muitos países que acolheram milhões de imigrantes italianos. As comunidades italianas no mundo são um ‘asset’ diplomático extraordinário.

Além dos 150 anos da imigração, há uma efeméride importante: 80 anos dos pracinhas brasileiros lutando para liberar a Itália na Segunda Guerra. O senhor esteve recentemente em Monte Castello. Como percebeu essa lembrança brasileira por lá?

Sim, já estive três ou quatro vezes em dez meses de gestão na região da Linha Gótica (região no norte da Itália que ficou conhecida por concentrar a defesa nazifascista na Segunda Guerra). Foi minha primeira viagem, na primeira semana de Roma. Estamos ainda neste ano iniciando a celebração dos 80 anos. Os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira chegaram na Itália em julho de 1944 e lutaram entre setembro desse ano e maio de 1945.

Teremos os primeiros eventos em setembro em localidades como Massarosa e Camaiore. Foram campanhas decisivas para combater e expulsar as forças nazistas do território italiano. Foram duas batalhas fracassadas no fim de 1944, antes da tomada de Monte Castello em março de 1945. Os italianos dessas pequenas localidades são gratos aos brasileiros pelo esforço de guerra e libertação da Itália do jugo autoritário e comemoram todo ano esses momentos paradigmáticos. Lembram que nossos soldados eram solidários com a população, ofereciam roupas e alimentos quando havia pobreza e fome na Itália.

A interlocução com o governo italiano é excelente, amistosa, produtiva, projetada no futuro

Nesse contexto, o soldado brasileiro é visto pelo italiano como herói?

Sem dúvida, a memória do heroísmo brasileiro ainda está presente nessas comunidades. O Brasil foi o único país latino-americano a destacar tropas para lutar na Segunda Guerra. Hoje em dia, já não são muitos que viveram esse momento, mas o sentimento continua vivo. Recentemente, fui abordado por uma senhora que me contou que o primeiro chocolate que comera na vida, aos sete anos de idade, foi-lhe oferecido por um pracinha brasileiro. Não há testemunho mais comovente dessa aliança que historicamente une nossos povos.

O presidente Lula, no mês passado, foi recebido com honras de chefe de Estado pela primeira-ministra italiana Giorgia Meloni. Havia temor de que esse encontro não ocorresse? Como foram as costuras de bastidores para que ocorresse? Chegou a ser noticiado que ‘incompatibilidades de agenda’ inviabilizariam o encontro…

Agradeço a pergunta, porque este é um tema que tenho satisfação em comentar. O encontro que o presidente Lula manteve com a presidente do Conselho de Ministros, Giorgia Meloni, na Puglia, por ocasião da cúpula do G-7, não foi o primeiro. Ele a visitou em junho de 2023, em Roma e teve uma reunião ‘tête-à-tête’ (presencial), como dizemos na diplomacia. Há poucos registros da dinâmica do encontro, eles falaram a sós. Posso assegurar que, desta feita, convidado pela primeira-ministra, o presidente Lula retornou à Itália e foi extremamente bem-recebido. A reunião foi cordial e produtiva, os mandatários coincidiram em temas fundamentais da atualidade, como transição energética, reforma da governança global e luta contra a fome e a pobreza.

É uma simplificação rotular ambos como se estivessem em campos opostos, não é verdade. Nunca houve receio de que o encontro não acontecesse, estava agendado desde o início dos preparativos da visita. Eu estava em Borgo Egnazia e digo mais, o presidente reiterou-lhe o convite para a reunião do G-20, em novembro no Rio de Janeiro. Meloni não só confirmou a presença como manifestou interesse de aproveitar a viagem para visita oficial ao Brasil. Serão três encontros em pouco mais de um ano.

Estar em um país comandado pela direita e representar outro país comandado pela esquerda, ainda que moderada, dificulta o seu trabalho como embaixador? Como contornar essas questões, em tempos de polarização política tão acirrada?

Somos governos maduros, responsáveis e comprometidos antes de mais nada com o desenvolvimento e o bem-estar de nossos povos. Não caímos nessas ciladas que dividem o mundo. Nossa relação bilateral é histórica. A tradição da diplomacia brasileira é por construir pontes. Nosso objetivo maior é continuarmos unidos, até porque há um potencial enorme a ser explorado em todos os setores. E posso afirmar, sem falsa modéstia, que tenho contribuído muito nesse sentido nesses dez meses.

De forma geral, como avalia este momento da relação bilateral Brasil-Itália?

Além do trabalho consistente que temos realizado para a reativação dos mecanismos de diálogo político, econômico-comercial, militar, científico e tecnológico, os contatos diplomáticos de alto nível têm-se intensificado. As duas visitas do presidente Lula no último ano e a visita de Estado do presidente Sergio Mattarella esta semana são demonstrações inequívocas desse ânimo de retomada de uma relação bilateral de resultados e de intensificação de parcerias. No caso do mandatário italiano, trata-se da primeira viagem de um chefe de Estado italiano ao Brasil desde 2000.

Na visita, foram assinados acordos para a conversão de carteiras de habilitação, assunto de muito interesse e utilidade para a comunidade brasileira na Itália, e memorandos de entendimento nos campos da ciência e tecnologia, agricultura, energia renovável, turismo e cooperação na produção de azeite de oliva. Para o segundo semestre, ainda estão previstas as viagens ao Brasil do ministro dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação Internacional, Antonio Tajani, acompanhado de missão empresarial, e da presidente do Conselho de Ministros, Giorgia Meloni, para participar da cúpula do G-20.

Normalmente, um embaixador brasileiro fica cerca de quatro anos em cada posto. Quais marcas o senhor pretende deixar?

Costumo dizer que acordo todas as manhãs e penso o que vou fazer no dia para melhorar a vida do povo brasileiro. O diplomata precisa entender o mundo que o cerca e estar preparado a identificar oportunidades para o país. Isto tem a ver com atração de investimentos, aumento do intercâmbio comercial, difusão da cultura, cooperação educacional e científica. Meus planos estão sempre em sintonia com esse objetivo. A diplomacia é a expressão no exterior de um projeto de país.

E quais seus próximos passos na carreira? O que planeja para o futuro?

É importante planejar na vida diplomática, mas é preciso, sobretudo, conviver com alto grau de imprevisibilidade. Planejo continuar trabalhando com a máxima dedicação pelo Brasil e pelas relações com a Itália.

Seja pela visibilidade do cargo, seja pela importância que Itália tem para o Brasil — e vice-versa —, é possível julgar que a carreira do diplomata Renato Mosca de Souza, de 58 anos, está em seu auge. Desde setembro, ele é o embaixador brasileiro em Roma.

Em 2024, um momento histórico singular: 150 anos da imigração italiana no Brasil. O presidente da Itália, Sergio Mattarella, está no Brasil esta semana. Após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília, na segunda-feira, 15, vai visitar São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e o Rio Grande do Sul.

Como brasileiro em Roma, Souza atua como interlocutor diante de um governo comandado pela premiê Giorgia Meloni, vista como ascendente líder da direita europeia.

Com a peculiar habilidade dos diplomatas, o embaixador diz encarar com naturalidade o papel — e, no mês passado, mediou um encontro bilateral entre Lula e Meloni, costurado por ele meses antes.

Antes do posto em Roma, Souza destacou-se no Itamaraty por funções como a chefia do cerimonial da então presidente Dilma Rousseff, missões permanentes em Washington, Cidade do México, Caracas, Vancouver e na sede da FAO, o braço para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas.

Em Roma, ele vive com a mulher, Luciana, no Palácio Pamphili, edifício histórico do século 17 que, desde 1920, é a sede da Embaixada Brasileira no país.

Escadarias da Praça da Espanha, no centro de Roma; Itália e Brasil estão reforçando as relações bilaterais. Foto: Filippo Monteforte/AFP

Na espaçosa e confortável biblioteca contígua ao seu quarto, o embaixador lê os jornais e, sempre conectado, informa-se acerca do Brasil, da Europa e do resto do mundo.

Sobre a crescente demanda de brasileiros que desejam o passaporte europeu, ele afirma ver uma necessidade da economia italiana de mão de obra estrangeira.

Diz também atuar para facilitar os trâmites de acesso à cidadania e à residência no país. “Não faz sentido bloquear o acesso de estrangeiros. A economia italiana precisa desses profissionais”, acrescenta.

Leia os principais trechos da entrevista de Renato Mosca de Souza ao Estadão:

Em 2024, celebra-se o sesquicentenário da imigração italiana no Brasil. O senhor abriu as solenidades aí na Itália, como embaixador. Como se sente neste posto em tal momento histórico? O fato de o senhor também ter antepassados italianos pesa de alguma forma?

De fato, abrimos 2024 com comemorações nessa moldura, o sesquicentenário da chegada do primeiro grupo de imigrantes italianos no Brasil, em 21 de fevereiro de 1874. A data é importante porque motiva uma retomada, um novo impulso no nosso relacionamento. É algo que aproxima nossos países na medida em que há 35 milhões de descendentes de italianos no Brasil, quase um milhão com passaporte italiano. Estamos promovendo uma retomada de relações bilaterais após alguns anos de letargia. Nesse contexto, a origem italiana da minha família é um elemento adicional que me motiva na reconstrução dessa relação.

A ‘italianidade’ está muito presente no Brasil, sobretudo no Sul e no Sudeste, o que faz com que a Itália seja vista com simpatia por boa parte do povo brasileiro. Daí de Roma, nota uma reciprocidade? Italianos também sentem apreço especial porque, em algum momento, antepassados da família se mudaram para o Brasil?

Os brasileiros nutrem especial afeição pela Itália e pelos italianos. Milhões de famílias têm parentes na Itália. Além das afinidades, as pessoas admiram a cultura, a língua, os produtos. Fazer turismo na Itália muitas vezes representa a viagem da vida, inesquecível. Além disso, a influência italiana na formação da sociedade e da cultura brasileiras tem sido imensa. Somos parecidos no comportamento, nos valores, povos criativos, empreendedores. Na Itália, acontece o mesmo: os italianos admiram o Brasil, a música, o futebol, as riquezas e a diversidade do nosso País. Não é pequeno o número de italianos que vêm para o Brasil e decide começar uma nova vida.

Como estão sendo as celebrações pelos 150 da imigração? O que já aconteceu e o que está por vir?

Em 21 de fevereiro organizamos um grande jantar que reuniu autoridades governamentais, empresários e representantes do mundo acadêmico e cultural, italianos e brasileiros. Não foi mero evento social, mas uma oportunidade de conectar e reconectar pessoas, buscar oportunidades de negócios, de cooperação bilateral e de iniciativas conjuntas. Na área cultural, por exemplo, com o apoio do Itamaraty, promovemos apresentações de Fafá de Belém e André Mehmari, da cantora amazonense Karine Aguiar, do violonista Iuri Bittar, da cantora Cristina Renzetti e musicistas italianos de primeira linha, para citar apenas alguns. Tem sido uma intensa programação cultural, mas igualmente iniciativas políticas, econômicas e acadêmicas.

A influência italiana na formação da sociedade e da cultura brasileiras tem sido imensa, somos parecidos no comportamento, nos valores, somos povos criativos, empreendedores.

Ainda sobre imigração italiana… Há um movimento de brasileiros descendentes de italianos que requerem a cidadania italiana e, em muitos casos, passam a viver na Itália ou em outros países europeus. Como interpreta esse movimento?

Este movimento é linear. Há no Brasil quase um milhão de brasileiros com passaporte italiano, milhares na fila para obtenção de cidadania. Sempre houve estudantes e profissionais que escolhem a Itália para viver um período ou decidem estabelecer-se definitivamente no país, mas este contingente ainda está abaixo do que já foi no passado recente, antes da pandemia.

Sempre converso nas universidades italianas, de Roma, Bolonha, Siena, Nápoles, e todas são sempre muito receptivas aos estudantes, professores e pesquisadores brasileiros. O mercado de trabalho na Itália é amplo e demanda mão de obra qualificada em todos os setores, e sabemos que os brasileiros são qualificados, dedicados e proativos. Mas devo ressaltar, no entanto, que há muitas barreiras, como a burocracia e mesmo os custos de vida, que ainda dificultam maior mobilidade. Por essa razão, estamos trabalhando para facilitar o acesso dos brasileiros que escolhem este caminho.

Lula condecorou o presidente da Itália, Sergio Mattarella, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração brasileira atribuída a cidadãos estrangeiros. Foto: Wilton Junior/Estadão

O Parlamento italiano tem buscado, nos últimos anos, restringir esse direito, colocando limites na quantidade de gerações ou mesmo buscando balizar com outras regras, como o vínculo com o país ou o conhecimento da língua italiana. Como o senhor avalia isso? Há riscos de a Itália parar de conceder cidadania a descendentes?

Há muita polêmica sobre imigração na Europa, e a Itália não é uma exceção. De fato, às vezes se ventilam propostas para limitar acesso de estrangeiros, de reconhecimento de cidadania, mas esta é uma visão sem conexão com a realidade. Os dados demográficos italianos estão encolhendo, apesar da chegada de muitos imigrantes. O mercado de trabalho demanda profissionais em número maior que a oferta interna.

Vou lhe dar um dado concreto: em 2013, 800 mil crianças entraram no sistema educacional. Em 2023, foram 385 mil crianças, menos da metade. É uma tendência, um inverno demográfico. Portanto, não faz sentido bloquear o acesso de estrangeiros. A economia italiana precisa desses profissionais. No que diz respeito ao reconhecimento de ítalo-descendentes, o direito está assentado na Constituição. Claro que sempre se pode mudar, mas não é uma medida de fácil aprovação. O Brasil é apenas um dos muitos países que acolheram milhões de imigrantes italianos. As comunidades italianas no mundo são um ‘asset’ diplomático extraordinário.

Além dos 150 anos da imigração, há uma efeméride importante: 80 anos dos pracinhas brasileiros lutando para liberar a Itália na Segunda Guerra. O senhor esteve recentemente em Monte Castello. Como percebeu essa lembrança brasileira por lá?

Sim, já estive três ou quatro vezes em dez meses de gestão na região da Linha Gótica (região no norte da Itália que ficou conhecida por concentrar a defesa nazifascista na Segunda Guerra). Foi minha primeira viagem, na primeira semana de Roma. Estamos ainda neste ano iniciando a celebração dos 80 anos. Os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira chegaram na Itália em julho de 1944 e lutaram entre setembro desse ano e maio de 1945.

Teremos os primeiros eventos em setembro em localidades como Massarosa e Camaiore. Foram campanhas decisivas para combater e expulsar as forças nazistas do território italiano. Foram duas batalhas fracassadas no fim de 1944, antes da tomada de Monte Castello em março de 1945. Os italianos dessas pequenas localidades são gratos aos brasileiros pelo esforço de guerra e libertação da Itália do jugo autoritário e comemoram todo ano esses momentos paradigmáticos. Lembram que nossos soldados eram solidários com a população, ofereciam roupas e alimentos quando havia pobreza e fome na Itália.

A interlocução com o governo italiano é excelente, amistosa, produtiva, projetada no futuro

Nesse contexto, o soldado brasileiro é visto pelo italiano como herói?

Sem dúvida, a memória do heroísmo brasileiro ainda está presente nessas comunidades. O Brasil foi o único país latino-americano a destacar tropas para lutar na Segunda Guerra. Hoje em dia, já não são muitos que viveram esse momento, mas o sentimento continua vivo. Recentemente, fui abordado por uma senhora que me contou que o primeiro chocolate que comera na vida, aos sete anos de idade, foi-lhe oferecido por um pracinha brasileiro. Não há testemunho mais comovente dessa aliança que historicamente une nossos povos.

O presidente Lula, no mês passado, foi recebido com honras de chefe de Estado pela primeira-ministra italiana Giorgia Meloni. Havia temor de que esse encontro não ocorresse? Como foram as costuras de bastidores para que ocorresse? Chegou a ser noticiado que ‘incompatibilidades de agenda’ inviabilizariam o encontro…

Agradeço a pergunta, porque este é um tema que tenho satisfação em comentar. O encontro que o presidente Lula manteve com a presidente do Conselho de Ministros, Giorgia Meloni, na Puglia, por ocasião da cúpula do G-7, não foi o primeiro. Ele a visitou em junho de 2023, em Roma e teve uma reunião ‘tête-à-tête’ (presencial), como dizemos na diplomacia. Há poucos registros da dinâmica do encontro, eles falaram a sós. Posso assegurar que, desta feita, convidado pela primeira-ministra, o presidente Lula retornou à Itália e foi extremamente bem-recebido. A reunião foi cordial e produtiva, os mandatários coincidiram em temas fundamentais da atualidade, como transição energética, reforma da governança global e luta contra a fome e a pobreza.

É uma simplificação rotular ambos como se estivessem em campos opostos, não é verdade. Nunca houve receio de que o encontro não acontecesse, estava agendado desde o início dos preparativos da visita. Eu estava em Borgo Egnazia e digo mais, o presidente reiterou-lhe o convite para a reunião do G-20, em novembro no Rio de Janeiro. Meloni não só confirmou a presença como manifestou interesse de aproveitar a viagem para visita oficial ao Brasil. Serão três encontros em pouco mais de um ano.

Estar em um país comandado pela direita e representar outro país comandado pela esquerda, ainda que moderada, dificulta o seu trabalho como embaixador? Como contornar essas questões, em tempos de polarização política tão acirrada?

Somos governos maduros, responsáveis e comprometidos antes de mais nada com o desenvolvimento e o bem-estar de nossos povos. Não caímos nessas ciladas que dividem o mundo. Nossa relação bilateral é histórica. A tradição da diplomacia brasileira é por construir pontes. Nosso objetivo maior é continuarmos unidos, até porque há um potencial enorme a ser explorado em todos os setores. E posso afirmar, sem falsa modéstia, que tenho contribuído muito nesse sentido nesses dez meses.

De forma geral, como avalia este momento da relação bilateral Brasil-Itália?

Além do trabalho consistente que temos realizado para a reativação dos mecanismos de diálogo político, econômico-comercial, militar, científico e tecnológico, os contatos diplomáticos de alto nível têm-se intensificado. As duas visitas do presidente Lula no último ano e a visita de Estado do presidente Sergio Mattarella esta semana são demonstrações inequívocas desse ânimo de retomada de uma relação bilateral de resultados e de intensificação de parcerias. No caso do mandatário italiano, trata-se da primeira viagem de um chefe de Estado italiano ao Brasil desde 2000.

Na visita, foram assinados acordos para a conversão de carteiras de habilitação, assunto de muito interesse e utilidade para a comunidade brasileira na Itália, e memorandos de entendimento nos campos da ciência e tecnologia, agricultura, energia renovável, turismo e cooperação na produção de azeite de oliva. Para o segundo semestre, ainda estão previstas as viagens ao Brasil do ministro dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação Internacional, Antonio Tajani, acompanhado de missão empresarial, e da presidente do Conselho de Ministros, Giorgia Meloni, para participar da cúpula do G-20.

Normalmente, um embaixador brasileiro fica cerca de quatro anos em cada posto. Quais marcas o senhor pretende deixar?

Costumo dizer que acordo todas as manhãs e penso o que vou fazer no dia para melhorar a vida do povo brasileiro. O diplomata precisa entender o mundo que o cerca e estar preparado a identificar oportunidades para o país. Isto tem a ver com atração de investimentos, aumento do intercâmbio comercial, difusão da cultura, cooperação educacional e científica. Meus planos estão sempre em sintonia com esse objetivo. A diplomacia é a expressão no exterior de um projeto de país.

E quais seus próximos passos na carreira? O que planeja para o futuro?

É importante planejar na vida diplomática, mas é preciso, sobretudo, conviver com alto grau de imprevisibilidade. Planejo continuar trabalhando com a máxima dedicação pelo Brasil e pelas relações com a Itália.

Seja pela visibilidade do cargo, seja pela importância que Itália tem para o Brasil — e vice-versa —, é possível julgar que a carreira do diplomata Renato Mosca de Souza, de 58 anos, está em seu auge. Desde setembro, ele é o embaixador brasileiro em Roma.

Em 2024, um momento histórico singular: 150 anos da imigração italiana no Brasil. O presidente da Itália, Sergio Mattarella, está no Brasil esta semana. Após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília, na segunda-feira, 15, vai visitar São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e o Rio Grande do Sul.

Como brasileiro em Roma, Souza atua como interlocutor diante de um governo comandado pela premiê Giorgia Meloni, vista como ascendente líder da direita europeia.

Com a peculiar habilidade dos diplomatas, o embaixador diz encarar com naturalidade o papel — e, no mês passado, mediou um encontro bilateral entre Lula e Meloni, costurado por ele meses antes.

Antes do posto em Roma, Souza destacou-se no Itamaraty por funções como a chefia do cerimonial da então presidente Dilma Rousseff, missões permanentes em Washington, Cidade do México, Caracas, Vancouver e na sede da FAO, o braço para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas.

Em Roma, ele vive com a mulher, Luciana, no Palácio Pamphili, edifício histórico do século 17 que, desde 1920, é a sede da Embaixada Brasileira no país.

Escadarias da Praça da Espanha, no centro de Roma; Itália e Brasil estão reforçando as relações bilaterais. Foto: Filippo Monteforte/AFP

Na espaçosa e confortável biblioteca contígua ao seu quarto, o embaixador lê os jornais e, sempre conectado, informa-se acerca do Brasil, da Europa e do resto do mundo.

Sobre a crescente demanda de brasileiros que desejam o passaporte europeu, ele afirma ver uma necessidade da economia italiana de mão de obra estrangeira.

Diz também atuar para facilitar os trâmites de acesso à cidadania e à residência no país. “Não faz sentido bloquear o acesso de estrangeiros. A economia italiana precisa desses profissionais”, acrescenta.

Leia os principais trechos da entrevista de Renato Mosca de Souza ao Estadão:

Em 2024, celebra-se o sesquicentenário da imigração italiana no Brasil. O senhor abriu as solenidades aí na Itália, como embaixador. Como se sente neste posto em tal momento histórico? O fato de o senhor também ter antepassados italianos pesa de alguma forma?

De fato, abrimos 2024 com comemorações nessa moldura, o sesquicentenário da chegada do primeiro grupo de imigrantes italianos no Brasil, em 21 de fevereiro de 1874. A data é importante porque motiva uma retomada, um novo impulso no nosso relacionamento. É algo que aproxima nossos países na medida em que há 35 milhões de descendentes de italianos no Brasil, quase um milhão com passaporte italiano. Estamos promovendo uma retomada de relações bilaterais após alguns anos de letargia. Nesse contexto, a origem italiana da minha família é um elemento adicional que me motiva na reconstrução dessa relação.

A ‘italianidade’ está muito presente no Brasil, sobretudo no Sul e no Sudeste, o que faz com que a Itália seja vista com simpatia por boa parte do povo brasileiro. Daí de Roma, nota uma reciprocidade? Italianos também sentem apreço especial porque, em algum momento, antepassados da família se mudaram para o Brasil?

Os brasileiros nutrem especial afeição pela Itália e pelos italianos. Milhões de famílias têm parentes na Itália. Além das afinidades, as pessoas admiram a cultura, a língua, os produtos. Fazer turismo na Itália muitas vezes representa a viagem da vida, inesquecível. Além disso, a influência italiana na formação da sociedade e da cultura brasileiras tem sido imensa. Somos parecidos no comportamento, nos valores, povos criativos, empreendedores. Na Itália, acontece o mesmo: os italianos admiram o Brasil, a música, o futebol, as riquezas e a diversidade do nosso País. Não é pequeno o número de italianos que vêm para o Brasil e decide começar uma nova vida.

Como estão sendo as celebrações pelos 150 da imigração? O que já aconteceu e o que está por vir?

Em 21 de fevereiro organizamos um grande jantar que reuniu autoridades governamentais, empresários e representantes do mundo acadêmico e cultural, italianos e brasileiros. Não foi mero evento social, mas uma oportunidade de conectar e reconectar pessoas, buscar oportunidades de negócios, de cooperação bilateral e de iniciativas conjuntas. Na área cultural, por exemplo, com o apoio do Itamaraty, promovemos apresentações de Fafá de Belém e André Mehmari, da cantora amazonense Karine Aguiar, do violonista Iuri Bittar, da cantora Cristina Renzetti e musicistas italianos de primeira linha, para citar apenas alguns. Tem sido uma intensa programação cultural, mas igualmente iniciativas políticas, econômicas e acadêmicas.

A influência italiana na formação da sociedade e da cultura brasileiras tem sido imensa, somos parecidos no comportamento, nos valores, somos povos criativos, empreendedores.

Ainda sobre imigração italiana… Há um movimento de brasileiros descendentes de italianos que requerem a cidadania italiana e, em muitos casos, passam a viver na Itália ou em outros países europeus. Como interpreta esse movimento?

Este movimento é linear. Há no Brasil quase um milhão de brasileiros com passaporte italiano, milhares na fila para obtenção de cidadania. Sempre houve estudantes e profissionais que escolhem a Itália para viver um período ou decidem estabelecer-se definitivamente no país, mas este contingente ainda está abaixo do que já foi no passado recente, antes da pandemia.

Sempre converso nas universidades italianas, de Roma, Bolonha, Siena, Nápoles, e todas são sempre muito receptivas aos estudantes, professores e pesquisadores brasileiros. O mercado de trabalho na Itália é amplo e demanda mão de obra qualificada em todos os setores, e sabemos que os brasileiros são qualificados, dedicados e proativos. Mas devo ressaltar, no entanto, que há muitas barreiras, como a burocracia e mesmo os custos de vida, que ainda dificultam maior mobilidade. Por essa razão, estamos trabalhando para facilitar o acesso dos brasileiros que escolhem este caminho.

Lula condecorou o presidente da Itália, Sergio Mattarella, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração brasileira atribuída a cidadãos estrangeiros. Foto: Wilton Junior/Estadão

O Parlamento italiano tem buscado, nos últimos anos, restringir esse direito, colocando limites na quantidade de gerações ou mesmo buscando balizar com outras regras, como o vínculo com o país ou o conhecimento da língua italiana. Como o senhor avalia isso? Há riscos de a Itália parar de conceder cidadania a descendentes?

Há muita polêmica sobre imigração na Europa, e a Itália não é uma exceção. De fato, às vezes se ventilam propostas para limitar acesso de estrangeiros, de reconhecimento de cidadania, mas esta é uma visão sem conexão com a realidade. Os dados demográficos italianos estão encolhendo, apesar da chegada de muitos imigrantes. O mercado de trabalho demanda profissionais em número maior que a oferta interna.

Vou lhe dar um dado concreto: em 2013, 800 mil crianças entraram no sistema educacional. Em 2023, foram 385 mil crianças, menos da metade. É uma tendência, um inverno demográfico. Portanto, não faz sentido bloquear o acesso de estrangeiros. A economia italiana precisa desses profissionais. No que diz respeito ao reconhecimento de ítalo-descendentes, o direito está assentado na Constituição. Claro que sempre se pode mudar, mas não é uma medida de fácil aprovação. O Brasil é apenas um dos muitos países que acolheram milhões de imigrantes italianos. As comunidades italianas no mundo são um ‘asset’ diplomático extraordinário.

Além dos 150 anos da imigração, há uma efeméride importante: 80 anos dos pracinhas brasileiros lutando para liberar a Itália na Segunda Guerra. O senhor esteve recentemente em Monte Castello. Como percebeu essa lembrança brasileira por lá?

Sim, já estive três ou quatro vezes em dez meses de gestão na região da Linha Gótica (região no norte da Itália que ficou conhecida por concentrar a defesa nazifascista na Segunda Guerra). Foi minha primeira viagem, na primeira semana de Roma. Estamos ainda neste ano iniciando a celebração dos 80 anos. Os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira chegaram na Itália em julho de 1944 e lutaram entre setembro desse ano e maio de 1945.

Teremos os primeiros eventos em setembro em localidades como Massarosa e Camaiore. Foram campanhas decisivas para combater e expulsar as forças nazistas do território italiano. Foram duas batalhas fracassadas no fim de 1944, antes da tomada de Monte Castello em março de 1945. Os italianos dessas pequenas localidades são gratos aos brasileiros pelo esforço de guerra e libertação da Itália do jugo autoritário e comemoram todo ano esses momentos paradigmáticos. Lembram que nossos soldados eram solidários com a população, ofereciam roupas e alimentos quando havia pobreza e fome na Itália.

A interlocução com o governo italiano é excelente, amistosa, produtiva, projetada no futuro

Nesse contexto, o soldado brasileiro é visto pelo italiano como herói?

Sem dúvida, a memória do heroísmo brasileiro ainda está presente nessas comunidades. O Brasil foi o único país latino-americano a destacar tropas para lutar na Segunda Guerra. Hoje em dia, já não são muitos que viveram esse momento, mas o sentimento continua vivo. Recentemente, fui abordado por uma senhora que me contou que o primeiro chocolate que comera na vida, aos sete anos de idade, foi-lhe oferecido por um pracinha brasileiro. Não há testemunho mais comovente dessa aliança que historicamente une nossos povos.

O presidente Lula, no mês passado, foi recebido com honras de chefe de Estado pela primeira-ministra italiana Giorgia Meloni. Havia temor de que esse encontro não ocorresse? Como foram as costuras de bastidores para que ocorresse? Chegou a ser noticiado que ‘incompatibilidades de agenda’ inviabilizariam o encontro…

Agradeço a pergunta, porque este é um tema que tenho satisfação em comentar. O encontro que o presidente Lula manteve com a presidente do Conselho de Ministros, Giorgia Meloni, na Puglia, por ocasião da cúpula do G-7, não foi o primeiro. Ele a visitou em junho de 2023, em Roma e teve uma reunião ‘tête-à-tête’ (presencial), como dizemos na diplomacia. Há poucos registros da dinâmica do encontro, eles falaram a sós. Posso assegurar que, desta feita, convidado pela primeira-ministra, o presidente Lula retornou à Itália e foi extremamente bem-recebido. A reunião foi cordial e produtiva, os mandatários coincidiram em temas fundamentais da atualidade, como transição energética, reforma da governança global e luta contra a fome e a pobreza.

É uma simplificação rotular ambos como se estivessem em campos opostos, não é verdade. Nunca houve receio de que o encontro não acontecesse, estava agendado desde o início dos preparativos da visita. Eu estava em Borgo Egnazia e digo mais, o presidente reiterou-lhe o convite para a reunião do G-20, em novembro no Rio de Janeiro. Meloni não só confirmou a presença como manifestou interesse de aproveitar a viagem para visita oficial ao Brasil. Serão três encontros em pouco mais de um ano.

Estar em um país comandado pela direita e representar outro país comandado pela esquerda, ainda que moderada, dificulta o seu trabalho como embaixador? Como contornar essas questões, em tempos de polarização política tão acirrada?

Somos governos maduros, responsáveis e comprometidos antes de mais nada com o desenvolvimento e o bem-estar de nossos povos. Não caímos nessas ciladas que dividem o mundo. Nossa relação bilateral é histórica. A tradição da diplomacia brasileira é por construir pontes. Nosso objetivo maior é continuarmos unidos, até porque há um potencial enorme a ser explorado em todos os setores. E posso afirmar, sem falsa modéstia, que tenho contribuído muito nesse sentido nesses dez meses.

De forma geral, como avalia este momento da relação bilateral Brasil-Itália?

Além do trabalho consistente que temos realizado para a reativação dos mecanismos de diálogo político, econômico-comercial, militar, científico e tecnológico, os contatos diplomáticos de alto nível têm-se intensificado. As duas visitas do presidente Lula no último ano e a visita de Estado do presidente Sergio Mattarella esta semana são demonstrações inequívocas desse ânimo de retomada de uma relação bilateral de resultados e de intensificação de parcerias. No caso do mandatário italiano, trata-se da primeira viagem de um chefe de Estado italiano ao Brasil desde 2000.

Na visita, foram assinados acordos para a conversão de carteiras de habilitação, assunto de muito interesse e utilidade para a comunidade brasileira na Itália, e memorandos de entendimento nos campos da ciência e tecnologia, agricultura, energia renovável, turismo e cooperação na produção de azeite de oliva. Para o segundo semestre, ainda estão previstas as viagens ao Brasil do ministro dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação Internacional, Antonio Tajani, acompanhado de missão empresarial, e da presidente do Conselho de Ministros, Giorgia Meloni, para participar da cúpula do G-20.

Normalmente, um embaixador brasileiro fica cerca de quatro anos em cada posto. Quais marcas o senhor pretende deixar?

Costumo dizer que acordo todas as manhãs e penso o que vou fazer no dia para melhorar a vida do povo brasileiro. O diplomata precisa entender o mundo que o cerca e estar preparado a identificar oportunidades para o país. Isto tem a ver com atração de investimentos, aumento do intercâmbio comercial, difusão da cultura, cooperação educacional e científica. Meus planos estão sempre em sintonia com esse objetivo. A diplomacia é a expressão no exterior de um projeto de país.

E quais seus próximos passos na carreira? O que planeja para o futuro?

É importante planejar na vida diplomática, mas é preciso, sobretudo, conviver com alto grau de imprevisibilidade. Planejo continuar trabalhando com a máxima dedicação pelo Brasil e pelas relações com a Itália.

Entrevista por Edison Veiga (Especial para o Estadão)

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