Um dos criminosos mais notórios do Brasil na década de 1970, Lúcio Flávio Vilar Lírio foi o tema de uma página policial do Jornal da Tarde de 31 de janeiro de 1974. O bandido havia sido preso sem resistência no dia anterior numa pensão em Belo Horizonte, apesar de estar fortemente armado.
Jornal da Tarde - 31 de janeiro de 1974
Na entrevista à imprensa, o criminoso, que havia escapado de uma prisão no Rio 11 dias antes, prometeu que ia fugir novamente - elogiou a polícia mineira e disse que a sua 17ª fuga foi facilitada pela corrupção na polícia carioca: “A polícia de Minas não é podre e corrupta como a do Rio. Eles tem orgulho em prender marginal respeitado como eu.”
“— Eu sei que essa não foi e nem será a última vez que fugi. Vou escapar de novo. Garanto como dois e dois são quatro. E haveria razão para eu não tentar mais fugir? Regenerar-me, como dizem, nunca vou, porque esse sistema injusto e cheio de armadilhas não vai permitir. Estou num jogo, sou um vivo-morto. A qualquer hora os policiais, que sabem que eu não calo mesmo sobre corrupções, vão querer me matar como fizeram com o Nijine Renato, meu irmão.”
Leia a íntegra da reportagem de Francisco Brandt e a entrevista de Lúcio Flávio.
E Lúcio Flávio já prepara a sua 18ª fuga
Ele poderia resistir: com ele, na Pensão Auxiliadora, em Belo Horizonte, estavam uma metradora INA, um colt 45 e uma faca peixeira. Mas Lúcio Flávio Vilar Lírio não reagiu. Está preso de novo, e já prometeu de novo que vai fugir.
Reportagem de Francisco Brandt.
— Cana é cana. Ninguém pode resistir. A ordem de Lúcio Flávio Vilar Lírio foi cumprida rigorosamente. Nem ele, nem seu companheiro João Firmino Neto nem sua amante Jeanice Milagres de Sousa, com seu filho de três anos, resistiram aos 12 homens da policia mineira que invadiram ontem às 13h a Pensão Auxiliadora perto da Santa Casa em Belo Horizonte, para prendê-los.
Se quisessem poderiam resistir: Lúcio Flávio e João Firmino dispunham de uma metralhadora INA, de um colt 45 e de uma faca peixeira. Entretanto foi assim pacificamente, que terminou a mais curta das fugas de Lúcio Flávio Vilar Lírio, iniciada 11 dias antes com um tiroteio no Instituto Penal Milton Dias Moreira, no Rio, junto com mais 12 presidiários.
Mas ele prometeu: vai fugir outra vez.
Com suas 17 fugas, Lúcio Flávio provou que tem uma inteligência fora do comum, pelo menos entre os marginais; mas sua prisão em Belo Horizonte, mostra que desta vez ele cometeu o imperdoável erro de deixar na primeira pensão em que estivera um exemplar do Diário da Tarde, com preciosas anotações para a policia, destinadas a outro fugitivo, Gerson Moreira Rosa.
No alto, junto ao cabeçalho do jornal, estava escrito: pensão perto da Santa Casa ou da Rodoviária.
Perto da Rodoviária — a cerca de duas quadras do Departamento de Investigações da Polícia Mineira - ficava a pensão em que foi encontrado o jornal. Lúcio Flávio estava na outra. Priscilo Pereira da Rosa Filho, um dos promeiros fugitivos a ser recapturado, contou à Polícia, em Belo Horizonte, que Lúcio Flávio tinha ido para Brasília. Isso de certa forma confirmava as suspeitas de policiais cariocas: eles previam a ida do marginal para Minas, onde moram sua legitima mulher e um filho, de três anos. Lúcio estava indo na direção prevista.
Priscilo foi preso de uma forma simples demais para um homem que, como ele, fugiu junto com Lúcio Flávio Filiar Lirio, de uma prisão rigorosamente vigiada, em meio a um tiroteio. Priscilo tomou um táxi para ir ao Rio mas antes mesmo de chegar à estrada o motorista mudou de idéia e o levou para a delegacia mais próxima. Ele nem resistiu.
Nos fatos seguintes que conduziram os policiais ao quarto de Lúcio Flávio, o marginal garante que eles levaram a vantagem de contar com a sorte. E, em compensação, Lúcio e seus companheiros tiveram azar.
Primeiro foi no assalto ao Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais, às 9h15 de ontem. Lúcio com uma metralhadora, Gerson com o colt 45 e Firmino com um embrulho (continha uma sacola) imobilizaram o gerente e os funcionários que trabalhavam no serviço de compensação da agência (o único que funciona pela manhã.
A fuga ia ser feita num Volkswagem azul claro, com as placas AH 5198, roubadas de um Opala preto usado pelos bandidos e abandonado depois. No meio do trânsito congestionado, porém, na esquina da r. São Paulo com av. Amazonas, um soldado da PM notou que a plaqueta ainda era de 1972. Pediu os documentos. Levou de Gerson uma coronhada na cabeça e só teve tempo de dar um tiro antes de desmaiar.
Lúcio e Firmino fugiam para um lado, Gerson para outro. Dois investigadores que passavam perto viram o que acontecera e prenderam Gerson logo adiante.
Lúcio Flávio só soube disso quando já estava na prisão. Uma notícia extra no rádio o avisou de que a fuga estava no fim: Gerson havia sido preso e confessara que Lúcio Vilar Lírio estava em Belo Horizonte. Disse também que todos estavam hospedados na Pensão Oliveirense, perto da Estação Rodoviária. Mentira.
Mas foi lá que os policiais encontraram o jornal com a pista de Lúcio. Era o ponto de encontro para o caso de Gerson escapar dos policiais. Daí em diante, as investigações foram simples e rápidas. Rafaelo Wandecolk Thompson, que estivera na Pensão Oliveirense, tinha se mudado para a Pensão Auxiliadora. Rafaelo era Lúcio Flávio.
Lúcio diz que a polícia o ajudou a fugir. Verdade?
Lúcio Flávio Vilar Lírio diz que a policia carioca é extremamente corrupta. Tão corrupta, segundo ele, que por 40 mil cruzeiros algumas autoridades da penitenciária Milton Dias Moreira fizeram chegar à sua cela, sete revólveres, cinco facas e bombas juninas para assustar os policiais.
Foi com essas armas que ele e mais 12 presidiários conseguiram fugir da penitenciária dia 19 à tarde. Lúcio, preso em Belo Horizonte, pro-curou provar que recebeu ajuda de funcionários da prisão:
— Jeanice, minha mulher, não poderia ter entrado com as armas para a fuga, pois todas as minhas visitas eram revistadas rigorosamente. Mas em troca de 40 mil cruzeiros. essas autoridades, cujos nomes só vou revelar depois, fizeram chegar a mim um colt 45, cinco revólveres calibre 32, um calibre 38, cinco facas e bombas juninas. Graças a essa corrupção foi que pude tramar a fuga com meus amigos.
E Lúcio Flávio, novamente preso, novamente pensa em fugir:
— Eu sei que essa não foi e nem será a última vez que fugi. Vou escapar de novo. Garanto como dois e dois são quatro. E haveria razão para eu não tentar mais fugir? Regenerar-me, como dizem, nunca vou, porque esse sistema injusto e cheio de armadilhas não vai permitir. Estou num jogo, sou um vivo-morto. A qualquer hora os policiais, que sabem que eu não calo mesmo sobre corrupções, vão querer me matar como fizeram com o Nijine Renato, meu irmão.
— Tenho de fugir sempre que puder, pois é o jeito que tenho para tentar viver e me livrar de uma prisão perpétua.
Essa fuga, a 17ª, contou Lúcio Flavio, além de ser a mais curta foi a mais Infeliz de todas:
— O azar começou com a morte de Thenard Capurro Manso, na hora de fugir. Piorou com a prisão do Priscilo segunda-feira, em Belo Horizonte (ele não quis participar dos assaltos conosco) e terminou com a chegada do PM pedindo os documentos do fuscão, após a tentativa de assalto ao banco, ontem de manhã também em Belo Horizonte.
Thenard Capturo Manso já tinha alugado uma casa, em Nova Friburgo, estado do Rio, para onde os bandidos iriam após a fuga. Com sua morte, porém, os planos tiveram de ser mudados:
— Íamos ficar lá durante uns dois meses e depois continuar nosso negócio de sempre. Na última hora o jeito foi vir para Belo Horizonte, cidade que eu conheço melhor: depois íamos para Brasília, onde tenho um esquema antigo. Mas logo que chegamos, domingo retrasado de manhã, presenti que ia ser difícil passar pela polícia mineira, porque ela é um verdadeiro pente fino.
Lúcio Flávio fez questão de elogiar a polícia mineira:
— A polícia de Minas não é podre e corrupta como a do Rio. Eles tem orgulho em prender marginal respeitado como eu. No Rio, só 20 por cento dos policiais são honestos. Se a mineira fosse assim, garanto que eu ficaria em liberdade muito mais tempo, porque na hora do aperto procuro e não rejeito a proteção corrompida que a polícia me oferece.
Houve um fato que estimulou Lúcio Flávio a fugir, embora ele não tenha esclarecido exatamente por que: o romance entre sua irmã Nédia Maria Vilar Lírio e Jorge Vital, ex-diretor do Instituto Penal Milton Dias Moreira:
— Esse romance escandaloso e sujo de minha irmã Nádia Maria com o Jorge Vital serviu muito como incentivo para eu fugir. Depois da fuga eu queria matar os dois, mas a mãe de Jeanice me convenceu a não fazer isso e fugir logo do Rio.
Ele confessou também os crimes que praticou m Belo Horizonte:
—Não tínhamos dinheiro. Fomos nós mesmos que fizemos todos esses assaltos: do Posto de Gasolina Coelho, da Confeitaria Bico Doce, de um motorista de táxi, da floricultura na rua Bahia, do banco e do Opala preto do qual tiramos as placas para colocar num fuscão que roubamos depois. Lúcio atribui sua condição de fora da lei ao envolvimento cada vez mais profundo com a polícia carioca, especialmente com Mariel Maryscotte, ex-detetive e depois chefe de uma quadrilha de ladrões de carros.
— Após a posse do Janio, em 61, nossa família perdeu sua boa posição, Eu era novo, sem formação, comecei a fazer pequenos delitos. De ladrão de carros, acabei me envolvendo com policiais corruptos e me transformei no que eles chamam de barra pesada.
Mariel Maryscotte foi o maior culpado nisso tudo, pois passou a deixar em cadáveres avisos do esquadrão da morte, dizendo que os próximos seríamos eu e Nijine, meu irmão. Por isso tenho ódio ao Mariel e a todos os policiais corruptos. Eles usam nossa marginalização e depois nos traem para se livrar dos perigos compromissos que assumem conosco.
— Foi assim — continua ele — Allan Kardec Vilela se livrou de Nijine, montando aquela farsa de que ele foi morto num tiroteio na avenida Princesa Isabel, no Rio. Por causa disso prometi me vingar dele e do Mariel no dia em que encontrá-los no meu caminho.
Morte na cadeia
Lúcio Flávio, que anos depois viraria filme de sucesso do diretor Hector Babenco estrelado por Reginaldo Faria e seria apelido do modelo 4 portas do Opala Chevrolet, não viveria para cumprir a promessa da 18ª fuga.
Na véspera de completar um ano da prisão em BH, em 29 de janeiro de 1975, foi morto a golpes de estiletes dentro de uma cela num presídio do Rio de Janeiro.
Ele estava prestes a depor como testemunha de acusação nos processos contra o ex-policial Mariel Mariscott e outros integrantes do Esquadrão da Morte da polícia carioca.
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Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.