Hilda Hilst: uma conversa sobre a vida, a morte, o amor e o ato de escrever


Leia entrevista da escritora e poeta para Sônia de Amorim Mascaro publicada no Jornal da Tarde em 1986

Atualização:

Uma das mais consagradas escritoras brasileiras, Hilda Hilst [1930-2004], deu uma entrevista para o Jornal da Tarde em 1986. Além da conversa, o jornal também publicou trechos de dois textos inéditos da poeta, um poema e uma novela. Leia a íntegra da entrevista.

Entrevista da escritora Hillda Hilst no Jornal da Tarde de 21 de Junho de 1986. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 21 de junho de 1986

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Caderno de Programas e Leituras

Entrevista a Sônia de Amorim Mascaro

Gostaria que você falasse sobre o ato de escrever, essa necessidade imperiosa que você sente de comunicar-se com o outro através da literatura. Gostaria também qua você lembrasse de alguns momentos de sua infância, que possam sugerir o início de sua vocacão de escritora.

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Outro dia, não sei onde, ouvi alguém dizer que escrevia por debilidade, por debilidade pessoal. Eu me senti demais atraída por isso. Meu Deus. é verdade! Sempre me perguntarn por que eu escrevo, e uma palavra que eu não tinha lembrado - talvez quem sabe se por amor próprio — é a palavra debilidade. É umaa sensação de debilidade mais do que de força o ato de escrever. É uma necessidade tão grande que você tem de se espelhar em alguma coisa, de que alguém seja parecido com você, de dizer assim, bem, eu estou escrevendo, será que aquela pessoa sentiu o que sinto alguma vez também?

Necessidade de não se sentir muito isolada, porque desde menina eu sempre senti em mim alguma coisa diferente dos outros. Uma compaixão muito grande que eu sentia pelas pessoas, pelos animais, pelo mundo, pela vida. Eu olhava as coisas e já e vinha esse pensamento: que pena, tudo tão impressionante, tão bonito, e depois parece que essa árvore vai emurchecer, a folha vai cair, o cachorro que está vivo e bonito daqui a pouco vai ficar velhinho e então vai morrer, e eu também, com tudo que eu imagino, penso e sinto, também vou acabar. Eu não tinha um vigor suficiente, vamos dizer, para ouvir notícias, doenças, mortes, desgraças, com dignidade. Eu imediatamente desabava, ficava mal, ao ver que as coisas não eram mais, não estavam mais ali. Tinha uma pedra ali e não está mais. mas o que aconteceu com a pedra?

Eu voltava do colégio interno — porque eu fui educada num colégio interno durante oito anos, o Santa Marcelina — e tinha choques impressionantes. Mas a minha mãe era uma mulher mutíssimo afetiva, muito carinhosa e a minha infãncia foi demais bonita, apesar de eu ter ficado longe dela. Minha mãe tinha uma paixão muito grande por mim. Eu fiquei interna no colégio porque meu pai ficou doente, minha mãe separou-se e foi morar em Santos. Foi um momento difícil, porque eu tinha uma verdadeira idolatria por minha mãe. E depois, quando eu voltava para as férias, algumas coisas tinham mudado...

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Solidão

Eu tinha muito a mania de ficar sozinha, não tinha essa vontade de brincar com os outros, como as meninas normalmente fazem. Mas, engraçado, eu era esportista, eu pulava distância, pulava altura, não era uma pessoa doentiamente fechada, não é isso que eu quero dizer. Mas quando eu estava com as minhas coisas, eu preferia ficar sozinha. Não tinha vontade de partilhar aquele brinquedo com ninguém. Então eu ficava examinando as coisas, tinha mania de examinar os bichos pequenos, os insetos, olhar as árvores, as plantinhas. Era mais observadora e tinha muita curiosidade, também, perguntava muito. Até hoje eu não perdi essa necessidade de perguntar.

Na Obscena Senhora D, o Ehud diz pra Hillé. “vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensa como serás aos sessenta, ou estarei morto. por que? causa mortis? acúmulo de perguntas de sua mulher Hillé”.

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Era uma vontade de conhecer, de saber tudo, e mesmo que eu me assustasse. queria saber o porquê. Então, minha infância foi um pouco sofrida, porque era no internato, a distância, a saudade dá minha mãe, muito poderosa... E depois, uma mania que eu tinha muito grande, que era uma vontade de ficar próxima de uma coisa que eles chamavam de Deus. Então eu gostava muito de ficar na capela. Eu queria demais me aproximar da idéia de um Deus, de um Deus que tenha sido o executor de tudo, entende? Desse mundo que é tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida até hoje.

Quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer, que você nomeia de algum nome — e eu nomeio Deus de vários nomes — Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscuro, O Sem Nome. É uma vontade de de repente estabelecer um intercâmbio com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas desabem assim. Eu não posso acreditar que eu tendo sentido tudo que eu senti, tendo visto tudo que eu vi, tendo tido essa compaixão de espremer o coração e as visceras, de repente, simplesmente, vou para a terra, apodreço e fim, zero, terminou.

Então. desde menina essa era uma interrogação constante. A morte me abalava muito. O que é morrer? Mas como morreu? As crianças normalmente se perguntam sobre isso, mas acho que essas coisas me abalavam demais. Essa compaixão que não me deixa até hoje saborear a vida com muita intensidade: Eu estou sempre preocupada com o que me rodeia, que as árvores vão morrer, que os bichos, os amigos, eu mesma. Você ser feito de carne, ter vísceras e sangue, e tudo, e essa compulsão de ficar se olhando e pensando, que coisa impressionante, tudo se movendo dentro de você e daí depois, tudo isso termina...

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E essas sensações tão variadas e tão violentas que você teve... Talvez isso tenha feito com que eu tivesse tido vontade de passar pro outro o que eu não podia ficar falando, cansando o próximo assim: (risos). Então eu fui tentando escrever. Às vezes, olhando, conversando com os outros, sinto que eles são mais fortes. Se vejo uma pessoa velha, encarquilhada, paupérrima, esguedelhada, já quero fazer alguma coisa. E as pessoas dizem, mas que é isso, vai começar a levar as senhoras velhas pra casa, os meninos, os cachorros, não dá, esquece. Sabe, sinto um desconforto vivencial cotidiano diante do mundo e do problema dos outros.

Tenho uma vontade imensa de resolver e de me incorporar ao problema das pessoas, e isso foi dificultando o meu existir cotidiano. E escrever é essa explosão de dizer as coisas como eu acho que elas têm que ser ditas, completamente, para passar para o outro a intensidade, a perplexidade do ser humano completamente incendiado de emoções, de procuras, perguntas e buscas.

Depois, na adolescência, eu fui ficando encantada com as emoções que tive através do amor, com as aventuras, pois eu era uma pessoa muito aventurosa mesmo. Tive muito estímulo, emoções variadas de vida para escrever. Eu era uma pessoa muito tumultuada e muito perguntante o tempo todo. O tempo todo perguntante, o tempo todo numa ansiedade que não era visível exteriormete. Era uma tensão íntima muito potente lá dentro, que não parava de circular, era como se o sangue não ficasse num lago represado, mas corresse em alta velocidade. E eu sempre muito comovida com a vida, com a morte, com o amor. E esse desconforto me acompanha desde menina

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Outro dia, meu primo, o compositor José Antonio Almeida Prado, que agora dá aulas no Santa Marcelina, perguntou a uma freira se ela se lembrava de mim. “Nossa, eu me lembro de uma menina que sabia o dicionário inteiro de cor!” (risos) Eu tinha mesmo um afã de saber, de procurar conhecer as palavras. Quando eu tinha uns nove anos, encontrei uns livros de minha mãe, incrivelmente bonitos, muito bem encapados, gordos, grandes, e eu queria sempre coisas que fossem difíceis de destrinchar. Era a teoria do Darwin, em dois volumes enormes! E eu levei-os para o colégio pela beleza da encadernação e lá a freiras me tomaram os livros imediatamente, “mas que é isso, Darwin na mão dessa menina tonta” (risos).

Então era assim, uma vontade de ficar especulando a respeito de tudo. Estudando o catecismo, na aula de religião, eu queria entender os porquês. Há um trecho de O Unicórnio, em que eu digo: “Irmã, o que quer dizer virgem no parto, antes do parto e depois do parto? O que é virgem? O que é parto? O que é antes e depois do tudo isso? Isso é para decorar, decore e pronto”.

Retrato da poetisa, escritora, cronista e dramaturga, Hilda Hilst, em sua casa, em Campinas,SP, 21/4/1988. Foto: Juvenal Pereira/ Estadão

Primeiros poemas

Quando foi que começou escrever seus primeiros poemas?

Eu não me lembro muito bem de como comecei mesmo a escrever, eu me lembro que gostava muito de ler, lia muitas poesias e tinha uma vontade de me expressar de alguma forma. Aos dezoito anos comecei a escrever os primeiros poemas, chamavam-se Presságios. Eu sabia que tinha escolhido esse caminho e achava que um dia eu ia ser mesmo um grande poeta, que eu ia ser uma grande escritora. Eu sabia lá dentro de mim, e não tenho pudor de te dizer que eu acho que o meu trabalho é um trabalho bom. E desde aquele tempo eu já sabia que era um caminho definitivo para mim.

Só que eu queria aproveitar a vida, a minha mocidade, o que eu tinha de bonito. Queria que as emoções passassem todas por mim antes de me dedicar a escrever, com o afinco desesperado como depois me dediquei. E eu fui então me emocionando demais com tudo, fui amando demais e hoje eu posso dizer que já tive todas as emoções que desejei ter. Se eu me apaixonava por uma idéia ou por uma pessoa, eu fazia com que essas coisas ficassem perto de mim de qualquer forma. Eu não abdicava nunca do que eu realmente desejava e queria.

Freqüentemente você e vista como uma autora de textos difíceis, hermeticos..

Quando me perguntam por que escrevo dessa forma que as pessoas não entendem, e por que é tão complexo tudo, então eu digo, mas, Meu Deus, é o processo da vida que é tão complexo! Eu não saberia simplificar esse processo para ser mais compreensível, é o meu próprio processo dificultso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais, e que tudo seja misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida! De repente, você vai encher um cálice e tudo se esparrama, cai em você, você se suja, e não dá para fazer um esquema bonito, agradavél, simpático.

Normalmente, com as pessoas, eu falo de coisas normais, porque eu acho que minhas preocupações são de uma seriedade que me atinge tão profundamente, que não convém ficar discutindo com as pessoas esses sentimentos. Muitas pessoas me dizem, você parece uma pessoa tão jovial, fala mil palavrões, morre de rir, e depois, o seu livro é tão desesperado... Então, é só através do livro e de personagens que você'pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar.

Uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós e que você faz tudo pra se exprimir, pra se irmanar e às vezes não consegue. Quantas vezes, pessoas que eu tinha tanta vontade que entendessem o meu trabalho, dizem, Hilda, infelizmente eu não consegui saber do que se trata. Então eu imagino que existam também gradações de emoções e talvez eu seja uma pessoa com uma intensidade meio desesperada, uma lucidez também desesperada.

Personagens

O escritor está sempre se dizendo, se revelando de várias formas múltiplas através dos personagens. Cada personagem faz parte de você e você se conta através de cada um. Existem momentos em que você é o gelado, o distanciado, o passional, o infantil, o ingênuo, o bobo, o louco, e tudo isso junto. E as formas de dizer também são diferentes. Eu tenho um amor muito grande pela linguagem, pela minha própria língua, que eu acho multo bonita. Não sei se porque minha mãe era portuguesa, quando escrevo um poema, ou como foi também no texto da Matamoros em Tu Não Te Moves de Ti, eu não consigo escrever sem ter o sotaque português dentro de mim.

Minha mãe tinha um sotaque português muito leve, muito doce, ela me chamava de Hildinha, e o l era todo suspirado, enrolado, muito bonito. E quando dizem que nós precisamos sair desses laços coloniais, realmente eu não saberia, a minha raiz é mesmo uma raiz da Península Ibérica. Na poesia é onde me vem com mais intensidade a volúpia do sotaque português. E agora, nas minhas orações à noite, eu fico falando com Deus como se ele estivesse perto de mim, com esse sotaque português. Eu digo: “ Ai Meu Deus, por favor, não me dê muitas mágoas, muitos martírios” Talvez com esse doce, esse melado na fala, ele possa prestar mais atenção (risos).

O personagem Osmo, de Fluxo-Floema, diz “...as coisas mais importantes são aquelas que falam de Deus, eu tenho mania de Deus...”. Dezesseis anos depois desse seu texto, a preocupação com o Divino, o Absoluto, continua presente em sua vida, não?

Deus. É difícil falar, tenho uma sensação de que existem seres iluminados de outras dimensões que eu não consegui captar, não consegui ver, mas que eu sei que me ouvem e que eu devo falar, entende? Que é importante que eu fale, peça, escreva; Loiuis Pauwels dizia que ele tinha uma “atenção orante”, e é mais ou menos assim que e sinto quando estou falando com esse Sem Nome. E que Ele faz parte de toda a simetria, de toda a ordem do mundo, e que eu devo mesmo me expressar. Eu não sei visualizar, mas sei que esse ser está em comunhão comigo e eu queria demais desafiar esse Sem Nome.

E eu desafiei-o multai vezes em meus livros como urna blasfêmia, para ver se de repente dava um furor Nele e Ele dizia “Está bem, eu estou aqui”, ou seja o que for, surgisse qualquer luz impressionante, qualquer coisa, que me pudesse dar pelo menos uma explicação de algum ato mínimo da minha vida. Pois eu não compreendo mesmo nada. Por isso minha última novela chama-se Com os Meus Olhos de Cão, porque no fundo, por mais que você leia, estude, pense, crie e tenha lucidez, você olha o mundo com os olhos de um cão, com o mesmo olhar assim apalermado., meio aguado, como os animais te olham

Você podaria falar sobra o seu processo de criação na poesia e na prosa?

Normalmente você não pode dizer, eu hoje vou escrever um poema — da mesma forma que você diz — eu hoje vou continUar o meu trabalho de ficção, de prosa. Escrever ficção é um trabalho mais ou menos disciplinado. A poesia não. A poesia você não programa, é um estado quase inexplicável porque surge a qualquer momento. O primeiro verso aparece para você.

Um fluxo

Outro dia, de repente, me veio uma fra-se assim: “Uma égua na água sob a lua”. Achei a frase bonita, anotei e coloquei-a em minha mesa. Às vezes eu anoto umas frases e coloco em minha mesa. Tenho urna bonita de Oscar Wilde que diz: “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. Então anotei a frase. Depois de mais ou menos uns 30 dias, por acaso, eu estava folheando um dicionário de autores estrangeiros, quando leio a hitória do poeta chinês Li Tal Po, que embriagado sai de barco urna noite e, ao querer apanhar a lua refletida no lago, mergulha na água e morre. Quando terminei de ler essa história, de repente, me veio um fluxo amoroso, um sentimento que não sei definir, uma coisa febril, como se você estivesse entrando em contato com algo que não sabe explicar. É um sentimento quente, fervoroso, e então a poesia vem quase num fluxo, quase inteira:

De tanto ti pensar, Sem Nome, me veio a Ilusão.

A mema ilusão.

Da égua que sorve a água pintando sorver a lua.

De tanto te pensar me deito nas aguadas

E acredito luzir e estar atada

Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.

De te sonhar, Sem Nome, tenho nada

Mas acredito em mim o ouro e o mundo

De te amar, possuida de ossos e de abismos

Acredito ter corne e vadiar

Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar

Tocando os outros

Acredito ter mãos, acredito ter boca

Quando só tenho patas e focinho.

Do multo desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e sou.

Quando sou nada: égua fastasmagórica

Sorvendo a lua nágua.

A poesia vem, sem você arrumar muito, com esse ardor, esse vermelho todo, e então eu vou escrevendo o poema. Depois eu arrumo poucas palavras, porque, nesses dias todos, aquelas imagens já estavam dentro de mim. A ficção também aparece como uma das imagens de mim mesma. Eu imagino que posso ser várias pessoas, vários homens, várias mulheres, e, dependendo de como estou comigo mesma e com o mundo, surge uma personagem.

Surgiu assim a Hillé, num momento em que eu sentia uma necessidade enorme de falar do desamparo que a pessoa sente envelhecendo, tendo desejado tanta compreensão e não tendo conseguido. Então surge uma personagem dentro de mim e o nome Hillé vem de repente.

Talvez seja de lembranças de leituras, do meu nome. Hilda Hilst... Depois uma amiga me contou que Hillé quer também dizer doença. E eu, antes de tudo, estava sendo Hillé naquele momento, estava passando por um processo de busca muito desesperada, me sentindo desamparada em relação ao mundo, achando que várias pessoas nessa minha idade se devem sentir assim coordenadas para se segurar, sentir desespero muito grande.

E, então, a Hillé ficou me acompanhando um ano, dois anos. Às vezes eu anotava uma frase que ela dizia um momento dela, mas nunca conseguia a Hillé inteira. Até que um dia, de repente também, a primeira frase na prosa surge assim de repente, não tem momento ‘nem e hora, mas você sabe que é o começo relato. Então me veio a frase: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar o nome...” É o dia em que vai começar tudo.

Tenho sensações diversas e também medo, pois há dois anos que estou convivendo com o aquela personagem e sei que agora é hora o de passar para o outro o que já estava sedimentado dentro de mim.

O texto já vem bastante arrumado porque já foi vivido esses dois anos, então não há muito o que ficar trabalhando. Escrevo pouco por dia, o máximo que consigo escrever são umas trezentas palavras. Para mim é assim. Escrevo na primeira pessoa porque sinto que fico mais próxima do outro para contar. Tenho dificuldades em escrever na terceira pessoa, pois sinto sempre um distanciamento, como se eu não estivesse dentro da personagem.

Tenho a impressão de que todo o meu a trabalho é mesmo um círculo buscando as mesmas coisas. A pergunta é sempre a mesma. Quem eu sou, por que exatamente essa é a minha vida, será que eu vou terminar e, como? Será que eu entendi direito o meu processo de vida, soube fazer mais do que eu podia, ou fiz menos?

São sempre as mesmas buscas, e talvez exista alguma coisa que eu ainda não compreendi, que está ligada a mim num processo que eu também não sei qual é, mas que é invisível, inaudível, incomensurável. Mas eu sinto que tenho uma afinidade, uma vontade de pactuação com algo que eu desconheço, mas que faz parte do cósmico. Eu acho que o meu caminho é sempre esse, o desejo de me irmanar com o inatingível para ver se descubro e sentido do que é existir.

>> Leia mais sobre Hilda Hilst

Uma das mais consagradas escritoras brasileiras, Hilda Hilst [1930-2004], deu uma entrevista para o Jornal da Tarde em 1986. Além da conversa, o jornal também publicou trechos de dois textos inéditos da poeta, um poema e uma novela. Leia a íntegra da entrevista.

Entrevista da escritora Hillda Hilst no Jornal da Tarde de 21 de Junho de 1986. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 21 de junho de 1986

Caderno de Programas e Leituras

Entrevista a Sônia de Amorim Mascaro

Gostaria que você falasse sobre o ato de escrever, essa necessidade imperiosa que você sente de comunicar-se com o outro através da literatura. Gostaria também qua você lembrasse de alguns momentos de sua infância, que possam sugerir o início de sua vocacão de escritora.

Outro dia, não sei onde, ouvi alguém dizer que escrevia por debilidade, por debilidade pessoal. Eu me senti demais atraída por isso. Meu Deus. é verdade! Sempre me perguntarn por que eu escrevo, e uma palavra que eu não tinha lembrado - talvez quem sabe se por amor próprio — é a palavra debilidade. É umaa sensação de debilidade mais do que de força o ato de escrever. É uma necessidade tão grande que você tem de se espelhar em alguma coisa, de que alguém seja parecido com você, de dizer assim, bem, eu estou escrevendo, será que aquela pessoa sentiu o que sinto alguma vez também?

Necessidade de não se sentir muito isolada, porque desde menina eu sempre senti em mim alguma coisa diferente dos outros. Uma compaixão muito grande que eu sentia pelas pessoas, pelos animais, pelo mundo, pela vida. Eu olhava as coisas e já e vinha esse pensamento: que pena, tudo tão impressionante, tão bonito, e depois parece que essa árvore vai emurchecer, a folha vai cair, o cachorro que está vivo e bonito daqui a pouco vai ficar velhinho e então vai morrer, e eu também, com tudo que eu imagino, penso e sinto, também vou acabar. Eu não tinha um vigor suficiente, vamos dizer, para ouvir notícias, doenças, mortes, desgraças, com dignidade. Eu imediatamente desabava, ficava mal, ao ver que as coisas não eram mais, não estavam mais ali. Tinha uma pedra ali e não está mais. mas o que aconteceu com a pedra?

Eu voltava do colégio interno — porque eu fui educada num colégio interno durante oito anos, o Santa Marcelina — e tinha choques impressionantes. Mas a minha mãe era uma mulher mutíssimo afetiva, muito carinhosa e a minha infãncia foi demais bonita, apesar de eu ter ficado longe dela. Minha mãe tinha uma paixão muito grande por mim. Eu fiquei interna no colégio porque meu pai ficou doente, minha mãe separou-se e foi morar em Santos. Foi um momento difícil, porque eu tinha uma verdadeira idolatria por minha mãe. E depois, quando eu voltava para as férias, algumas coisas tinham mudado...

Solidão

Eu tinha muito a mania de ficar sozinha, não tinha essa vontade de brincar com os outros, como as meninas normalmente fazem. Mas, engraçado, eu era esportista, eu pulava distância, pulava altura, não era uma pessoa doentiamente fechada, não é isso que eu quero dizer. Mas quando eu estava com as minhas coisas, eu preferia ficar sozinha. Não tinha vontade de partilhar aquele brinquedo com ninguém. Então eu ficava examinando as coisas, tinha mania de examinar os bichos pequenos, os insetos, olhar as árvores, as plantinhas. Era mais observadora e tinha muita curiosidade, também, perguntava muito. Até hoje eu não perdi essa necessidade de perguntar.

Na Obscena Senhora D, o Ehud diz pra Hillé. “vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensa como serás aos sessenta, ou estarei morto. por que? causa mortis? acúmulo de perguntas de sua mulher Hillé”.

Era uma vontade de conhecer, de saber tudo, e mesmo que eu me assustasse. queria saber o porquê. Então, minha infância foi um pouco sofrida, porque era no internato, a distância, a saudade dá minha mãe, muito poderosa... E depois, uma mania que eu tinha muito grande, que era uma vontade de ficar próxima de uma coisa que eles chamavam de Deus. Então eu gostava muito de ficar na capela. Eu queria demais me aproximar da idéia de um Deus, de um Deus que tenha sido o executor de tudo, entende? Desse mundo que é tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida até hoje.

Quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer, que você nomeia de algum nome — e eu nomeio Deus de vários nomes — Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscuro, O Sem Nome. É uma vontade de de repente estabelecer um intercâmbio com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas desabem assim. Eu não posso acreditar que eu tendo sentido tudo que eu senti, tendo visto tudo que eu vi, tendo tido essa compaixão de espremer o coração e as visceras, de repente, simplesmente, vou para a terra, apodreço e fim, zero, terminou.

Então. desde menina essa era uma interrogação constante. A morte me abalava muito. O que é morrer? Mas como morreu? As crianças normalmente se perguntam sobre isso, mas acho que essas coisas me abalavam demais. Essa compaixão que não me deixa até hoje saborear a vida com muita intensidade: Eu estou sempre preocupada com o que me rodeia, que as árvores vão morrer, que os bichos, os amigos, eu mesma. Você ser feito de carne, ter vísceras e sangue, e tudo, e essa compulsão de ficar se olhando e pensando, que coisa impressionante, tudo se movendo dentro de você e daí depois, tudo isso termina...

E essas sensações tão variadas e tão violentas que você teve... Talvez isso tenha feito com que eu tivesse tido vontade de passar pro outro o que eu não podia ficar falando, cansando o próximo assim: (risos). Então eu fui tentando escrever. Às vezes, olhando, conversando com os outros, sinto que eles são mais fortes. Se vejo uma pessoa velha, encarquilhada, paupérrima, esguedelhada, já quero fazer alguma coisa. E as pessoas dizem, mas que é isso, vai começar a levar as senhoras velhas pra casa, os meninos, os cachorros, não dá, esquece. Sabe, sinto um desconforto vivencial cotidiano diante do mundo e do problema dos outros.

Tenho uma vontade imensa de resolver e de me incorporar ao problema das pessoas, e isso foi dificultando o meu existir cotidiano. E escrever é essa explosão de dizer as coisas como eu acho que elas têm que ser ditas, completamente, para passar para o outro a intensidade, a perplexidade do ser humano completamente incendiado de emoções, de procuras, perguntas e buscas.

Depois, na adolescência, eu fui ficando encantada com as emoções que tive através do amor, com as aventuras, pois eu era uma pessoa muito aventurosa mesmo. Tive muito estímulo, emoções variadas de vida para escrever. Eu era uma pessoa muito tumultuada e muito perguntante o tempo todo. O tempo todo perguntante, o tempo todo numa ansiedade que não era visível exteriormete. Era uma tensão íntima muito potente lá dentro, que não parava de circular, era como se o sangue não ficasse num lago represado, mas corresse em alta velocidade. E eu sempre muito comovida com a vida, com a morte, com o amor. E esse desconforto me acompanha desde menina

Outro dia, meu primo, o compositor José Antonio Almeida Prado, que agora dá aulas no Santa Marcelina, perguntou a uma freira se ela se lembrava de mim. “Nossa, eu me lembro de uma menina que sabia o dicionário inteiro de cor!” (risos) Eu tinha mesmo um afã de saber, de procurar conhecer as palavras. Quando eu tinha uns nove anos, encontrei uns livros de minha mãe, incrivelmente bonitos, muito bem encapados, gordos, grandes, e eu queria sempre coisas que fossem difíceis de destrinchar. Era a teoria do Darwin, em dois volumes enormes! E eu levei-os para o colégio pela beleza da encadernação e lá a freiras me tomaram os livros imediatamente, “mas que é isso, Darwin na mão dessa menina tonta” (risos).

Então era assim, uma vontade de ficar especulando a respeito de tudo. Estudando o catecismo, na aula de religião, eu queria entender os porquês. Há um trecho de O Unicórnio, em que eu digo: “Irmã, o que quer dizer virgem no parto, antes do parto e depois do parto? O que é virgem? O que é parto? O que é antes e depois do tudo isso? Isso é para decorar, decore e pronto”.

Retrato da poetisa, escritora, cronista e dramaturga, Hilda Hilst, em sua casa, em Campinas,SP, 21/4/1988. Foto: Juvenal Pereira/ Estadão

Primeiros poemas

Quando foi que começou escrever seus primeiros poemas?

Eu não me lembro muito bem de como comecei mesmo a escrever, eu me lembro que gostava muito de ler, lia muitas poesias e tinha uma vontade de me expressar de alguma forma. Aos dezoito anos comecei a escrever os primeiros poemas, chamavam-se Presságios. Eu sabia que tinha escolhido esse caminho e achava que um dia eu ia ser mesmo um grande poeta, que eu ia ser uma grande escritora. Eu sabia lá dentro de mim, e não tenho pudor de te dizer que eu acho que o meu trabalho é um trabalho bom. E desde aquele tempo eu já sabia que era um caminho definitivo para mim.

Só que eu queria aproveitar a vida, a minha mocidade, o que eu tinha de bonito. Queria que as emoções passassem todas por mim antes de me dedicar a escrever, com o afinco desesperado como depois me dediquei. E eu fui então me emocionando demais com tudo, fui amando demais e hoje eu posso dizer que já tive todas as emoções que desejei ter. Se eu me apaixonava por uma idéia ou por uma pessoa, eu fazia com que essas coisas ficassem perto de mim de qualquer forma. Eu não abdicava nunca do que eu realmente desejava e queria.

Freqüentemente você e vista como uma autora de textos difíceis, hermeticos..

Quando me perguntam por que escrevo dessa forma que as pessoas não entendem, e por que é tão complexo tudo, então eu digo, mas, Meu Deus, é o processo da vida que é tão complexo! Eu não saberia simplificar esse processo para ser mais compreensível, é o meu próprio processo dificultso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais, e que tudo seja misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida! De repente, você vai encher um cálice e tudo se esparrama, cai em você, você se suja, e não dá para fazer um esquema bonito, agradavél, simpático.

Normalmente, com as pessoas, eu falo de coisas normais, porque eu acho que minhas preocupações são de uma seriedade que me atinge tão profundamente, que não convém ficar discutindo com as pessoas esses sentimentos. Muitas pessoas me dizem, você parece uma pessoa tão jovial, fala mil palavrões, morre de rir, e depois, o seu livro é tão desesperado... Então, é só através do livro e de personagens que você'pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar.

Uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós e que você faz tudo pra se exprimir, pra se irmanar e às vezes não consegue. Quantas vezes, pessoas que eu tinha tanta vontade que entendessem o meu trabalho, dizem, Hilda, infelizmente eu não consegui saber do que se trata. Então eu imagino que existam também gradações de emoções e talvez eu seja uma pessoa com uma intensidade meio desesperada, uma lucidez também desesperada.

Personagens

O escritor está sempre se dizendo, se revelando de várias formas múltiplas através dos personagens. Cada personagem faz parte de você e você se conta através de cada um. Existem momentos em que você é o gelado, o distanciado, o passional, o infantil, o ingênuo, o bobo, o louco, e tudo isso junto. E as formas de dizer também são diferentes. Eu tenho um amor muito grande pela linguagem, pela minha própria língua, que eu acho multo bonita. Não sei se porque minha mãe era portuguesa, quando escrevo um poema, ou como foi também no texto da Matamoros em Tu Não Te Moves de Ti, eu não consigo escrever sem ter o sotaque português dentro de mim.

Minha mãe tinha um sotaque português muito leve, muito doce, ela me chamava de Hildinha, e o l era todo suspirado, enrolado, muito bonito. E quando dizem que nós precisamos sair desses laços coloniais, realmente eu não saberia, a minha raiz é mesmo uma raiz da Península Ibérica. Na poesia é onde me vem com mais intensidade a volúpia do sotaque português. E agora, nas minhas orações à noite, eu fico falando com Deus como se ele estivesse perto de mim, com esse sotaque português. Eu digo: “ Ai Meu Deus, por favor, não me dê muitas mágoas, muitos martírios” Talvez com esse doce, esse melado na fala, ele possa prestar mais atenção (risos).

O personagem Osmo, de Fluxo-Floema, diz “...as coisas mais importantes são aquelas que falam de Deus, eu tenho mania de Deus...”. Dezesseis anos depois desse seu texto, a preocupação com o Divino, o Absoluto, continua presente em sua vida, não?

Deus. É difícil falar, tenho uma sensação de que existem seres iluminados de outras dimensões que eu não consegui captar, não consegui ver, mas que eu sei que me ouvem e que eu devo falar, entende? Que é importante que eu fale, peça, escreva; Loiuis Pauwels dizia que ele tinha uma “atenção orante”, e é mais ou menos assim que e sinto quando estou falando com esse Sem Nome. E que Ele faz parte de toda a simetria, de toda a ordem do mundo, e que eu devo mesmo me expressar. Eu não sei visualizar, mas sei que esse ser está em comunhão comigo e eu queria demais desafiar esse Sem Nome.

E eu desafiei-o multai vezes em meus livros como urna blasfêmia, para ver se de repente dava um furor Nele e Ele dizia “Está bem, eu estou aqui”, ou seja o que for, surgisse qualquer luz impressionante, qualquer coisa, que me pudesse dar pelo menos uma explicação de algum ato mínimo da minha vida. Pois eu não compreendo mesmo nada. Por isso minha última novela chama-se Com os Meus Olhos de Cão, porque no fundo, por mais que você leia, estude, pense, crie e tenha lucidez, você olha o mundo com os olhos de um cão, com o mesmo olhar assim apalermado., meio aguado, como os animais te olham

Você podaria falar sobra o seu processo de criação na poesia e na prosa?

Normalmente você não pode dizer, eu hoje vou escrever um poema — da mesma forma que você diz — eu hoje vou continUar o meu trabalho de ficção, de prosa. Escrever ficção é um trabalho mais ou menos disciplinado. A poesia não. A poesia você não programa, é um estado quase inexplicável porque surge a qualquer momento. O primeiro verso aparece para você.

Um fluxo

Outro dia, de repente, me veio uma fra-se assim: “Uma égua na água sob a lua”. Achei a frase bonita, anotei e coloquei-a em minha mesa. Às vezes eu anoto umas frases e coloco em minha mesa. Tenho urna bonita de Oscar Wilde que diz: “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. Então anotei a frase. Depois de mais ou menos uns 30 dias, por acaso, eu estava folheando um dicionário de autores estrangeiros, quando leio a hitória do poeta chinês Li Tal Po, que embriagado sai de barco urna noite e, ao querer apanhar a lua refletida no lago, mergulha na água e morre. Quando terminei de ler essa história, de repente, me veio um fluxo amoroso, um sentimento que não sei definir, uma coisa febril, como se você estivesse entrando em contato com algo que não sabe explicar. É um sentimento quente, fervoroso, e então a poesia vem quase num fluxo, quase inteira:

De tanto ti pensar, Sem Nome, me veio a Ilusão.

A mema ilusão.

Da égua que sorve a água pintando sorver a lua.

De tanto te pensar me deito nas aguadas

E acredito luzir e estar atada

Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.

De te sonhar, Sem Nome, tenho nada

Mas acredito em mim o ouro e o mundo

De te amar, possuida de ossos e de abismos

Acredito ter corne e vadiar

Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar

Tocando os outros

Acredito ter mãos, acredito ter boca

Quando só tenho patas e focinho.

Do multo desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e sou.

Quando sou nada: égua fastasmagórica

Sorvendo a lua nágua.

A poesia vem, sem você arrumar muito, com esse ardor, esse vermelho todo, e então eu vou escrevendo o poema. Depois eu arrumo poucas palavras, porque, nesses dias todos, aquelas imagens já estavam dentro de mim. A ficção também aparece como uma das imagens de mim mesma. Eu imagino que posso ser várias pessoas, vários homens, várias mulheres, e, dependendo de como estou comigo mesma e com o mundo, surge uma personagem.

Surgiu assim a Hillé, num momento em que eu sentia uma necessidade enorme de falar do desamparo que a pessoa sente envelhecendo, tendo desejado tanta compreensão e não tendo conseguido. Então surge uma personagem dentro de mim e o nome Hillé vem de repente.

Talvez seja de lembranças de leituras, do meu nome. Hilda Hilst... Depois uma amiga me contou que Hillé quer também dizer doença. E eu, antes de tudo, estava sendo Hillé naquele momento, estava passando por um processo de busca muito desesperada, me sentindo desamparada em relação ao mundo, achando que várias pessoas nessa minha idade se devem sentir assim coordenadas para se segurar, sentir desespero muito grande.

E, então, a Hillé ficou me acompanhando um ano, dois anos. Às vezes eu anotava uma frase que ela dizia um momento dela, mas nunca conseguia a Hillé inteira. Até que um dia, de repente também, a primeira frase na prosa surge assim de repente, não tem momento ‘nem e hora, mas você sabe que é o começo relato. Então me veio a frase: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar o nome...” É o dia em que vai começar tudo.

Tenho sensações diversas e também medo, pois há dois anos que estou convivendo com o aquela personagem e sei que agora é hora o de passar para o outro o que já estava sedimentado dentro de mim.

O texto já vem bastante arrumado porque já foi vivido esses dois anos, então não há muito o que ficar trabalhando. Escrevo pouco por dia, o máximo que consigo escrever são umas trezentas palavras. Para mim é assim. Escrevo na primeira pessoa porque sinto que fico mais próxima do outro para contar. Tenho dificuldades em escrever na terceira pessoa, pois sinto sempre um distanciamento, como se eu não estivesse dentro da personagem.

Tenho a impressão de que todo o meu a trabalho é mesmo um círculo buscando as mesmas coisas. A pergunta é sempre a mesma. Quem eu sou, por que exatamente essa é a minha vida, será que eu vou terminar e, como? Será que eu entendi direito o meu processo de vida, soube fazer mais do que eu podia, ou fiz menos?

São sempre as mesmas buscas, e talvez exista alguma coisa que eu ainda não compreendi, que está ligada a mim num processo que eu também não sei qual é, mas que é invisível, inaudível, incomensurável. Mas eu sinto que tenho uma afinidade, uma vontade de pactuação com algo que eu desconheço, mas que faz parte do cósmico. Eu acho que o meu caminho é sempre esse, o desejo de me irmanar com o inatingível para ver se descubro e sentido do que é existir.

>> Leia mais sobre Hilda Hilst

Uma das mais consagradas escritoras brasileiras, Hilda Hilst [1930-2004], deu uma entrevista para o Jornal da Tarde em 1986. Além da conversa, o jornal também publicou trechos de dois textos inéditos da poeta, um poema e uma novela. Leia a íntegra da entrevista.

Entrevista da escritora Hillda Hilst no Jornal da Tarde de 21 de Junho de 1986. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 21 de junho de 1986

Caderno de Programas e Leituras

Entrevista a Sônia de Amorim Mascaro

Gostaria que você falasse sobre o ato de escrever, essa necessidade imperiosa que você sente de comunicar-se com o outro através da literatura. Gostaria também qua você lembrasse de alguns momentos de sua infância, que possam sugerir o início de sua vocacão de escritora.

Outro dia, não sei onde, ouvi alguém dizer que escrevia por debilidade, por debilidade pessoal. Eu me senti demais atraída por isso. Meu Deus. é verdade! Sempre me perguntarn por que eu escrevo, e uma palavra que eu não tinha lembrado - talvez quem sabe se por amor próprio — é a palavra debilidade. É umaa sensação de debilidade mais do que de força o ato de escrever. É uma necessidade tão grande que você tem de se espelhar em alguma coisa, de que alguém seja parecido com você, de dizer assim, bem, eu estou escrevendo, será que aquela pessoa sentiu o que sinto alguma vez também?

Necessidade de não se sentir muito isolada, porque desde menina eu sempre senti em mim alguma coisa diferente dos outros. Uma compaixão muito grande que eu sentia pelas pessoas, pelos animais, pelo mundo, pela vida. Eu olhava as coisas e já e vinha esse pensamento: que pena, tudo tão impressionante, tão bonito, e depois parece que essa árvore vai emurchecer, a folha vai cair, o cachorro que está vivo e bonito daqui a pouco vai ficar velhinho e então vai morrer, e eu também, com tudo que eu imagino, penso e sinto, também vou acabar. Eu não tinha um vigor suficiente, vamos dizer, para ouvir notícias, doenças, mortes, desgraças, com dignidade. Eu imediatamente desabava, ficava mal, ao ver que as coisas não eram mais, não estavam mais ali. Tinha uma pedra ali e não está mais. mas o que aconteceu com a pedra?

Eu voltava do colégio interno — porque eu fui educada num colégio interno durante oito anos, o Santa Marcelina — e tinha choques impressionantes. Mas a minha mãe era uma mulher mutíssimo afetiva, muito carinhosa e a minha infãncia foi demais bonita, apesar de eu ter ficado longe dela. Minha mãe tinha uma paixão muito grande por mim. Eu fiquei interna no colégio porque meu pai ficou doente, minha mãe separou-se e foi morar em Santos. Foi um momento difícil, porque eu tinha uma verdadeira idolatria por minha mãe. E depois, quando eu voltava para as férias, algumas coisas tinham mudado...

Solidão

Eu tinha muito a mania de ficar sozinha, não tinha essa vontade de brincar com os outros, como as meninas normalmente fazem. Mas, engraçado, eu era esportista, eu pulava distância, pulava altura, não era uma pessoa doentiamente fechada, não é isso que eu quero dizer. Mas quando eu estava com as minhas coisas, eu preferia ficar sozinha. Não tinha vontade de partilhar aquele brinquedo com ninguém. Então eu ficava examinando as coisas, tinha mania de examinar os bichos pequenos, os insetos, olhar as árvores, as plantinhas. Era mais observadora e tinha muita curiosidade, também, perguntava muito. Até hoje eu não perdi essa necessidade de perguntar.

Na Obscena Senhora D, o Ehud diz pra Hillé. “vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensa como serás aos sessenta, ou estarei morto. por que? causa mortis? acúmulo de perguntas de sua mulher Hillé”.

Era uma vontade de conhecer, de saber tudo, e mesmo que eu me assustasse. queria saber o porquê. Então, minha infância foi um pouco sofrida, porque era no internato, a distância, a saudade dá minha mãe, muito poderosa... E depois, uma mania que eu tinha muito grande, que era uma vontade de ficar próxima de uma coisa que eles chamavam de Deus. Então eu gostava muito de ficar na capela. Eu queria demais me aproximar da idéia de um Deus, de um Deus que tenha sido o executor de tudo, entende? Desse mundo que é tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida até hoje.

Quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer, que você nomeia de algum nome — e eu nomeio Deus de vários nomes — Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscuro, O Sem Nome. É uma vontade de de repente estabelecer um intercâmbio com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas desabem assim. Eu não posso acreditar que eu tendo sentido tudo que eu senti, tendo visto tudo que eu vi, tendo tido essa compaixão de espremer o coração e as visceras, de repente, simplesmente, vou para a terra, apodreço e fim, zero, terminou.

Então. desde menina essa era uma interrogação constante. A morte me abalava muito. O que é morrer? Mas como morreu? As crianças normalmente se perguntam sobre isso, mas acho que essas coisas me abalavam demais. Essa compaixão que não me deixa até hoje saborear a vida com muita intensidade: Eu estou sempre preocupada com o que me rodeia, que as árvores vão morrer, que os bichos, os amigos, eu mesma. Você ser feito de carne, ter vísceras e sangue, e tudo, e essa compulsão de ficar se olhando e pensando, que coisa impressionante, tudo se movendo dentro de você e daí depois, tudo isso termina...

E essas sensações tão variadas e tão violentas que você teve... Talvez isso tenha feito com que eu tivesse tido vontade de passar pro outro o que eu não podia ficar falando, cansando o próximo assim: (risos). Então eu fui tentando escrever. Às vezes, olhando, conversando com os outros, sinto que eles são mais fortes. Se vejo uma pessoa velha, encarquilhada, paupérrima, esguedelhada, já quero fazer alguma coisa. E as pessoas dizem, mas que é isso, vai começar a levar as senhoras velhas pra casa, os meninos, os cachorros, não dá, esquece. Sabe, sinto um desconforto vivencial cotidiano diante do mundo e do problema dos outros.

Tenho uma vontade imensa de resolver e de me incorporar ao problema das pessoas, e isso foi dificultando o meu existir cotidiano. E escrever é essa explosão de dizer as coisas como eu acho que elas têm que ser ditas, completamente, para passar para o outro a intensidade, a perplexidade do ser humano completamente incendiado de emoções, de procuras, perguntas e buscas.

Depois, na adolescência, eu fui ficando encantada com as emoções que tive através do amor, com as aventuras, pois eu era uma pessoa muito aventurosa mesmo. Tive muito estímulo, emoções variadas de vida para escrever. Eu era uma pessoa muito tumultuada e muito perguntante o tempo todo. O tempo todo perguntante, o tempo todo numa ansiedade que não era visível exteriormete. Era uma tensão íntima muito potente lá dentro, que não parava de circular, era como se o sangue não ficasse num lago represado, mas corresse em alta velocidade. E eu sempre muito comovida com a vida, com a morte, com o amor. E esse desconforto me acompanha desde menina

Outro dia, meu primo, o compositor José Antonio Almeida Prado, que agora dá aulas no Santa Marcelina, perguntou a uma freira se ela se lembrava de mim. “Nossa, eu me lembro de uma menina que sabia o dicionário inteiro de cor!” (risos) Eu tinha mesmo um afã de saber, de procurar conhecer as palavras. Quando eu tinha uns nove anos, encontrei uns livros de minha mãe, incrivelmente bonitos, muito bem encapados, gordos, grandes, e eu queria sempre coisas que fossem difíceis de destrinchar. Era a teoria do Darwin, em dois volumes enormes! E eu levei-os para o colégio pela beleza da encadernação e lá a freiras me tomaram os livros imediatamente, “mas que é isso, Darwin na mão dessa menina tonta” (risos).

Então era assim, uma vontade de ficar especulando a respeito de tudo. Estudando o catecismo, na aula de religião, eu queria entender os porquês. Há um trecho de O Unicórnio, em que eu digo: “Irmã, o que quer dizer virgem no parto, antes do parto e depois do parto? O que é virgem? O que é parto? O que é antes e depois do tudo isso? Isso é para decorar, decore e pronto”.

Retrato da poetisa, escritora, cronista e dramaturga, Hilda Hilst, em sua casa, em Campinas,SP, 21/4/1988. Foto: Juvenal Pereira/ Estadão

Primeiros poemas

Quando foi que começou escrever seus primeiros poemas?

Eu não me lembro muito bem de como comecei mesmo a escrever, eu me lembro que gostava muito de ler, lia muitas poesias e tinha uma vontade de me expressar de alguma forma. Aos dezoito anos comecei a escrever os primeiros poemas, chamavam-se Presságios. Eu sabia que tinha escolhido esse caminho e achava que um dia eu ia ser mesmo um grande poeta, que eu ia ser uma grande escritora. Eu sabia lá dentro de mim, e não tenho pudor de te dizer que eu acho que o meu trabalho é um trabalho bom. E desde aquele tempo eu já sabia que era um caminho definitivo para mim.

Só que eu queria aproveitar a vida, a minha mocidade, o que eu tinha de bonito. Queria que as emoções passassem todas por mim antes de me dedicar a escrever, com o afinco desesperado como depois me dediquei. E eu fui então me emocionando demais com tudo, fui amando demais e hoje eu posso dizer que já tive todas as emoções que desejei ter. Se eu me apaixonava por uma idéia ou por uma pessoa, eu fazia com que essas coisas ficassem perto de mim de qualquer forma. Eu não abdicava nunca do que eu realmente desejava e queria.

Freqüentemente você e vista como uma autora de textos difíceis, hermeticos..

Quando me perguntam por que escrevo dessa forma que as pessoas não entendem, e por que é tão complexo tudo, então eu digo, mas, Meu Deus, é o processo da vida que é tão complexo! Eu não saberia simplificar esse processo para ser mais compreensível, é o meu próprio processo dificultso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais, e que tudo seja misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida! De repente, você vai encher um cálice e tudo se esparrama, cai em você, você se suja, e não dá para fazer um esquema bonito, agradavél, simpático.

Normalmente, com as pessoas, eu falo de coisas normais, porque eu acho que minhas preocupações são de uma seriedade que me atinge tão profundamente, que não convém ficar discutindo com as pessoas esses sentimentos. Muitas pessoas me dizem, você parece uma pessoa tão jovial, fala mil palavrões, morre de rir, e depois, o seu livro é tão desesperado... Então, é só através do livro e de personagens que você'pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar.

Uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós e que você faz tudo pra se exprimir, pra se irmanar e às vezes não consegue. Quantas vezes, pessoas que eu tinha tanta vontade que entendessem o meu trabalho, dizem, Hilda, infelizmente eu não consegui saber do que se trata. Então eu imagino que existam também gradações de emoções e talvez eu seja uma pessoa com uma intensidade meio desesperada, uma lucidez também desesperada.

Personagens

O escritor está sempre se dizendo, se revelando de várias formas múltiplas através dos personagens. Cada personagem faz parte de você e você se conta através de cada um. Existem momentos em que você é o gelado, o distanciado, o passional, o infantil, o ingênuo, o bobo, o louco, e tudo isso junto. E as formas de dizer também são diferentes. Eu tenho um amor muito grande pela linguagem, pela minha própria língua, que eu acho multo bonita. Não sei se porque minha mãe era portuguesa, quando escrevo um poema, ou como foi também no texto da Matamoros em Tu Não Te Moves de Ti, eu não consigo escrever sem ter o sotaque português dentro de mim.

Minha mãe tinha um sotaque português muito leve, muito doce, ela me chamava de Hildinha, e o l era todo suspirado, enrolado, muito bonito. E quando dizem que nós precisamos sair desses laços coloniais, realmente eu não saberia, a minha raiz é mesmo uma raiz da Península Ibérica. Na poesia é onde me vem com mais intensidade a volúpia do sotaque português. E agora, nas minhas orações à noite, eu fico falando com Deus como se ele estivesse perto de mim, com esse sotaque português. Eu digo: “ Ai Meu Deus, por favor, não me dê muitas mágoas, muitos martírios” Talvez com esse doce, esse melado na fala, ele possa prestar mais atenção (risos).

O personagem Osmo, de Fluxo-Floema, diz “...as coisas mais importantes são aquelas que falam de Deus, eu tenho mania de Deus...”. Dezesseis anos depois desse seu texto, a preocupação com o Divino, o Absoluto, continua presente em sua vida, não?

Deus. É difícil falar, tenho uma sensação de que existem seres iluminados de outras dimensões que eu não consegui captar, não consegui ver, mas que eu sei que me ouvem e que eu devo falar, entende? Que é importante que eu fale, peça, escreva; Loiuis Pauwels dizia que ele tinha uma “atenção orante”, e é mais ou menos assim que e sinto quando estou falando com esse Sem Nome. E que Ele faz parte de toda a simetria, de toda a ordem do mundo, e que eu devo mesmo me expressar. Eu não sei visualizar, mas sei que esse ser está em comunhão comigo e eu queria demais desafiar esse Sem Nome.

E eu desafiei-o multai vezes em meus livros como urna blasfêmia, para ver se de repente dava um furor Nele e Ele dizia “Está bem, eu estou aqui”, ou seja o que for, surgisse qualquer luz impressionante, qualquer coisa, que me pudesse dar pelo menos uma explicação de algum ato mínimo da minha vida. Pois eu não compreendo mesmo nada. Por isso minha última novela chama-se Com os Meus Olhos de Cão, porque no fundo, por mais que você leia, estude, pense, crie e tenha lucidez, você olha o mundo com os olhos de um cão, com o mesmo olhar assim apalermado., meio aguado, como os animais te olham

Você podaria falar sobra o seu processo de criação na poesia e na prosa?

Normalmente você não pode dizer, eu hoje vou escrever um poema — da mesma forma que você diz — eu hoje vou continUar o meu trabalho de ficção, de prosa. Escrever ficção é um trabalho mais ou menos disciplinado. A poesia não. A poesia você não programa, é um estado quase inexplicável porque surge a qualquer momento. O primeiro verso aparece para você.

Um fluxo

Outro dia, de repente, me veio uma fra-se assim: “Uma égua na água sob a lua”. Achei a frase bonita, anotei e coloquei-a em minha mesa. Às vezes eu anoto umas frases e coloco em minha mesa. Tenho urna bonita de Oscar Wilde que diz: “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. Então anotei a frase. Depois de mais ou menos uns 30 dias, por acaso, eu estava folheando um dicionário de autores estrangeiros, quando leio a hitória do poeta chinês Li Tal Po, que embriagado sai de barco urna noite e, ao querer apanhar a lua refletida no lago, mergulha na água e morre. Quando terminei de ler essa história, de repente, me veio um fluxo amoroso, um sentimento que não sei definir, uma coisa febril, como se você estivesse entrando em contato com algo que não sabe explicar. É um sentimento quente, fervoroso, e então a poesia vem quase num fluxo, quase inteira:

De tanto ti pensar, Sem Nome, me veio a Ilusão.

A mema ilusão.

Da égua que sorve a água pintando sorver a lua.

De tanto te pensar me deito nas aguadas

E acredito luzir e estar atada

Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.

De te sonhar, Sem Nome, tenho nada

Mas acredito em mim o ouro e o mundo

De te amar, possuida de ossos e de abismos

Acredito ter corne e vadiar

Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar

Tocando os outros

Acredito ter mãos, acredito ter boca

Quando só tenho patas e focinho.

Do multo desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e sou.

Quando sou nada: égua fastasmagórica

Sorvendo a lua nágua.

A poesia vem, sem você arrumar muito, com esse ardor, esse vermelho todo, e então eu vou escrevendo o poema. Depois eu arrumo poucas palavras, porque, nesses dias todos, aquelas imagens já estavam dentro de mim. A ficção também aparece como uma das imagens de mim mesma. Eu imagino que posso ser várias pessoas, vários homens, várias mulheres, e, dependendo de como estou comigo mesma e com o mundo, surge uma personagem.

Surgiu assim a Hillé, num momento em que eu sentia uma necessidade enorme de falar do desamparo que a pessoa sente envelhecendo, tendo desejado tanta compreensão e não tendo conseguido. Então surge uma personagem dentro de mim e o nome Hillé vem de repente.

Talvez seja de lembranças de leituras, do meu nome. Hilda Hilst... Depois uma amiga me contou que Hillé quer também dizer doença. E eu, antes de tudo, estava sendo Hillé naquele momento, estava passando por um processo de busca muito desesperada, me sentindo desamparada em relação ao mundo, achando que várias pessoas nessa minha idade se devem sentir assim coordenadas para se segurar, sentir desespero muito grande.

E, então, a Hillé ficou me acompanhando um ano, dois anos. Às vezes eu anotava uma frase que ela dizia um momento dela, mas nunca conseguia a Hillé inteira. Até que um dia, de repente também, a primeira frase na prosa surge assim de repente, não tem momento ‘nem e hora, mas você sabe que é o começo relato. Então me veio a frase: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar o nome...” É o dia em que vai começar tudo.

Tenho sensações diversas e também medo, pois há dois anos que estou convivendo com o aquela personagem e sei que agora é hora o de passar para o outro o que já estava sedimentado dentro de mim.

O texto já vem bastante arrumado porque já foi vivido esses dois anos, então não há muito o que ficar trabalhando. Escrevo pouco por dia, o máximo que consigo escrever são umas trezentas palavras. Para mim é assim. Escrevo na primeira pessoa porque sinto que fico mais próxima do outro para contar. Tenho dificuldades em escrever na terceira pessoa, pois sinto sempre um distanciamento, como se eu não estivesse dentro da personagem.

Tenho a impressão de que todo o meu a trabalho é mesmo um círculo buscando as mesmas coisas. A pergunta é sempre a mesma. Quem eu sou, por que exatamente essa é a minha vida, será que eu vou terminar e, como? Será que eu entendi direito o meu processo de vida, soube fazer mais do que eu podia, ou fiz menos?

São sempre as mesmas buscas, e talvez exista alguma coisa que eu ainda não compreendi, que está ligada a mim num processo que eu também não sei qual é, mas que é invisível, inaudível, incomensurável. Mas eu sinto que tenho uma afinidade, uma vontade de pactuação com algo que eu desconheço, mas que faz parte do cósmico. Eu acho que o meu caminho é sempre esse, o desejo de me irmanar com o inatingível para ver se descubro e sentido do que é existir.

>> Leia mais sobre Hilda Hilst

Uma das mais consagradas escritoras brasileiras, Hilda Hilst [1930-2004], deu uma entrevista para o Jornal da Tarde em 1986. Além da conversa, o jornal também publicou trechos de dois textos inéditos da poeta, um poema e uma novela. Leia a íntegra da entrevista.

Entrevista da escritora Hillda Hilst no Jornal da Tarde de 21 de Junho de 1986. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 21 de junho de 1986

Caderno de Programas e Leituras

Entrevista a Sônia de Amorim Mascaro

Gostaria que você falasse sobre o ato de escrever, essa necessidade imperiosa que você sente de comunicar-se com o outro através da literatura. Gostaria também qua você lembrasse de alguns momentos de sua infância, que possam sugerir o início de sua vocacão de escritora.

Outro dia, não sei onde, ouvi alguém dizer que escrevia por debilidade, por debilidade pessoal. Eu me senti demais atraída por isso. Meu Deus. é verdade! Sempre me perguntarn por que eu escrevo, e uma palavra que eu não tinha lembrado - talvez quem sabe se por amor próprio — é a palavra debilidade. É umaa sensação de debilidade mais do que de força o ato de escrever. É uma necessidade tão grande que você tem de se espelhar em alguma coisa, de que alguém seja parecido com você, de dizer assim, bem, eu estou escrevendo, será que aquela pessoa sentiu o que sinto alguma vez também?

Necessidade de não se sentir muito isolada, porque desde menina eu sempre senti em mim alguma coisa diferente dos outros. Uma compaixão muito grande que eu sentia pelas pessoas, pelos animais, pelo mundo, pela vida. Eu olhava as coisas e já e vinha esse pensamento: que pena, tudo tão impressionante, tão bonito, e depois parece que essa árvore vai emurchecer, a folha vai cair, o cachorro que está vivo e bonito daqui a pouco vai ficar velhinho e então vai morrer, e eu também, com tudo que eu imagino, penso e sinto, também vou acabar. Eu não tinha um vigor suficiente, vamos dizer, para ouvir notícias, doenças, mortes, desgraças, com dignidade. Eu imediatamente desabava, ficava mal, ao ver que as coisas não eram mais, não estavam mais ali. Tinha uma pedra ali e não está mais. mas o que aconteceu com a pedra?

Eu voltava do colégio interno — porque eu fui educada num colégio interno durante oito anos, o Santa Marcelina — e tinha choques impressionantes. Mas a minha mãe era uma mulher mutíssimo afetiva, muito carinhosa e a minha infãncia foi demais bonita, apesar de eu ter ficado longe dela. Minha mãe tinha uma paixão muito grande por mim. Eu fiquei interna no colégio porque meu pai ficou doente, minha mãe separou-se e foi morar em Santos. Foi um momento difícil, porque eu tinha uma verdadeira idolatria por minha mãe. E depois, quando eu voltava para as férias, algumas coisas tinham mudado...

Solidão

Eu tinha muito a mania de ficar sozinha, não tinha essa vontade de brincar com os outros, como as meninas normalmente fazem. Mas, engraçado, eu era esportista, eu pulava distância, pulava altura, não era uma pessoa doentiamente fechada, não é isso que eu quero dizer. Mas quando eu estava com as minhas coisas, eu preferia ficar sozinha. Não tinha vontade de partilhar aquele brinquedo com ninguém. Então eu ficava examinando as coisas, tinha mania de examinar os bichos pequenos, os insetos, olhar as árvores, as plantinhas. Era mais observadora e tinha muita curiosidade, também, perguntava muito. Até hoje eu não perdi essa necessidade de perguntar.

Na Obscena Senhora D, o Ehud diz pra Hillé. “vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensa como serás aos sessenta, ou estarei morto. por que? causa mortis? acúmulo de perguntas de sua mulher Hillé”.

Era uma vontade de conhecer, de saber tudo, e mesmo que eu me assustasse. queria saber o porquê. Então, minha infância foi um pouco sofrida, porque era no internato, a distância, a saudade dá minha mãe, muito poderosa... E depois, uma mania que eu tinha muito grande, que era uma vontade de ficar próxima de uma coisa que eles chamavam de Deus. Então eu gostava muito de ficar na capela. Eu queria demais me aproximar da idéia de um Deus, de um Deus que tenha sido o executor de tudo, entende? Desse mundo que é tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida até hoje.

Quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer, que você nomeia de algum nome — e eu nomeio Deus de vários nomes — Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscuro, O Sem Nome. É uma vontade de de repente estabelecer um intercâmbio com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas desabem assim. Eu não posso acreditar que eu tendo sentido tudo que eu senti, tendo visto tudo que eu vi, tendo tido essa compaixão de espremer o coração e as visceras, de repente, simplesmente, vou para a terra, apodreço e fim, zero, terminou.

Então. desde menina essa era uma interrogação constante. A morte me abalava muito. O que é morrer? Mas como morreu? As crianças normalmente se perguntam sobre isso, mas acho que essas coisas me abalavam demais. Essa compaixão que não me deixa até hoje saborear a vida com muita intensidade: Eu estou sempre preocupada com o que me rodeia, que as árvores vão morrer, que os bichos, os amigos, eu mesma. Você ser feito de carne, ter vísceras e sangue, e tudo, e essa compulsão de ficar se olhando e pensando, que coisa impressionante, tudo se movendo dentro de você e daí depois, tudo isso termina...

E essas sensações tão variadas e tão violentas que você teve... Talvez isso tenha feito com que eu tivesse tido vontade de passar pro outro o que eu não podia ficar falando, cansando o próximo assim: (risos). Então eu fui tentando escrever. Às vezes, olhando, conversando com os outros, sinto que eles são mais fortes. Se vejo uma pessoa velha, encarquilhada, paupérrima, esguedelhada, já quero fazer alguma coisa. E as pessoas dizem, mas que é isso, vai começar a levar as senhoras velhas pra casa, os meninos, os cachorros, não dá, esquece. Sabe, sinto um desconforto vivencial cotidiano diante do mundo e do problema dos outros.

Tenho uma vontade imensa de resolver e de me incorporar ao problema das pessoas, e isso foi dificultando o meu existir cotidiano. E escrever é essa explosão de dizer as coisas como eu acho que elas têm que ser ditas, completamente, para passar para o outro a intensidade, a perplexidade do ser humano completamente incendiado de emoções, de procuras, perguntas e buscas.

Depois, na adolescência, eu fui ficando encantada com as emoções que tive através do amor, com as aventuras, pois eu era uma pessoa muito aventurosa mesmo. Tive muito estímulo, emoções variadas de vida para escrever. Eu era uma pessoa muito tumultuada e muito perguntante o tempo todo. O tempo todo perguntante, o tempo todo numa ansiedade que não era visível exteriormete. Era uma tensão íntima muito potente lá dentro, que não parava de circular, era como se o sangue não ficasse num lago represado, mas corresse em alta velocidade. E eu sempre muito comovida com a vida, com a morte, com o amor. E esse desconforto me acompanha desde menina

Outro dia, meu primo, o compositor José Antonio Almeida Prado, que agora dá aulas no Santa Marcelina, perguntou a uma freira se ela se lembrava de mim. “Nossa, eu me lembro de uma menina que sabia o dicionário inteiro de cor!” (risos) Eu tinha mesmo um afã de saber, de procurar conhecer as palavras. Quando eu tinha uns nove anos, encontrei uns livros de minha mãe, incrivelmente bonitos, muito bem encapados, gordos, grandes, e eu queria sempre coisas que fossem difíceis de destrinchar. Era a teoria do Darwin, em dois volumes enormes! E eu levei-os para o colégio pela beleza da encadernação e lá a freiras me tomaram os livros imediatamente, “mas que é isso, Darwin na mão dessa menina tonta” (risos).

Então era assim, uma vontade de ficar especulando a respeito de tudo. Estudando o catecismo, na aula de religião, eu queria entender os porquês. Há um trecho de O Unicórnio, em que eu digo: “Irmã, o que quer dizer virgem no parto, antes do parto e depois do parto? O que é virgem? O que é parto? O que é antes e depois do tudo isso? Isso é para decorar, decore e pronto”.

Retrato da poetisa, escritora, cronista e dramaturga, Hilda Hilst, em sua casa, em Campinas,SP, 21/4/1988. Foto: Juvenal Pereira/ Estadão

Primeiros poemas

Quando foi que começou escrever seus primeiros poemas?

Eu não me lembro muito bem de como comecei mesmo a escrever, eu me lembro que gostava muito de ler, lia muitas poesias e tinha uma vontade de me expressar de alguma forma. Aos dezoito anos comecei a escrever os primeiros poemas, chamavam-se Presságios. Eu sabia que tinha escolhido esse caminho e achava que um dia eu ia ser mesmo um grande poeta, que eu ia ser uma grande escritora. Eu sabia lá dentro de mim, e não tenho pudor de te dizer que eu acho que o meu trabalho é um trabalho bom. E desde aquele tempo eu já sabia que era um caminho definitivo para mim.

Só que eu queria aproveitar a vida, a minha mocidade, o que eu tinha de bonito. Queria que as emoções passassem todas por mim antes de me dedicar a escrever, com o afinco desesperado como depois me dediquei. E eu fui então me emocionando demais com tudo, fui amando demais e hoje eu posso dizer que já tive todas as emoções que desejei ter. Se eu me apaixonava por uma idéia ou por uma pessoa, eu fazia com que essas coisas ficassem perto de mim de qualquer forma. Eu não abdicava nunca do que eu realmente desejava e queria.

Freqüentemente você e vista como uma autora de textos difíceis, hermeticos..

Quando me perguntam por que escrevo dessa forma que as pessoas não entendem, e por que é tão complexo tudo, então eu digo, mas, Meu Deus, é o processo da vida que é tão complexo! Eu não saberia simplificar esse processo para ser mais compreensível, é o meu próprio processo dificultso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais, e que tudo seja misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida! De repente, você vai encher um cálice e tudo se esparrama, cai em você, você se suja, e não dá para fazer um esquema bonito, agradavél, simpático.

Normalmente, com as pessoas, eu falo de coisas normais, porque eu acho que minhas preocupações são de uma seriedade que me atinge tão profundamente, que não convém ficar discutindo com as pessoas esses sentimentos. Muitas pessoas me dizem, você parece uma pessoa tão jovial, fala mil palavrões, morre de rir, e depois, o seu livro é tão desesperado... Então, é só através do livro e de personagens que você'pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar.

Uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós e que você faz tudo pra se exprimir, pra se irmanar e às vezes não consegue. Quantas vezes, pessoas que eu tinha tanta vontade que entendessem o meu trabalho, dizem, Hilda, infelizmente eu não consegui saber do que se trata. Então eu imagino que existam também gradações de emoções e talvez eu seja uma pessoa com uma intensidade meio desesperada, uma lucidez também desesperada.

Personagens

O escritor está sempre se dizendo, se revelando de várias formas múltiplas através dos personagens. Cada personagem faz parte de você e você se conta através de cada um. Existem momentos em que você é o gelado, o distanciado, o passional, o infantil, o ingênuo, o bobo, o louco, e tudo isso junto. E as formas de dizer também são diferentes. Eu tenho um amor muito grande pela linguagem, pela minha própria língua, que eu acho multo bonita. Não sei se porque minha mãe era portuguesa, quando escrevo um poema, ou como foi também no texto da Matamoros em Tu Não Te Moves de Ti, eu não consigo escrever sem ter o sotaque português dentro de mim.

Minha mãe tinha um sotaque português muito leve, muito doce, ela me chamava de Hildinha, e o l era todo suspirado, enrolado, muito bonito. E quando dizem que nós precisamos sair desses laços coloniais, realmente eu não saberia, a minha raiz é mesmo uma raiz da Península Ibérica. Na poesia é onde me vem com mais intensidade a volúpia do sotaque português. E agora, nas minhas orações à noite, eu fico falando com Deus como se ele estivesse perto de mim, com esse sotaque português. Eu digo: “ Ai Meu Deus, por favor, não me dê muitas mágoas, muitos martírios” Talvez com esse doce, esse melado na fala, ele possa prestar mais atenção (risos).

O personagem Osmo, de Fluxo-Floema, diz “...as coisas mais importantes são aquelas que falam de Deus, eu tenho mania de Deus...”. Dezesseis anos depois desse seu texto, a preocupação com o Divino, o Absoluto, continua presente em sua vida, não?

Deus. É difícil falar, tenho uma sensação de que existem seres iluminados de outras dimensões que eu não consegui captar, não consegui ver, mas que eu sei que me ouvem e que eu devo falar, entende? Que é importante que eu fale, peça, escreva; Loiuis Pauwels dizia que ele tinha uma “atenção orante”, e é mais ou menos assim que e sinto quando estou falando com esse Sem Nome. E que Ele faz parte de toda a simetria, de toda a ordem do mundo, e que eu devo mesmo me expressar. Eu não sei visualizar, mas sei que esse ser está em comunhão comigo e eu queria demais desafiar esse Sem Nome.

E eu desafiei-o multai vezes em meus livros como urna blasfêmia, para ver se de repente dava um furor Nele e Ele dizia “Está bem, eu estou aqui”, ou seja o que for, surgisse qualquer luz impressionante, qualquer coisa, que me pudesse dar pelo menos uma explicação de algum ato mínimo da minha vida. Pois eu não compreendo mesmo nada. Por isso minha última novela chama-se Com os Meus Olhos de Cão, porque no fundo, por mais que você leia, estude, pense, crie e tenha lucidez, você olha o mundo com os olhos de um cão, com o mesmo olhar assim apalermado., meio aguado, como os animais te olham

Você podaria falar sobra o seu processo de criação na poesia e na prosa?

Normalmente você não pode dizer, eu hoje vou escrever um poema — da mesma forma que você diz — eu hoje vou continUar o meu trabalho de ficção, de prosa. Escrever ficção é um trabalho mais ou menos disciplinado. A poesia não. A poesia você não programa, é um estado quase inexplicável porque surge a qualquer momento. O primeiro verso aparece para você.

Um fluxo

Outro dia, de repente, me veio uma fra-se assim: “Uma égua na água sob a lua”. Achei a frase bonita, anotei e coloquei-a em minha mesa. Às vezes eu anoto umas frases e coloco em minha mesa. Tenho urna bonita de Oscar Wilde que diz: “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. Então anotei a frase. Depois de mais ou menos uns 30 dias, por acaso, eu estava folheando um dicionário de autores estrangeiros, quando leio a hitória do poeta chinês Li Tal Po, que embriagado sai de barco urna noite e, ao querer apanhar a lua refletida no lago, mergulha na água e morre. Quando terminei de ler essa história, de repente, me veio um fluxo amoroso, um sentimento que não sei definir, uma coisa febril, como se você estivesse entrando em contato com algo que não sabe explicar. É um sentimento quente, fervoroso, e então a poesia vem quase num fluxo, quase inteira:

De tanto ti pensar, Sem Nome, me veio a Ilusão.

A mema ilusão.

Da égua que sorve a água pintando sorver a lua.

De tanto te pensar me deito nas aguadas

E acredito luzir e estar atada

Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.

De te sonhar, Sem Nome, tenho nada

Mas acredito em mim o ouro e o mundo

De te amar, possuida de ossos e de abismos

Acredito ter corne e vadiar

Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar

Tocando os outros

Acredito ter mãos, acredito ter boca

Quando só tenho patas e focinho.

Do multo desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e sou.

Quando sou nada: égua fastasmagórica

Sorvendo a lua nágua.

A poesia vem, sem você arrumar muito, com esse ardor, esse vermelho todo, e então eu vou escrevendo o poema. Depois eu arrumo poucas palavras, porque, nesses dias todos, aquelas imagens já estavam dentro de mim. A ficção também aparece como uma das imagens de mim mesma. Eu imagino que posso ser várias pessoas, vários homens, várias mulheres, e, dependendo de como estou comigo mesma e com o mundo, surge uma personagem.

Surgiu assim a Hillé, num momento em que eu sentia uma necessidade enorme de falar do desamparo que a pessoa sente envelhecendo, tendo desejado tanta compreensão e não tendo conseguido. Então surge uma personagem dentro de mim e o nome Hillé vem de repente.

Talvez seja de lembranças de leituras, do meu nome. Hilda Hilst... Depois uma amiga me contou que Hillé quer também dizer doença. E eu, antes de tudo, estava sendo Hillé naquele momento, estava passando por um processo de busca muito desesperada, me sentindo desamparada em relação ao mundo, achando que várias pessoas nessa minha idade se devem sentir assim coordenadas para se segurar, sentir desespero muito grande.

E, então, a Hillé ficou me acompanhando um ano, dois anos. Às vezes eu anotava uma frase que ela dizia um momento dela, mas nunca conseguia a Hillé inteira. Até que um dia, de repente também, a primeira frase na prosa surge assim de repente, não tem momento ‘nem e hora, mas você sabe que é o começo relato. Então me veio a frase: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar o nome...” É o dia em que vai começar tudo.

Tenho sensações diversas e também medo, pois há dois anos que estou convivendo com o aquela personagem e sei que agora é hora o de passar para o outro o que já estava sedimentado dentro de mim.

O texto já vem bastante arrumado porque já foi vivido esses dois anos, então não há muito o que ficar trabalhando. Escrevo pouco por dia, o máximo que consigo escrever são umas trezentas palavras. Para mim é assim. Escrevo na primeira pessoa porque sinto que fico mais próxima do outro para contar. Tenho dificuldades em escrever na terceira pessoa, pois sinto sempre um distanciamento, como se eu não estivesse dentro da personagem.

Tenho a impressão de que todo o meu a trabalho é mesmo um círculo buscando as mesmas coisas. A pergunta é sempre a mesma. Quem eu sou, por que exatamente essa é a minha vida, será que eu vou terminar e, como? Será que eu entendi direito o meu processo de vida, soube fazer mais do que eu podia, ou fiz menos?

São sempre as mesmas buscas, e talvez exista alguma coisa que eu ainda não compreendi, que está ligada a mim num processo que eu também não sei qual é, mas que é invisível, inaudível, incomensurável. Mas eu sinto que tenho uma afinidade, uma vontade de pactuação com algo que eu desconheço, mas que faz parte do cósmico. Eu acho que o meu caminho é sempre esse, o desejo de me irmanar com o inatingível para ver se descubro e sentido do que é existir.

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