John Lennon: os últimos momentos, a dor de Yoko e a cremação


Jornal da Tarde publicou crítica sobre o disco Double Fantasy no dia em que o artista seria assassinado em Nova York

Por Edmundo Leite
Atualização:

“Não deixa de ser cômico perceber que o que eles querem dizer é que o sonho não acabou”. Assim, no tempo presente, o crítico musical Ezequiel Neves concluia sua análise sobre o disco Double Fantasy, de John Lennon e Yoko Ono, em seu texto “A música, agitando Nova York. Apesar do frio e da neve”, publicado no Jornal da Tarde de 8 de dezembro de 1980 sobre aquele e outros lançamentos musicais.

John Lennon estava vivo quando os leitores do Jornal da Tarde daquela segunda-feira compraram seus exemplares nas bancas ou receberam seus jornais em casa ou no local de trabalho. Os leitores que deixaram para ler de noite a resenha do singular crítico brasileiro que por aqueles dias estava em Nova York teriam outra sensação horas depois. John Lennon não estava mais entre nós no fim daquela noite.

Frases como “Lennon pode dar-se a esse luxo... Lennon é um dos pilares...” e a própria frase final passaram a soar desconfortavelmente estranhas. O Beatle que junto com outros Beatles mudaram o mundo em alguns poucos anos na década de 60 foi brutalmente assassinado a tiros no fim da noite daquele dia 8.

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Não só um texto da seção de música de um jornal no Brasil, mas muitas coisas passariam a não fazer mais sentido a partir dali, como mostram as reações mundiais diante da incredulidade com o que aconteceu naquela calçada de Nova York em 8 de dezembro de 1980.

Leia a resenha de Ezequiel Neves e trechos da cobertura da morte nos dias seguintes.

Jornal da Tarde - 8 de dezembro de 1980

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Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

A música, agitando Nova York. Apesar do frio e da neve

Agitação, com os lançamentos de fim de ano: há discos para todas as exigências. De Lennon ao New Wave.

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Ezequiel Neves de Nova York, especial para o JT

Embora caia neve, Nova York — a Big Apple, está fervendo. É um pulsar frenético que vem de todos os cantos, como se a música brotasse do concreto gelado, do asfalto escorregadio, das próprias pessoas encapotadas. A música está presente em todos os lugares, o ritmo é sempre irresistível, e isso mantém a cidade vibrando, embora o sol se esconda às cinco da tarde. Aproximam-se as festas de fim de ano e as gravadoras lançam, todas ao mesmo tempo, seus trunfos sonoros. O disco aqui é bem mais barato do que no Brasil.

Por seis dólares, ou cinco, o americano tem ao seu dispor os últimos petiscos de John Lennon e Yoko Ono, Stevie Wonder, Neil Young, Rod Stewart e Eagles, todos eles veteranos e de sucesso garantido. Mas há lugar também para grupos e artistas da New Wave, pois os adolescentes gostam de novidades. E, quase sempre, discos novos do The Clash, Talking Heads, Gang of Four, Dire Straits e Nina Hagen possuem tanto, ou maior grau de criatividade do que os de medalhões do rock.

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Lennon, 40 anos. Com recado no céu.

No dia 9 de outubro John Lennon completou 40 anos — idade crítica para qualquer rock’n roller que se preze. Mas Yoko Ono, muito esperta, aliviou a tensão do marido contratando um avião que várias vezes sobrevoou os céus de Manhattan telegrafando, em letras de fumaça branca, a mensagem: “Happy birthday John” (“Feliz aniversário John”). Os transeuntes vibraram, os beatle-maníacos se comoveram até as lágrimas.

Quase um mês e meio depois, no dia 18 de novembro, chega às lojas Double Fantasy, o primeiro disco de Lennon depois de um trincado e voluntário silêncio de cinco anos. Mas Lennon não está sozinho no Lp. O disco é dividido irmamente entre ele e Yoko, sete faixas para cada um, nem mais, nem menos. O próprio ex-beatle apressou-se em explicar através da imprensa: “Double Fantasy é como uma peça de teatro — nós a escrevemos e somos os atores. É John e Yoko, é pegar ou largar. Yoko me faz sentir inteiro. Não quero cantar se ela não estiver lá comigo. Somos como conselheiros espirituais”.

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Felizmente Double Fantasy (que a WEA brasileira lançará no próximo dia 15) não é um disco conceitual como aqueles horríveis Two Virgins, Unfinished Music N. 2 e Wedding Album, todos lançados em 69 celebrando a paixão desenfreada do casal Lennon/Yoko. Fantasy é uma espécie de bolo de aniversário dos 12 anos de casamento dos dois e, embora alguns apressados o comparem a “Cenas de Um Casamento”, de Ingmar Bergman, o disco se parece mais a um filme doméstico feito em super-8 preto e branco.

Essa impressão começa na capa — meio fora de foco e muito escura — e espalha-se pelas 14 faixas com sofreguidão avassaladora. Ao contrário dos personagens de Bergman, tremendamente universais, o mundinho dos Lennons tem limits muito estreitos, um triângulo replet de clichés e lugares comuns englobando marido, mulher e o filho Sean, de cinco anos.

Mas afinal, Lennon pode dar-se a esse luxo, pois sempre foi o Mick Jagger dos Beatles. Seu ego, em tamanho, é idêntico ao do líder dos Stones e, mais que Jagger, Lennon é um dos pilares principais da “aristocracia proletária” — aquela legião de garotos pobres ingleses que, graças ao rock, se transformaram em superstars biliardários.

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Seu silêncio fonográfico de cinco anos foi dos mais lucrativos, Numa troca de papéis, Yoko passou a cuidar de suas finanças, enquanto ele cuidava do filho Sean e da criação de gado Holstein em uma de suas fazendas. Em julho desse ano, por exemplo, uma de suas vacas voi vendida, numa feira em Siracusa, por 265 mil dólares. Uma quantia mínima se levarmos em conta que, além dos royalties dos Lps dos Beatles, as propriedades dos Lennons englobam meia dúzia de casas e mansões espalhadas por Long Island e Palm Beach, cinco apartamentos no fechadíssimo edifício Dakota, em Nova York, e quatro fazendas para produzir leite.

Em Double Fantasy percebe-se que o silêncio de Lennon gerou uma certa gagueira criativa. O disco se salva apenas porque ele é um grande roqueiro. Qualquer conceituação sobre o significado de suas letras equivale a um mergulho no óbvio ululante. Entre mútuas declarações de amor eterno e sombras de receio de perda, o casal Lennon alinhava baladas de amor a roquinhos dançáveis, como se quisessem passar a borracha no tempo. Não deixa de ser cômico perceber que o que eles querem dizer é que o sonho não acabou.

Jornal da Tarde - 9 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

Primeiras informações

Na edição do dia seguinte, ainda eram poucas as informações sobre as circistâncias do assassinato de Lennon:

“Segundo a polícia norte-americana, os tiros — quatro, cinco ou seis, não se sabe direito — foram disparados por um desequilibrado mental. Alguns desses tiros — as informações também não coincidem — atingiram e mataram na madrugada de hoje o ex-beatle John Lennon, quando ele passava, em companhia de sua mulher, Yoko Ono, na frente do edifício onde os dois moram, no bairro de Manhattan, em Nova York.

John Lennon, compositor, junto com Paul MacCartney, das mais famosas músicas do conjunto inglês, morreu aos 40 anos. As notícias sobre a sua morte, de madrugada, ainda eram controvertidas, embora pelo menos o nome de uma pessoa — Sean Strub —aparecesse como testemunha do assassinato, ou pelo menos dos momentos que o seguiram.

Sean Strub caminhava pela rua quando diz ter escutado quatro tiros. Ele afirmou que, segundo deduziu e segundo outras pessoas lhe contaram, o assassino — um homem de cerca de 35 anos, um pouco gordo, vestindo uma jaqueta de couro — estaria escondido na entrada do famoso edifício Dakota, no lado oeste do Central Park, esperando a chegada de Lennon.

“Ele estava com uma cara risonha quando a policia o levou”, disse Strub, falando do assassino. John Lennon e Yoko voltavam de um estúdio chamado Record Plant, no centro da cidade. Eles estiveram lá no começo da noite e, por volta das 22 horas, saíram — Lennon disse que comeria alguma coisa e em seguida iria para casa.

John Lennon morreu no momento em que seu último disco — Double Fantasy — está sendo lançado nos Estados Unidos, com muitos elogios por parte dos críticos. Uma morte trágica, como jamais ele imaginara:

— Parte da minha política e a de Yoko é não sermos levados a sério: somos humoristas — disse ele em uma entrevista ao jornalista David Wigg, do London Daily Express, certa vez.

— Nós somos o Gordo e o Magro. Todas as pessoas sérias, como os Kennedy, Luther King e Gandhi foram assassinadas. Nós queremos ser os palhaços do mundo. ...

Jornal da Tarde - 10 dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

Fui baleado

“O homem abaixou-se apoiado sobre o um único joelho, segurou com as duas mãos o revólver 38 e estendeu os braços, na posição típicade um atirador profissional. Acertou o ombro, opeito, o braço e a cabeça de John Lennon, deixando ainda uma bala perdida entre as dobras do casaco de couro, após atravessar seu pulmão. O ex-Beatle cambaleou por um espaço e dois metros entre o dolorido espanto de sua mulher Yoko Ono e a sala da guarda do luxuoso edifício Dakota, no West Side de Nova York, e caiu murmurando: “Fui baleado”.

Antes, ao ver o casal descer de sua limusine, o atirador apenas confirmara: “Senhor Lennon?” Depois, deixou cair a arma, junto com um exemplar de “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. sdinger, ficando à espera da polícia e da celebridade. “Você sabe o que você fez?”, perguntou o porteiro. “Eu matei John Lennon″, respondeu Mark David Chapman, 25 anos de idade, natural de Honolulu, no Havaí. “Com uma sombra de sorriso irônico”, segundo Sean Strub, uma testemunha.

Enquanto isso, uma viatura da polícia disparava velozmente em direção ao Roosevelt Hospital. James Moran, o guarda que segurava o corpo de Lennon, disse que ele sangrava muito e apenas gemia, sem responder a nenhuma de suas perguntas. “Perguntei várias vezes se ele era John Lennon, para confirmar se ainda vivia. Não houve últimas palavras.” Desesperada, histérica, Yoko exigia do guarda uma resposta impossível: “Diga-me que não é verdade, diga-me que ele está bem”.

Um porta-voz do hospital informou que mais importante dos Beatles morreu logo. Os médicos tentaram transfusões e algumas técnicas para ressuscitá-lo, mas foi tudo inútil. Um deles, Elliot Gross, disse que a morte se deu por hemorragia pulmonar, às 23h45.

Autógrafo e tiros

Com o assassino foram encontrados cerca de dois mil dólares e o novo disco de Lennon e Yoko, Double Fantasy, o primeiro que o casal gravava depois de cinco anos de silêncio. Lançado há duas semanas, este Lp já estava entre os 20 mais vendidos e uma de suas canções, “Starting Over”, alcançara o décimo lugar entre as mais tocadas nas rádios.

Chapman conseguira que Lennon autografasse o disco ao sair para a gravação e esperou durante seis horas por sua volta. E só teve a possibilidade do crime porque o casal preferiu descer na porta do edifício em vez de ir com o carro até a garagem, como fazia sempre.

Em Honolulu, onde sua mulher ficou perplexa com a noticia, Chapman trabalhara como guarda de segurança, após ter fracassado como músico de rock. A polícia informou sobre a prisão de Chapman, mas não revelou em qual distrito está detido. As ameaças de morte aparecem de todos os lados e um policial disse aos jornalistas que “não queremos um novo Lee Harvey Oswald. “Se lembram de Jack Ruby?” ...

Jornal da Tarde - 11 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

O grito de dor de Yoko, os Beatles e a cremação

O corpo de John Lennon foi cremado ontem ao entardecer, no crematório Femcliff em Hartsdale, Nova York. Fora removido do Instituto Médico Legal por volta do meio-dia, sendo enviado para a luxuosa capela funerária Frank E. Campbell, na ilha de Manhattan. Depois, sob forte guarda policial, chegou ao crematório.

Yoko Ono evitou que a imprensa fosse antecipadamente informada e a cerimônia foi tão íntima quanto ela desejava. Ringo Starr, o mais velho dos Beatles, e Julian, o filho de Lennon com sua primeira mulher Cynthia Powell, com 17 anos de idade, estiveram presentes à cerimônia. A vigília silenciosa em memória de Lennon, anunciada anteontem por Yoko num comunicado, será realizada domingo, às 14h (18h no Brasil). Ela quer que todos os amigos e fãs pensem e rezem por John Lennon, “onde quer que estejam no momento”.

Paul McCartney, em Londres, informou ontem que não iria a Nova York para a cerimônia fúnebre, “mas farei sozinho minha homenagem a John, não deixarei de estar pensando nele”. George Harrison, o mais jovem dos Beatles, com 35 anos, apareceu ‘finalmente para os jornalistas.

— Estou surpreso e consternado. É um escândalo que uma pessoa possa assassinar a alguém quando evidentemente não conseguiu por ordem em sua própria existência. Depois de tudo que passamos juntos, eu sentia e sinto um grande carinho e respeito por John. Roubar uma vida é o pior ultraje que existe. Esse assalto perpétuo sobre o direito da outra pessoa chega ao máximo quando se usa uma arma de fogo. Harrison disse ainda que não via Lennon há mais de dois anos, mas que ambos se falavam regularmente pelo telefone.

O drama no hospital

“Temos um caso de tiro no peito”, gritou um policial ao entrar anteontem na sala de emergência do Hospital Roosevelt, “e já está aí na porta”. É assim que Alan Weiss, jornalista da rede ABC de Televisão, que estava na sala de emergência por ter sofrido um acidente de moto, narra a última cena de John Lennon:

“Então as portas foram abertas com violência e seis ou oito policiais entraram correndo ao redor de uma maca. Doutor McBride e outros médicos que cuidavam de mim me largaram imediatamente e ouvi um policial sussurar: ‘É John Lennon’. Tive certeza disto logo em seguida, quando Yoko, parecendo em estado de choque, entrou na sala amparada por outro policial. Ela não chorava, tinha apenas uma expressão perplexa.

Saí da cama mancando e corri ao telefone para falar com a redação. Ao passar ao lado da maca em que estava John Lennon, quase não pude vê-lo através de tantos médicos e enfermeiras. Quando voltei, vi que ele havia sido despido e que toda a equipe trabalhava febrilmente na parte superior de seu corpo”. Por volta das 23h40, ouvi a voz de Yoko Ono. Era muito mais que um grito, era um guincho. Ela urrava ‘não, não, não’ sem parar.”

Cinco minutos mais tarde os policiais a levaram pela porta dos fundos, e o último deles enfiou as roupas de Lennon num saco marrom. Estava tudo acabado.” ...

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

“Não deixa de ser cômico perceber que o que eles querem dizer é que o sonho não acabou”. Assim, no tempo presente, o crítico musical Ezequiel Neves concluia sua análise sobre o disco Double Fantasy, de John Lennon e Yoko Ono, em seu texto “A música, agitando Nova York. Apesar do frio e da neve”, publicado no Jornal da Tarde de 8 de dezembro de 1980 sobre aquele e outros lançamentos musicais.

John Lennon estava vivo quando os leitores do Jornal da Tarde daquela segunda-feira compraram seus exemplares nas bancas ou receberam seus jornais em casa ou no local de trabalho. Os leitores que deixaram para ler de noite a resenha do singular crítico brasileiro que por aqueles dias estava em Nova York teriam outra sensação horas depois. John Lennon não estava mais entre nós no fim daquela noite.

Frases como “Lennon pode dar-se a esse luxo... Lennon é um dos pilares...” e a própria frase final passaram a soar desconfortavelmente estranhas. O Beatle que junto com outros Beatles mudaram o mundo em alguns poucos anos na década de 60 foi brutalmente assassinado a tiros no fim da noite daquele dia 8.

Não só um texto da seção de música de um jornal no Brasil, mas muitas coisas passariam a não fazer mais sentido a partir dali, como mostram as reações mundiais diante da incredulidade com o que aconteceu naquela calçada de Nova York em 8 de dezembro de 1980.

Leia a resenha de Ezequiel Neves e trechos da cobertura da morte nos dias seguintes.

Jornal da Tarde - 8 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

A música, agitando Nova York. Apesar do frio e da neve

Agitação, com os lançamentos de fim de ano: há discos para todas as exigências. De Lennon ao New Wave.

Ezequiel Neves de Nova York, especial para o JT

Embora caia neve, Nova York — a Big Apple, está fervendo. É um pulsar frenético que vem de todos os cantos, como se a música brotasse do concreto gelado, do asfalto escorregadio, das próprias pessoas encapotadas. A música está presente em todos os lugares, o ritmo é sempre irresistível, e isso mantém a cidade vibrando, embora o sol se esconda às cinco da tarde. Aproximam-se as festas de fim de ano e as gravadoras lançam, todas ao mesmo tempo, seus trunfos sonoros. O disco aqui é bem mais barato do que no Brasil.

Por seis dólares, ou cinco, o americano tem ao seu dispor os últimos petiscos de John Lennon e Yoko Ono, Stevie Wonder, Neil Young, Rod Stewart e Eagles, todos eles veteranos e de sucesso garantido. Mas há lugar também para grupos e artistas da New Wave, pois os adolescentes gostam de novidades. E, quase sempre, discos novos do The Clash, Talking Heads, Gang of Four, Dire Straits e Nina Hagen possuem tanto, ou maior grau de criatividade do que os de medalhões do rock.

Lennon, 40 anos. Com recado no céu.

No dia 9 de outubro John Lennon completou 40 anos — idade crítica para qualquer rock’n roller que se preze. Mas Yoko Ono, muito esperta, aliviou a tensão do marido contratando um avião que várias vezes sobrevoou os céus de Manhattan telegrafando, em letras de fumaça branca, a mensagem: “Happy birthday John” (“Feliz aniversário John”). Os transeuntes vibraram, os beatle-maníacos se comoveram até as lágrimas.

Quase um mês e meio depois, no dia 18 de novembro, chega às lojas Double Fantasy, o primeiro disco de Lennon depois de um trincado e voluntário silêncio de cinco anos. Mas Lennon não está sozinho no Lp. O disco é dividido irmamente entre ele e Yoko, sete faixas para cada um, nem mais, nem menos. O próprio ex-beatle apressou-se em explicar através da imprensa: “Double Fantasy é como uma peça de teatro — nós a escrevemos e somos os atores. É John e Yoko, é pegar ou largar. Yoko me faz sentir inteiro. Não quero cantar se ela não estiver lá comigo. Somos como conselheiros espirituais”.

Felizmente Double Fantasy (que a WEA brasileira lançará no próximo dia 15) não é um disco conceitual como aqueles horríveis Two Virgins, Unfinished Music N. 2 e Wedding Album, todos lançados em 69 celebrando a paixão desenfreada do casal Lennon/Yoko. Fantasy é uma espécie de bolo de aniversário dos 12 anos de casamento dos dois e, embora alguns apressados o comparem a “Cenas de Um Casamento”, de Ingmar Bergman, o disco se parece mais a um filme doméstico feito em super-8 preto e branco.

Essa impressão começa na capa — meio fora de foco e muito escura — e espalha-se pelas 14 faixas com sofreguidão avassaladora. Ao contrário dos personagens de Bergman, tremendamente universais, o mundinho dos Lennons tem limits muito estreitos, um triângulo replet de clichés e lugares comuns englobando marido, mulher e o filho Sean, de cinco anos.

Mas afinal, Lennon pode dar-se a esse luxo, pois sempre foi o Mick Jagger dos Beatles. Seu ego, em tamanho, é idêntico ao do líder dos Stones e, mais que Jagger, Lennon é um dos pilares principais da “aristocracia proletária” — aquela legião de garotos pobres ingleses que, graças ao rock, se transformaram em superstars biliardários.

Seu silêncio fonográfico de cinco anos foi dos mais lucrativos, Numa troca de papéis, Yoko passou a cuidar de suas finanças, enquanto ele cuidava do filho Sean e da criação de gado Holstein em uma de suas fazendas. Em julho desse ano, por exemplo, uma de suas vacas voi vendida, numa feira em Siracusa, por 265 mil dólares. Uma quantia mínima se levarmos em conta que, além dos royalties dos Lps dos Beatles, as propriedades dos Lennons englobam meia dúzia de casas e mansões espalhadas por Long Island e Palm Beach, cinco apartamentos no fechadíssimo edifício Dakota, em Nova York, e quatro fazendas para produzir leite.

Em Double Fantasy percebe-se que o silêncio de Lennon gerou uma certa gagueira criativa. O disco se salva apenas porque ele é um grande roqueiro. Qualquer conceituação sobre o significado de suas letras equivale a um mergulho no óbvio ululante. Entre mútuas declarações de amor eterno e sombras de receio de perda, o casal Lennon alinhava baladas de amor a roquinhos dançáveis, como se quisessem passar a borracha no tempo. Não deixa de ser cômico perceber que o que eles querem dizer é que o sonho não acabou.

Jornal da Tarde - 9 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

Primeiras informações

Na edição do dia seguinte, ainda eram poucas as informações sobre as circistâncias do assassinato de Lennon:

“Segundo a polícia norte-americana, os tiros — quatro, cinco ou seis, não se sabe direito — foram disparados por um desequilibrado mental. Alguns desses tiros — as informações também não coincidem — atingiram e mataram na madrugada de hoje o ex-beatle John Lennon, quando ele passava, em companhia de sua mulher, Yoko Ono, na frente do edifício onde os dois moram, no bairro de Manhattan, em Nova York.

John Lennon, compositor, junto com Paul MacCartney, das mais famosas músicas do conjunto inglês, morreu aos 40 anos. As notícias sobre a sua morte, de madrugada, ainda eram controvertidas, embora pelo menos o nome de uma pessoa — Sean Strub —aparecesse como testemunha do assassinato, ou pelo menos dos momentos que o seguiram.

Sean Strub caminhava pela rua quando diz ter escutado quatro tiros. Ele afirmou que, segundo deduziu e segundo outras pessoas lhe contaram, o assassino — um homem de cerca de 35 anos, um pouco gordo, vestindo uma jaqueta de couro — estaria escondido na entrada do famoso edifício Dakota, no lado oeste do Central Park, esperando a chegada de Lennon.

“Ele estava com uma cara risonha quando a policia o levou”, disse Strub, falando do assassino. John Lennon e Yoko voltavam de um estúdio chamado Record Plant, no centro da cidade. Eles estiveram lá no começo da noite e, por volta das 22 horas, saíram — Lennon disse que comeria alguma coisa e em seguida iria para casa.

John Lennon morreu no momento em que seu último disco — Double Fantasy — está sendo lançado nos Estados Unidos, com muitos elogios por parte dos críticos. Uma morte trágica, como jamais ele imaginara:

— Parte da minha política e a de Yoko é não sermos levados a sério: somos humoristas — disse ele em uma entrevista ao jornalista David Wigg, do London Daily Express, certa vez.

— Nós somos o Gordo e o Magro. Todas as pessoas sérias, como os Kennedy, Luther King e Gandhi foram assassinadas. Nós queremos ser os palhaços do mundo. ...

Jornal da Tarde - 10 dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

Fui baleado

“O homem abaixou-se apoiado sobre o um único joelho, segurou com as duas mãos o revólver 38 e estendeu os braços, na posição típicade um atirador profissional. Acertou o ombro, opeito, o braço e a cabeça de John Lennon, deixando ainda uma bala perdida entre as dobras do casaco de couro, após atravessar seu pulmão. O ex-Beatle cambaleou por um espaço e dois metros entre o dolorido espanto de sua mulher Yoko Ono e a sala da guarda do luxuoso edifício Dakota, no West Side de Nova York, e caiu murmurando: “Fui baleado”.

Antes, ao ver o casal descer de sua limusine, o atirador apenas confirmara: “Senhor Lennon?” Depois, deixou cair a arma, junto com um exemplar de “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. sdinger, ficando à espera da polícia e da celebridade. “Você sabe o que você fez?”, perguntou o porteiro. “Eu matei John Lennon″, respondeu Mark David Chapman, 25 anos de idade, natural de Honolulu, no Havaí. “Com uma sombra de sorriso irônico”, segundo Sean Strub, uma testemunha.

Enquanto isso, uma viatura da polícia disparava velozmente em direção ao Roosevelt Hospital. James Moran, o guarda que segurava o corpo de Lennon, disse que ele sangrava muito e apenas gemia, sem responder a nenhuma de suas perguntas. “Perguntei várias vezes se ele era John Lennon, para confirmar se ainda vivia. Não houve últimas palavras.” Desesperada, histérica, Yoko exigia do guarda uma resposta impossível: “Diga-me que não é verdade, diga-me que ele está bem”.

Um porta-voz do hospital informou que mais importante dos Beatles morreu logo. Os médicos tentaram transfusões e algumas técnicas para ressuscitá-lo, mas foi tudo inútil. Um deles, Elliot Gross, disse que a morte se deu por hemorragia pulmonar, às 23h45.

Autógrafo e tiros

Com o assassino foram encontrados cerca de dois mil dólares e o novo disco de Lennon e Yoko, Double Fantasy, o primeiro que o casal gravava depois de cinco anos de silêncio. Lançado há duas semanas, este Lp já estava entre os 20 mais vendidos e uma de suas canções, “Starting Over”, alcançara o décimo lugar entre as mais tocadas nas rádios.

Chapman conseguira que Lennon autografasse o disco ao sair para a gravação e esperou durante seis horas por sua volta. E só teve a possibilidade do crime porque o casal preferiu descer na porta do edifício em vez de ir com o carro até a garagem, como fazia sempre.

Em Honolulu, onde sua mulher ficou perplexa com a noticia, Chapman trabalhara como guarda de segurança, após ter fracassado como músico de rock. A polícia informou sobre a prisão de Chapman, mas não revelou em qual distrito está detido. As ameaças de morte aparecem de todos os lados e um policial disse aos jornalistas que “não queremos um novo Lee Harvey Oswald. “Se lembram de Jack Ruby?” ...

Jornal da Tarde - 11 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

O grito de dor de Yoko, os Beatles e a cremação

O corpo de John Lennon foi cremado ontem ao entardecer, no crematório Femcliff em Hartsdale, Nova York. Fora removido do Instituto Médico Legal por volta do meio-dia, sendo enviado para a luxuosa capela funerária Frank E. Campbell, na ilha de Manhattan. Depois, sob forte guarda policial, chegou ao crematório.

Yoko Ono evitou que a imprensa fosse antecipadamente informada e a cerimônia foi tão íntima quanto ela desejava. Ringo Starr, o mais velho dos Beatles, e Julian, o filho de Lennon com sua primeira mulher Cynthia Powell, com 17 anos de idade, estiveram presentes à cerimônia. A vigília silenciosa em memória de Lennon, anunciada anteontem por Yoko num comunicado, será realizada domingo, às 14h (18h no Brasil). Ela quer que todos os amigos e fãs pensem e rezem por John Lennon, “onde quer que estejam no momento”.

Paul McCartney, em Londres, informou ontem que não iria a Nova York para a cerimônia fúnebre, “mas farei sozinho minha homenagem a John, não deixarei de estar pensando nele”. George Harrison, o mais jovem dos Beatles, com 35 anos, apareceu ‘finalmente para os jornalistas.

— Estou surpreso e consternado. É um escândalo que uma pessoa possa assassinar a alguém quando evidentemente não conseguiu por ordem em sua própria existência. Depois de tudo que passamos juntos, eu sentia e sinto um grande carinho e respeito por John. Roubar uma vida é o pior ultraje que existe. Esse assalto perpétuo sobre o direito da outra pessoa chega ao máximo quando se usa uma arma de fogo. Harrison disse ainda que não via Lennon há mais de dois anos, mas que ambos se falavam regularmente pelo telefone.

O drama no hospital

“Temos um caso de tiro no peito”, gritou um policial ao entrar anteontem na sala de emergência do Hospital Roosevelt, “e já está aí na porta”. É assim que Alan Weiss, jornalista da rede ABC de Televisão, que estava na sala de emergência por ter sofrido um acidente de moto, narra a última cena de John Lennon:

“Então as portas foram abertas com violência e seis ou oito policiais entraram correndo ao redor de uma maca. Doutor McBride e outros médicos que cuidavam de mim me largaram imediatamente e ouvi um policial sussurar: ‘É John Lennon’. Tive certeza disto logo em seguida, quando Yoko, parecendo em estado de choque, entrou na sala amparada por outro policial. Ela não chorava, tinha apenas uma expressão perplexa.

Saí da cama mancando e corri ao telefone para falar com a redação. Ao passar ao lado da maca em que estava John Lennon, quase não pude vê-lo através de tantos médicos e enfermeiras. Quando voltei, vi que ele havia sido despido e que toda a equipe trabalhava febrilmente na parte superior de seu corpo”. Por volta das 23h40, ouvi a voz de Yoko Ono. Era muito mais que um grito, era um guincho. Ela urrava ‘não, não, não’ sem parar.”

Cinco minutos mais tarde os policiais a levaram pela porta dos fundos, e o último deles enfiou as roupas de Lennon num saco marrom. Estava tudo acabado.” ...

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

“Não deixa de ser cômico perceber que o que eles querem dizer é que o sonho não acabou”. Assim, no tempo presente, o crítico musical Ezequiel Neves concluia sua análise sobre o disco Double Fantasy, de John Lennon e Yoko Ono, em seu texto “A música, agitando Nova York. Apesar do frio e da neve”, publicado no Jornal da Tarde de 8 de dezembro de 1980 sobre aquele e outros lançamentos musicais.

John Lennon estava vivo quando os leitores do Jornal da Tarde daquela segunda-feira compraram seus exemplares nas bancas ou receberam seus jornais em casa ou no local de trabalho. Os leitores que deixaram para ler de noite a resenha do singular crítico brasileiro que por aqueles dias estava em Nova York teriam outra sensação horas depois. John Lennon não estava mais entre nós no fim daquela noite.

Frases como “Lennon pode dar-se a esse luxo... Lennon é um dos pilares...” e a própria frase final passaram a soar desconfortavelmente estranhas. O Beatle que junto com outros Beatles mudaram o mundo em alguns poucos anos na década de 60 foi brutalmente assassinado a tiros no fim da noite daquele dia 8.

Não só um texto da seção de música de um jornal no Brasil, mas muitas coisas passariam a não fazer mais sentido a partir dali, como mostram as reações mundiais diante da incredulidade com o que aconteceu naquela calçada de Nova York em 8 de dezembro de 1980.

Leia a resenha de Ezequiel Neves e trechos da cobertura da morte nos dias seguintes.

Jornal da Tarde - 8 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

A música, agitando Nova York. Apesar do frio e da neve

Agitação, com os lançamentos de fim de ano: há discos para todas as exigências. De Lennon ao New Wave.

Ezequiel Neves de Nova York, especial para o JT

Embora caia neve, Nova York — a Big Apple, está fervendo. É um pulsar frenético que vem de todos os cantos, como se a música brotasse do concreto gelado, do asfalto escorregadio, das próprias pessoas encapotadas. A música está presente em todos os lugares, o ritmo é sempre irresistível, e isso mantém a cidade vibrando, embora o sol se esconda às cinco da tarde. Aproximam-se as festas de fim de ano e as gravadoras lançam, todas ao mesmo tempo, seus trunfos sonoros. O disco aqui é bem mais barato do que no Brasil.

Por seis dólares, ou cinco, o americano tem ao seu dispor os últimos petiscos de John Lennon e Yoko Ono, Stevie Wonder, Neil Young, Rod Stewart e Eagles, todos eles veteranos e de sucesso garantido. Mas há lugar também para grupos e artistas da New Wave, pois os adolescentes gostam de novidades. E, quase sempre, discos novos do The Clash, Talking Heads, Gang of Four, Dire Straits e Nina Hagen possuem tanto, ou maior grau de criatividade do que os de medalhões do rock.

Lennon, 40 anos. Com recado no céu.

No dia 9 de outubro John Lennon completou 40 anos — idade crítica para qualquer rock’n roller que se preze. Mas Yoko Ono, muito esperta, aliviou a tensão do marido contratando um avião que várias vezes sobrevoou os céus de Manhattan telegrafando, em letras de fumaça branca, a mensagem: “Happy birthday John” (“Feliz aniversário John”). Os transeuntes vibraram, os beatle-maníacos se comoveram até as lágrimas.

Quase um mês e meio depois, no dia 18 de novembro, chega às lojas Double Fantasy, o primeiro disco de Lennon depois de um trincado e voluntário silêncio de cinco anos. Mas Lennon não está sozinho no Lp. O disco é dividido irmamente entre ele e Yoko, sete faixas para cada um, nem mais, nem menos. O próprio ex-beatle apressou-se em explicar através da imprensa: “Double Fantasy é como uma peça de teatro — nós a escrevemos e somos os atores. É John e Yoko, é pegar ou largar. Yoko me faz sentir inteiro. Não quero cantar se ela não estiver lá comigo. Somos como conselheiros espirituais”.

Felizmente Double Fantasy (que a WEA brasileira lançará no próximo dia 15) não é um disco conceitual como aqueles horríveis Two Virgins, Unfinished Music N. 2 e Wedding Album, todos lançados em 69 celebrando a paixão desenfreada do casal Lennon/Yoko. Fantasy é uma espécie de bolo de aniversário dos 12 anos de casamento dos dois e, embora alguns apressados o comparem a “Cenas de Um Casamento”, de Ingmar Bergman, o disco se parece mais a um filme doméstico feito em super-8 preto e branco.

Essa impressão começa na capa — meio fora de foco e muito escura — e espalha-se pelas 14 faixas com sofreguidão avassaladora. Ao contrário dos personagens de Bergman, tremendamente universais, o mundinho dos Lennons tem limits muito estreitos, um triângulo replet de clichés e lugares comuns englobando marido, mulher e o filho Sean, de cinco anos.

Mas afinal, Lennon pode dar-se a esse luxo, pois sempre foi o Mick Jagger dos Beatles. Seu ego, em tamanho, é idêntico ao do líder dos Stones e, mais que Jagger, Lennon é um dos pilares principais da “aristocracia proletária” — aquela legião de garotos pobres ingleses que, graças ao rock, se transformaram em superstars biliardários.

Seu silêncio fonográfico de cinco anos foi dos mais lucrativos, Numa troca de papéis, Yoko passou a cuidar de suas finanças, enquanto ele cuidava do filho Sean e da criação de gado Holstein em uma de suas fazendas. Em julho desse ano, por exemplo, uma de suas vacas voi vendida, numa feira em Siracusa, por 265 mil dólares. Uma quantia mínima se levarmos em conta que, além dos royalties dos Lps dos Beatles, as propriedades dos Lennons englobam meia dúzia de casas e mansões espalhadas por Long Island e Palm Beach, cinco apartamentos no fechadíssimo edifício Dakota, em Nova York, e quatro fazendas para produzir leite.

Em Double Fantasy percebe-se que o silêncio de Lennon gerou uma certa gagueira criativa. O disco se salva apenas porque ele é um grande roqueiro. Qualquer conceituação sobre o significado de suas letras equivale a um mergulho no óbvio ululante. Entre mútuas declarações de amor eterno e sombras de receio de perda, o casal Lennon alinhava baladas de amor a roquinhos dançáveis, como se quisessem passar a borracha no tempo. Não deixa de ser cômico perceber que o que eles querem dizer é que o sonho não acabou.

Jornal da Tarde - 9 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

Primeiras informações

Na edição do dia seguinte, ainda eram poucas as informações sobre as circistâncias do assassinato de Lennon:

“Segundo a polícia norte-americana, os tiros — quatro, cinco ou seis, não se sabe direito — foram disparados por um desequilibrado mental. Alguns desses tiros — as informações também não coincidem — atingiram e mataram na madrugada de hoje o ex-beatle John Lennon, quando ele passava, em companhia de sua mulher, Yoko Ono, na frente do edifício onde os dois moram, no bairro de Manhattan, em Nova York.

John Lennon, compositor, junto com Paul MacCartney, das mais famosas músicas do conjunto inglês, morreu aos 40 anos. As notícias sobre a sua morte, de madrugada, ainda eram controvertidas, embora pelo menos o nome de uma pessoa — Sean Strub —aparecesse como testemunha do assassinato, ou pelo menos dos momentos que o seguiram.

Sean Strub caminhava pela rua quando diz ter escutado quatro tiros. Ele afirmou que, segundo deduziu e segundo outras pessoas lhe contaram, o assassino — um homem de cerca de 35 anos, um pouco gordo, vestindo uma jaqueta de couro — estaria escondido na entrada do famoso edifício Dakota, no lado oeste do Central Park, esperando a chegada de Lennon.

“Ele estava com uma cara risonha quando a policia o levou”, disse Strub, falando do assassino. John Lennon e Yoko voltavam de um estúdio chamado Record Plant, no centro da cidade. Eles estiveram lá no começo da noite e, por volta das 22 horas, saíram — Lennon disse que comeria alguma coisa e em seguida iria para casa.

John Lennon morreu no momento em que seu último disco — Double Fantasy — está sendo lançado nos Estados Unidos, com muitos elogios por parte dos críticos. Uma morte trágica, como jamais ele imaginara:

— Parte da minha política e a de Yoko é não sermos levados a sério: somos humoristas — disse ele em uma entrevista ao jornalista David Wigg, do London Daily Express, certa vez.

— Nós somos o Gordo e o Magro. Todas as pessoas sérias, como os Kennedy, Luther King e Gandhi foram assassinadas. Nós queremos ser os palhaços do mundo. ...

Jornal da Tarde - 10 dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

Fui baleado

“O homem abaixou-se apoiado sobre o um único joelho, segurou com as duas mãos o revólver 38 e estendeu os braços, na posição típicade um atirador profissional. Acertou o ombro, opeito, o braço e a cabeça de John Lennon, deixando ainda uma bala perdida entre as dobras do casaco de couro, após atravessar seu pulmão. O ex-Beatle cambaleou por um espaço e dois metros entre o dolorido espanto de sua mulher Yoko Ono e a sala da guarda do luxuoso edifício Dakota, no West Side de Nova York, e caiu murmurando: “Fui baleado”.

Antes, ao ver o casal descer de sua limusine, o atirador apenas confirmara: “Senhor Lennon?” Depois, deixou cair a arma, junto com um exemplar de “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. sdinger, ficando à espera da polícia e da celebridade. “Você sabe o que você fez?”, perguntou o porteiro. “Eu matei John Lennon″, respondeu Mark David Chapman, 25 anos de idade, natural de Honolulu, no Havaí. “Com uma sombra de sorriso irônico”, segundo Sean Strub, uma testemunha.

Enquanto isso, uma viatura da polícia disparava velozmente em direção ao Roosevelt Hospital. James Moran, o guarda que segurava o corpo de Lennon, disse que ele sangrava muito e apenas gemia, sem responder a nenhuma de suas perguntas. “Perguntei várias vezes se ele era John Lennon, para confirmar se ainda vivia. Não houve últimas palavras.” Desesperada, histérica, Yoko exigia do guarda uma resposta impossível: “Diga-me que não é verdade, diga-me que ele está bem”.

Um porta-voz do hospital informou que mais importante dos Beatles morreu logo. Os médicos tentaram transfusões e algumas técnicas para ressuscitá-lo, mas foi tudo inútil. Um deles, Elliot Gross, disse que a morte se deu por hemorragia pulmonar, às 23h45.

Autógrafo e tiros

Com o assassino foram encontrados cerca de dois mil dólares e o novo disco de Lennon e Yoko, Double Fantasy, o primeiro que o casal gravava depois de cinco anos de silêncio. Lançado há duas semanas, este Lp já estava entre os 20 mais vendidos e uma de suas canções, “Starting Over”, alcançara o décimo lugar entre as mais tocadas nas rádios.

Chapman conseguira que Lennon autografasse o disco ao sair para a gravação e esperou durante seis horas por sua volta. E só teve a possibilidade do crime porque o casal preferiu descer na porta do edifício em vez de ir com o carro até a garagem, como fazia sempre.

Em Honolulu, onde sua mulher ficou perplexa com a noticia, Chapman trabalhara como guarda de segurança, após ter fracassado como músico de rock. A polícia informou sobre a prisão de Chapman, mas não revelou em qual distrito está detido. As ameaças de morte aparecem de todos os lados e um policial disse aos jornalistas que “não queremos um novo Lee Harvey Oswald. “Se lembram de Jack Ruby?” ...

Jornal da Tarde - 11 de dezembro de 1980

Notícia sobre a morte de John Lennon no Jornal da Tarde em 1980. Foto: Acervo Estadão

O grito de dor de Yoko, os Beatles e a cremação

O corpo de John Lennon foi cremado ontem ao entardecer, no crematório Femcliff em Hartsdale, Nova York. Fora removido do Instituto Médico Legal por volta do meio-dia, sendo enviado para a luxuosa capela funerária Frank E. Campbell, na ilha de Manhattan. Depois, sob forte guarda policial, chegou ao crematório.

Yoko Ono evitou que a imprensa fosse antecipadamente informada e a cerimônia foi tão íntima quanto ela desejava. Ringo Starr, o mais velho dos Beatles, e Julian, o filho de Lennon com sua primeira mulher Cynthia Powell, com 17 anos de idade, estiveram presentes à cerimônia. A vigília silenciosa em memória de Lennon, anunciada anteontem por Yoko num comunicado, será realizada domingo, às 14h (18h no Brasil). Ela quer que todos os amigos e fãs pensem e rezem por John Lennon, “onde quer que estejam no momento”.

Paul McCartney, em Londres, informou ontem que não iria a Nova York para a cerimônia fúnebre, “mas farei sozinho minha homenagem a John, não deixarei de estar pensando nele”. George Harrison, o mais jovem dos Beatles, com 35 anos, apareceu ‘finalmente para os jornalistas.

— Estou surpreso e consternado. É um escândalo que uma pessoa possa assassinar a alguém quando evidentemente não conseguiu por ordem em sua própria existência. Depois de tudo que passamos juntos, eu sentia e sinto um grande carinho e respeito por John. Roubar uma vida é o pior ultraje que existe. Esse assalto perpétuo sobre o direito da outra pessoa chega ao máximo quando se usa uma arma de fogo. Harrison disse ainda que não via Lennon há mais de dois anos, mas que ambos se falavam regularmente pelo telefone.

O drama no hospital

“Temos um caso de tiro no peito”, gritou um policial ao entrar anteontem na sala de emergência do Hospital Roosevelt, “e já está aí na porta”. É assim que Alan Weiss, jornalista da rede ABC de Televisão, que estava na sala de emergência por ter sofrido um acidente de moto, narra a última cena de John Lennon:

“Então as portas foram abertas com violência e seis ou oito policiais entraram correndo ao redor de uma maca. Doutor McBride e outros médicos que cuidavam de mim me largaram imediatamente e ouvi um policial sussurar: ‘É John Lennon’. Tive certeza disto logo em seguida, quando Yoko, parecendo em estado de choque, entrou na sala amparada por outro policial. Ela não chorava, tinha apenas uma expressão perplexa.

Saí da cama mancando e corri ao telefone para falar com a redação. Ao passar ao lado da maca em que estava John Lennon, quase não pude vê-lo através de tantos médicos e enfermeiras. Quando voltei, vi que ele havia sido despido e que toda a equipe trabalhava febrilmente na parte superior de seu corpo”. Por volta das 23h40, ouvi a voz de Yoko Ono. Era muito mais que um grito, era um guincho. Ela urrava ‘não, não, não’ sem parar.”

Cinco minutos mais tarde os policiais a levaram pela porta dos fundos, e o último deles enfiou as roupas de Lennon num saco marrom. Estava tudo acabado.” ...

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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