Ney Matogrosso deixava o Secos & Molhados há 50 anos


Jornal da Tarde revelou a saída em primeira mão em 10 de agosto de 1974. Cantor saiu do grupo de maior sucesso da música brasileira no momento do lançamento do segundo disco

Por Edmundo Leite
Atualização:
Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad sem maquiagem antes do estouro do Secos & Molhados.  Foto: Acervo Estadão

Ney Matogrosso canta no estádio Allianz Parque em São Paulo quando completa cinco décadas de uma decisão que mudou os rumos da sua vida e da música brasileira. Também num sábado 10 de agosto, só que em 1974, a ruptura do cantor com o Secos & Molhados, o grupo que revolucionou e tomou de assalto a música brasileira com apresentações e um disco extraordinário em 1973, foi revelada num furo jornalístico do Jornal da Tarde.

A reportagem “O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor”, publicada sem identificação de autoria, informava algo até então inédito: “Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados”.

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Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1994

Reportagem sobre a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde de 10 de agosto de 1974. Foto: Acervo Estadão

O texto conta em detalhes a insatisfação de Ney com os rumos do grupo: “— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.”

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Ao lado da reportagem, outro texto, este de autoria do crítico musical Maurício Kubrusly, analisava o segundo disco da banda que chegava às lojas naque dia à luz da saída de Ney Matogrosso e de Gérson Conrad, o outro integrante do grupo, e também trazia informações inéditas, como a que eles haviam gravado um vídeo para o Fantástico, da TV Globo, no dia anterior, para ser exibido no domingo. Leia a íntegra dos textos e também a entrevista de João Ricardo, o criador, cérebro e dono do Secos & Molhados, publicada cinco dias depois.

O cantor Ney Matogrosso durante apresentação do Secos & Molhados na capital paulista em 1973.  Foto: Kenji Honda/Estadão

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1974

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O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor

Ele é a estrela do grupo. Mas, como seu colega Gérson Conrad, prefere não continuar. Apesar do sucesso. Apesar dos 800 mil LPs vendidos.

Cem cruzeiros: uma nota de 50, quatro de 10, e duas de 5. É todo o dinheiro que Ney Matogrosso tem para passar este fim-de semana. Uma parte é para pagar a luz de casa. que a Light cortou desde quinta-feira passada. O que sobrar é o lucro da sua carreira como cantor do Secos e Molhados — o único conjunto brasileiro capaz de lotar o Maracanãzinho, parar as cidades onde faz shows e em alguns meses vender mais discos que o invencível Roberto Carlos (800 mil cópias só no LP de estréia, segundo informações do próprio grupo).

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Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados. E, mesmo depois de pagar a conta de luz, ele sairá do conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou, em agosto de 1973.

Ontem, um ano depois, o segundo LP do grupo chegou às lojas de discos de todo o pais. Entre o primeiro e o segundo, muita coisa aconteceu. Para o LP de estréia, a Continental não se arriscou a lançar no mercado mais do que 500 cópias. Afinal, era apenas uma” estréia e, portanto, um investimento duvidoso. Rapidamente, sua linha de produção teve que deixar de lado outros contra

tados da gravadora, para cuidar apenas da prensagem de milhares de “Rosas de Hiroshima”, “Viras”, e outros, tentando atender aos pedidos que vinham de todo o país.

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Um ano, 800 mil cópias vendidas e alguns milhões de cruzeiros depois, a Continental investe em Secos e Molhados com uma segurança pouco comum na história da indústria fonográfica brasileira. E os resultados são mais fantásticos do que se esperava: antes mesmo de ser lançado, o novo LP já tinha 300 mil cópias vendidas. Apesar de todo esse sucesso, o lucro de Ney Matogrosso — vocalista e principal estrela do grupo — foi menos de 100 cruzeiros. Por que? Ney não sabe e não quer saber.

A única coisa que ele sabe é que está deixando o conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou. E é exatamente por isso que está saindo: porque só tem 100 cruzeiros. Se fossem 100 mil, talvez ele não saísse.

— Faz muito tempo que Secos e Molhados virou maquina de ganhar dinheiro. O trabalho que começamos a desenvolver, agora esta em último lugar na relação das prioridades. O que importa é quanto cada sorriso, cada entrevista, cada letra, cada música pode render em cruzeiros. E mais nada.

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Gérson Conrad, 22 anos, o terceiro integrante do Secos e Molhados também deixou o grupo. Vai voltar para a Escola de Arquitetura, de onde acha que nunca deveria ter saído. Gérson concorda com Ney: “O sucesso do grupo (principalmente o financeiro) em vez de incentivá-lo à criação, fechou suas portas para os compositores brasileiros. Afinal, e muito mais rendoso e de sucesso garantido inventar musiquinhas para textos de poetas famosos.”

Por isso, o novo LP tem apenas uma música de Gérson. As outras onze são de João Ricardo, o chefe do grupo: “Ele preferiu fazer parceria com Júlio Cortazar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa.

Foi graças a essa fórmula que, no primeiro LP, Ricardo ganhou uma incalculável fortuna em direitos autorais. Com as onze músicas do novo disco, ele certamente vai ficar rico.”

Mas Gérson não acredita que suas músicas façam menos sucesso que as de João Ricardo. É verdade que “O Vira”, de autoria do chefe do conjunto, quase se aposentou em primeiro lugar nas paradas de sucesso. Mas foi Gérson quem compôs a música de “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes.

Gérson acha que João Ricardo jamais o perdoou pelo sucesso dessa faixa do primeiro LP, tanto nas paradas de sucesso como nos shows ao vivo. E conta que num dos espetáculos do conjunto Ney teve que cantar a música três vezes, porque o público não parava de aplaudir e pedir bis. Irritado,

conta Gérson, João Ricardo saiu do palco e foi para os bastidores, gritando, chutando cadeiras e dizendo que era proibido repetir música “sem a minha ordem”.

Outro problema que levou Gérson a deixar o Secos e Molhados é uma crise na área administrativa do grupo. A mesma desorganização de agora foi o motivo que provocou o afastamento de Moracy Do Val do cargo de empresário (acusado de má administração). Agora, depois da substituição

de Moracy. Gérson também tem queixas do novo empresário, o jornalista João Apolinário, pai de João Ricardo.

Com a saída de Moracy Do Vai, foi dissolvida a firma que controlava os interesses do grupo, a SPPR, e em seu lugar surgiu a “S e M Produções”. Só que, enquanto Moracy era o empresário, os três integrantes (mais o próprio Moracy) formavam uma sociedade onde os lucros eram repartidos

entre quatro pessoas. Já a nova firma — diz Gérson — tem apenas um dono, João Ricardo. E como dono, teria ele proposto a Gérson e Ney a participação na empresa não mais como sócio e sim como empregados. Ney já havia decidido deixar o grupo antes mesmo de lhe fazerem qualquer proposta; ficou faltando apenas a resposta de Gérson. E ele se recusou a participar do conjunto como contratado.

Segundo Gérson, a maior parte do patrimônio do Secos e Molhados conseguida com o dinheiro do grupo está em nome de João Ricardo e seu pai, inclusive os equipamentos da sede da “S e M Produções” e a nova editora musical do grupo.

Quanto a Ney Matogrosso, ele acha que com esses 100 cruzeiros vai passar o melhor fim-de-semana de sua vida, “como nos bons tempos, quando eu não tinha dinheiro nem para comer.”

— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.

O que mais tranqüiliza Ney é saber que João Ricardo não demonstrou qualquer surpresa ou preocupação quando ele o avisou de que ia deixar o grupo. Como se não soubesse — diz Ney — que o fenômeno conseguido por Secos e Molhados é atribuído não a um conjunto de três pessoas, mas a um cantor (com seu raro registro vocal, sua excelente figura cênica) e seus acompanhantes.

O cantor Ney Matogrosso e o companheiro do grupo, João Ricardo, durante apresentação dos Secos e Molhados na capital paulista.SP. 07/3/1974. Foto: Acervo/Estadão

Um disco impecável, como os jingles bem feitos.

MAURÍCIO KUBRUSLY

Chega às loja o segundo e talvez último LP do Secos Molhados. Se fosse apenas o segundo, e não também o último, seria o acontecimento mais importante do ano para a indústria fonográfica e, também, para o comércio do setor. Musicalmente — e aí não interessa se é segundo ou último — o disco tem apenas a qualidade e a eficácia de um jingle Impecável.

Bem mais cuidado que o de estréia, o novo LP apresenta uma produção mais rica (financeiramente) e arranjos um pouquinho mais elaborados. Ney Matogrosso se aperfeiçoa e surge como excelente vocalista. Chega mesmo a abandonar, em algumas faixas, o seu cantar agudissimo, que já se confundia com a marca Secos e Molhados. Porém, mesmo mais grave, é ótimo intérprete. Isto é uma garantia para a carreira que hoje começa, isolada do grupo. (Desfeita à sociedade, parece nítido que João Ricardo sairá perdendo, a longo prazo).

Desde a capa, os cuidados da produção vão surgindo, mas não disfarçam a certeza do déjà vú. Porque o requinte da capa, negra e sem palavras, não vai alem da própria capa. No conjunto, o novo LP não esconde surpresas. A surpresa maior surge da possibilidade de ser este disco um epitáfio.

Nas rádios, “Flores Astrais” e “Voo”, exatamente as escolhidas para o compacto de promoção, anunciam duas reedições: da música e do sucesso do LP de estréia. Portanto — por que tudo se repete —não é necessário comprar o disco. Qualquer pessoa que ou ça rádio e/ou veja televisão a partir de hoje vai se fartar de Secos e Molhados. A estação do verme que passeia na lua apenas começa,

embora seja última. Ouviremos esta, e as outras faixas, muito além da saturação. E quem quiser, levará milhares de linhas sobre o tema — concorrendo com a de Richard Nixon a renúncia de Ney Matogrosso terá destaque nas páginas coloridas das revistas. Ao invés da coleções de “explicações” para o su cesso de Secos Molhados, lançadas no ano passado, deveremos ter agora a retaliação de um fim de caso.

Quanto aos jornais, começamos hoje. Somando tudo, teremos uma avalanche de Secos Molhados. Assim, quem estiver sujeito a ela, deve pensar a respeito. Para concluir o que acha de tudo isto, antes que alguém pense por nós. E decida por nós também. O que, parcialmente, já aconteceu, pois todos os envolvidos com este disco têm opiniões fixadas e, pelo menos em parte, conhecidas. E certo que, daqui para a frente, tudo vai ser diferente. Mas não é possível alterar o que aconteceu até ontem.

A VOZ DO DONO

O Secos e Molhados, conduzido pelo hábil João Ricardo, nunca disfarçou a ganância pelo sucesso que o guiava. Esta gula não deve ser acompanhada por qual quer sentimento de culpa — que teria mais razão de existir exatamente entre os invejavam e invejam o sucesso maior. O Secos e Molhados conseguiu o que pretendia e muito mais. Portanto: parabéns.

Agora, quando o primeiro LP deixa de vender no Brasil, é possível que o “Vira” abra novo mercado em Portugal; “Sangue Latino” e “Tecer Mundo” — esta última, do novo disco — poderão lançar o conjunto em toda a América Latina. O esquema, bem arquitetado, deveria ser eficaz, pois previa quase tudo — menos, o fim da união. Conquistando os mercados próximos, o Secos e Molhados repetiria o que já conseguiram Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, etc. E isto poderia maltratar Moracy do Val, ex-empresário do ex-conjunto, porque ele sonhava levá-lo à conquista do mundo, alegando talvez: se os Beatles dominaram todos os marcados a partir de Liverpool, o Secos e Molhados pode repetir a proesa e partir do Bexiga.

Para consumo interno, programava-se uma temporada no Tuca, depois do grande show de lançamento, terça-feira próxima, no Teatro Aquarius. E mais: distribuição de cartazes, selos, envelopes e até camisetas com fotos do grupo; anúncios, nos grandes jornais das principais cidades

do pais, com uma contagem regressiva do lançamento do disco, contagem que terminou exatamente ontem; filmes publicitários em vários cinemas de muitas cidades; balões gigantes, colocados em pontos de São Paulo e do Rio, com os dizeres: “Já à venda o novo LP, do Secos e Molhados” e uma série de outras iniciativas.

Também nesta programação não estava previsto o fim. E nem a separação justifica qualquer cancelamento. Cada detalhe do lançamento desse disco confirma uma extraordinária eficiência profissional, exemplo para a multidão de amadores que povoa a música popular. E o derradeiro LP

do grupo com Ney Matogrosso deverá mesmo vender muito, o que podo torturar de inveja, particularmente, Maria Alcina e Edy Star — os que acreditaram que rímel e baton seriam suficientes para conseguir a vitória.

Mas, no meio de tanto e merecido faturamento, por favor não falem de “revolução de padrões morais”, “protesto”, “desafio”, “redefinição de parâmetros sexuais”, etc. Num livro-caixa não há espaço para tais especiarias e perigos. Por exemplo; se não tivesse certezas, a Rede Globo não

aceitaria como afilhados o Secos e Molhados. Nem te ria gravado, ontem, o tape que será mostrado no “Fantástico” de amanhã. Porque, na televisão, até o comprimento das saias é determinado “pelo horário em que a cena será vista e outras, conveniências. Não se permitem riscos, muito menos na melindrosa área moral.

As piadas possíveis sobre o passeio do verme na lua serão somente piadas. Não se consegue ir além da superfície na música do Secos e Molhados. É música alegre, descontraída, não se preocupando com qualquer denúncia. Não faz perguntas, não incomoda ninguém — a não ser, é claro

aos concorrentes. Secos e Molhados é puro, leve entretenimento. Quando, no disco de despedida, garantem que na orquestra são queles que desafinam, estão mentindo. Ou — o que é mais provável — apenas brincando.

OUTRAS VOZES

Há outros que também já definiram opiniões a respeito, como os revendedores e donos de lojas — estão justamente eufóricos. Por que, afinal, aparece mais ‘um que vende e não se chama Roberto Carlos nem tem sotaque estrangeiro. E é magnífico, e lucrativo, romper a rotina de negociar

eternamente com discos dos mesmos artistas. (Levar otimismo e entusiasmo ao estacionado mercado fonográfico foi outro mérito do grupo. Pena que tudo isto talvez esteja terminando, exatamente a partir do lançamento do novo LP.)

A gravadora, pelo menos até hoje, também estava eufórica e merecia este prêmio. Porque a Continental, há alguns anos, investe cm novos, ininterruptamente. E deve ter sido reconfortante o aparecimento de um Secos e Molhados depois do Grupo Capote, Pessoal do Ceará, Paulo Bagunça e sua Tropa Maldita, Terço e tantos outros — que, talvez, rendam apenas prestigio. Sim, deve ter sido reconfortante — tão reconfortante quanto deve ser desesperador, hoje, ler aqui esta notícia. Mas tomara que a Continental, compensada pela overdose financeira de Secos e Molhados, continue a testar novos.

Finalmente, o novo disco do grupo pode servir, ainda, como fundo para uma constatação igualmente repetitiva: triste sina a da música popular, que sempre tem de se repetir... Como Ray Conniff ou Sérgio Mendes, o Secos e Molhados estabeleceu o seu grupo sound e começava a recorrer ao xerox. Assim, como todos cantavam, após a primeira audição, o jingle da Pepsi (“Só tem amor quem tem amor pra dar”), todos cantarão — num adeus — “o verme passeia/na lua cheia”. E a força oculta que faz com que nos sintamos gratificados com repetições, estará agindo outra vez.

Sem atroiçoar qualquer expectativa, a voz aguda de Ney Matogrosso irá repetindo, nas rádios e TVs, o que todos esperam. E surgirá a vontade de possuir aquilo de que todos gostam, todos querem; a necessidade de se integrar na solidária maioria. Mas, se integrar como dono, participar tendo a posse — comprando o disco.

O apelo é quase invencível. Tanto que João Apolinário abandonou a sisuda carreira de critico teatral e se tornou letrista e empresário. Agora, ele assina, com o filho João Ricardo, a maioria das faixas do disco. E, com o filho, divide a gestão dos negócios do Secos e Molhados. Negócios que vão muito bem, garantidos e motivados por jingles irrepreensíveis. O que deve incomodar, jamais, ao pai, ao filho, a ninguém — porque produzir jingles não é pecado. Principalmente quando o produto pode estar sendo retirado do mercado.

Jornal da Tarde – 15 de agosto de 1974

Entrevista de João RIcardo explicando a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde. Foto: Acervo Estadão

Pelo menos isto João Ricardo explicou: a saída de Ney.

Tumultuada e nervosa, a entrevista - que o ex-líder do Secos e Molhados deu ontem deixou muitas perguntas sem resposta. De concreto, esta explicação: Ney Matogrosso disse que precisava parar; e João Ricardo achou que não devia impedir.

Com 20 minutos de atraso e um nervosismo visível, João Ricardo, ex-líder do conjunto Secos e Molhados, enfrentou ontem dezenas de fotógrafos, repórteres e câmeras de tevê para explicar a saída dos dois outros integrantes do grupo: Ney Matogrosso e Gerson Conrad.

Foi uma entrevista tensa de parte a parte e tumultuada desde o início. Um pouco por causa do aparato — entrevistado e entrevistadores foram colocados em torno de uma grande mesa de vidro oval — um pouco por causa da interferência constante dos dois advogados que sempre acompanham João Ricardo; um pouco ainda devido à agressividade de algumas perguntas e das evasivas de quase todas as respostas.

Apesar de muito nervoso (suas mãos tremiam e suavam), notou-se que João havia realmente se preparado para a entrevista. A começar pelo lugar que escolheu para sentar: a única cadeira colocada sob um pôster de Ney Matogrosso. Foi com calculada tranqüilidade que ele ficou surpreso com as primeiras perguntas: É verdade que o motivo da separação do grupo foi a briga para escolher as músicas do novo LP? E verdade que você barrou “Trem Noturno”, de Gerson Conrad, deste mesmo LP?

— Jamais houve qualquer tipo de disputa entre nós. Eu componho desde 15 anos. e inclusive o primeiro LP lançado por nós já estava praticamente pronto quando convidei Ney e Gerson para trabalharem comigo. Quanto a “Trem Noturno”, não foi incluído no LP por não estar de acordo com a filosofia do Secos & Molhados. Aliás, quem me chamou atenção para o fato foi o Ney.

João Ricardo nega-se também a acreditar que Ney e Gerson tenham feito acusações contra ele, como os jornais noticiaram: “Conheço Ney há muito tempo e posso afirmar que ele jamais falaria certas coisas, ainda mais sem motivo. A única coisa que sei sobre sua saída é que ele me disse:

“Vou parar porque é preciso”.

Assim, João Ricardo explica por que não se achou no direito de tentar convencer seu solista a ficar:

— Nós sempre convivemos muito bem e eu posso entender essa atitude do Ney. As pessoas que estão de fora talvez não entendam, porque não sabem o quanto de liberdade era usado em nosso trabalho.

Quanto à saída de Gerson, João Ricardo não pode dizer nada porque “ele não me comunicou — fiquei sabendo através dos jornais quando voltei do Rio, depois de gravar o Fantástico”.

Diante dessa declaração é que ninguém entendeu mais nada. Para os repórteres presentes continuava muito estranho dois integrantes de um conjunto pararem de repente e ainda mais que o lider do grupo não tenha sido notificado por um deles. Diante da estranheza, começaram a sugerir hipóteses sobre os motivos da saída dos integrantes, hipóteses essas baseadas em declarações deles mesmos.

Um dos motivos seria a dura liderança de João Ricardo que, segundo declarações de Gérson a um repórter, era baseada apenas em problemas pessoais do líder. Outros motivos poderiam ter sido problemas administrativos com João Apolinário (empresário do grupo e pai de João Ricardo): questões financeiras sobre a renda do primeiro LP; soluções pendentes da dissolução da primeira firma do grupo — SPPS —; problemas de relacionamento entre os quatro integrantes da firma.

João Ricardo negou todas as sugestões.

— Não tenho problemas de auto-afirmação. Se o Gerson tinha problemas de relacionamento comigo devia ter falado comigo e não com vocês. Meu pai foi escolhido para administrador da firma por sugestão unânime de nós três. E tudo que foi feito está documentado, assinado e confirmado também por nós três. Quanto ao problema de dinheiro, devo afirmar que tudo foi dividido igualmente. Se por acaso ganhei mais do que os outros, é por que sou compositor

e a lei de direitos autorais determina isso. As contas estão todas aí: não vou divulgá-las agora porque não tenho o direito de dizer quanto cada um ganhou, sem a aprovação deles. Se depois da saida de Moracy do Val, primeiro empresário, eles passararn a se sentir empregados — segundo

afirmações que ouvi agora —é um problema subjetivo.

A SPPS recebeu proposta de dissolução em junho desse ano, na Justiça, por decisão de todos nós. Os problemas de relacionamento, as brigas, sempre existem. Se nós não tivéssemos desentendimentos, não seríamos normais.

Mas afinal, por que Ney Matogrosso e Gerson Conrad

saíram do conjunto? Henrique Suster, produtor do grupo nos últimos tempos, deu sua versão pessoal sobre o problema.

— O João Ricardo é o líder, o compositor, o organizador, o dono da idéia e do nome Secos e Molhados.

Mas quem se transformou em estrela do conjunto foi Ney Matogrosso, aliás descoberto por João Ricardo e cantando num estilo bem diferente do que canta agora.

Alguns repórteres gostaram da explicação, agora, já existia um motivo: a disputa pela liderança. Mas João Ricardo não gostou.

— Não é nada disso. Nunca houve disputa entre nós. E antes que qualquer coisa pudesse ficar mais clara, as perguntas e conversações paralelas foram estabelecidas.

De objetivo ficou-se sabendo, pelos advogados, que a firma SPPS está para ser dissolvida, com processo tramitando na Justiça. Que a marca Secos & Molhados pertence a João Ricardo; que atualmente não existe nenhuma firma, apenas uma marca; que eles — advogados — levantaram

as contas irregulares da ex-firma e que agora têm toda a documentação em ordem: que eles haviam entrado em contato com os advogados das partes para a prestação de contas; que as contas ficarão à disposição da imprensa assim que Ney e Gerson tomem conhecimento delas e autorizem a divulgação.

De objetivo, João Ricardo afirmou que o Secos e Molhados continua; que ainda não pensou nos nomes dos substitutos; que a vendagem do segundo LP do grupo vai muito bem — 300 mil cópias prensadas e 400 mil já vendidas; que a indicação de Cornelius para substituir Ney Matogrosso é infundada — ele nem conhece o rapaz; que por enquanto, ou seja, até 75, continuam contratados pela Continental; que ele vai descansar — partir em viagem para o Exterior.

De concreto, apenas o fim de um conjunto considerado o maior estouro dos últimos anos e que poderá resurgir com novos integrantes.

Jornal da Tarde - 6 de abril de 1974

Página do Jornal da Tarde de 6 de abril de 1974 com reportagem sobre o grupo musical Secos & Molhados. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Veja também

Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad sem maquiagem antes do estouro do Secos & Molhados.  Foto: Acervo Estadão

Ney Matogrosso canta no estádio Allianz Parque em São Paulo quando completa cinco décadas de uma decisão que mudou os rumos da sua vida e da música brasileira. Também num sábado 10 de agosto, só que em 1974, a ruptura do cantor com o Secos & Molhados, o grupo que revolucionou e tomou de assalto a música brasileira com apresentações e um disco extraordinário em 1973, foi revelada num furo jornalístico do Jornal da Tarde.

A reportagem “O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor”, publicada sem identificação de autoria, informava algo até então inédito: “Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados”.

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1994

Reportagem sobre a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde de 10 de agosto de 1974. Foto: Acervo Estadão

O texto conta em detalhes a insatisfação de Ney com os rumos do grupo: “— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.”

Ao lado da reportagem, outro texto, este de autoria do crítico musical Maurício Kubrusly, analisava o segundo disco da banda que chegava às lojas naque dia à luz da saída de Ney Matogrosso e de Gérson Conrad, o outro integrante do grupo, e também trazia informações inéditas, como a que eles haviam gravado um vídeo para o Fantástico, da TV Globo, no dia anterior, para ser exibido no domingo. Leia a íntegra dos textos e também a entrevista de João Ricardo, o criador, cérebro e dono do Secos & Molhados, publicada cinco dias depois.

O cantor Ney Matogrosso durante apresentação do Secos & Molhados na capital paulista em 1973.  Foto: Kenji Honda/Estadão

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1974

O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor

Ele é a estrela do grupo. Mas, como seu colega Gérson Conrad, prefere não continuar. Apesar do sucesso. Apesar dos 800 mil LPs vendidos.

Cem cruzeiros: uma nota de 50, quatro de 10, e duas de 5. É todo o dinheiro que Ney Matogrosso tem para passar este fim-de semana. Uma parte é para pagar a luz de casa. que a Light cortou desde quinta-feira passada. O que sobrar é o lucro da sua carreira como cantor do Secos e Molhados — o único conjunto brasileiro capaz de lotar o Maracanãzinho, parar as cidades onde faz shows e em alguns meses vender mais discos que o invencível Roberto Carlos (800 mil cópias só no LP de estréia, segundo informações do próprio grupo).

Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados. E, mesmo depois de pagar a conta de luz, ele sairá do conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou, em agosto de 1973.

Ontem, um ano depois, o segundo LP do grupo chegou às lojas de discos de todo o pais. Entre o primeiro e o segundo, muita coisa aconteceu. Para o LP de estréia, a Continental não se arriscou a lançar no mercado mais do que 500 cópias. Afinal, era apenas uma” estréia e, portanto, um investimento duvidoso. Rapidamente, sua linha de produção teve que deixar de lado outros contra

tados da gravadora, para cuidar apenas da prensagem de milhares de “Rosas de Hiroshima”, “Viras”, e outros, tentando atender aos pedidos que vinham de todo o país.

Um ano, 800 mil cópias vendidas e alguns milhões de cruzeiros depois, a Continental investe em Secos e Molhados com uma segurança pouco comum na história da indústria fonográfica brasileira. E os resultados são mais fantásticos do que se esperava: antes mesmo de ser lançado, o novo LP já tinha 300 mil cópias vendidas. Apesar de todo esse sucesso, o lucro de Ney Matogrosso — vocalista e principal estrela do grupo — foi menos de 100 cruzeiros. Por que? Ney não sabe e não quer saber.

A única coisa que ele sabe é que está deixando o conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou. E é exatamente por isso que está saindo: porque só tem 100 cruzeiros. Se fossem 100 mil, talvez ele não saísse.

— Faz muito tempo que Secos e Molhados virou maquina de ganhar dinheiro. O trabalho que começamos a desenvolver, agora esta em último lugar na relação das prioridades. O que importa é quanto cada sorriso, cada entrevista, cada letra, cada música pode render em cruzeiros. E mais nada.

Gérson Conrad, 22 anos, o terceiro integrante do Secos e Molhados também deixou o grupo. Vai voltar para a Escola de Arquitetura, de onde acha que nunca deveria ter saído. Gérson concorda com Ney: “O sucesso do grupo (principalmente o financeiro) em vez de incentivá-lo à criação, fechou suas portas para os compositores brasileiros. Afinal, e muito mais rendoso e de sucesso garantido inventar musiquinhas para textos de poetas famosos.”

Por isso, o novo LP tem apenas uma música de Gérson. As outras onze são de João Ricardo, o chefe do grupo: “Ele preferiu fazer parceria com Júlio Cortazar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa.

Foi graças a essa fórmula que, no primeiro LP, Ricardo ganhou uma incalculável fortuna em direitos autorais. Com as onze músicas do novo disco, ele certamente vai ficar rico.”

Mas Gérson não acredita que suas músicas façam menos sucesso que as de João Ricardo. É verdade que “O Vira”, de autoria do chefe do conjunto, quase se aposentou em primeiro lugar nas paradas de sucesso. Mas foi Gérson quem compôs a música de “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes.

Gérson acha que João Ricardo jamais o perdoou pelo sucesso dessa faixa do primeiro LP, tanto nas paradas de sucesso como nos shows ao vivo. E conta que num dos espetáculos do conjunto Ney teve que cantar a música três vezes, porque o público não parava de aplaudir e pedir bis. Irritado,

conta Gérson, João Ricardo saiu do palco e foi para os bastidores, gritando, chutando cadeiras e dizendo que era proibido repetir música “sem a minha ordem”.

Outro problema que levou Gérson a deixar o Secos e Molhados é uma crise na área administrativa do grupo. A mesma desorganização de agora foi o motivo que provocou o afastamento de Moracy Do Val do cargo de empresário (acusado de má administração). Agora, depois da substituição

de Moracy. Gérson também tem queixas do novo empresário, o jornalista João Apolinário, pai de João Ricardo.

Com a saída de Moracy Do Vai, foi dissolvida a firma que controlava os interesses do grupo, a SPPR, e em seu lugar surgiu a “S e M Produções”. Só que, enquanto Moracy era o empresário, os três integrantes (mais o próprio Moracy) formavam uma sociedade onde os lucros eram repartidos

entre quatro pessoas. Já a nova firma — diz Gérson — tem apenas um dono, João Ricardo. E como dono, teria ele proposto a Gérson e Ney a participação na empresa não mais como sócio e sim como empregados. Ney já havia decidido deixar o grupo antes mesmo de lhe fazerem qualquer proposta; ficou faltando apenas a resposta de Gérson. E ele se recusou a participar do conjunto como contratado.

Segundo Gérson, a maior parte do patrimônio do Secos e Molhados conseguida com o dinheiro do grupo está em nome de João Ricardo e seu pai, inclusive os equipamentos da sede da “S e M Produções” e a nova editora musical do grupo.

Quanto a Ney Matogrosso, ele acha que com esses 100 cruzeiros vai passar o melhor fim-de-semana de sua vida, “como nos bons tempos, quando eu não tinha dinheiro nem para comer.”

— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.

O que mais tranqüiliza Ney é saber que João Ricardo não demonstrou qualquer surpresa ou preocupação quando ele o avisou de que ia deixar o grupo. Como se não soubesse — diz Ney — que o fenômeno conseguido por Secos e Molhados é atribuído não a um conjunto de três pessoas, mas a um cantor (com seu raro registro vocal, sua excelente figura cênica) e seus acompanhantes.

O cantor Ney Matogrosso e o companheiro do grupo, João Ricardo, durante apresentação dos Secos e Molhados na capital paulista.SP. 07/3/1974. Foto: Acervo/Estadão

Um disco impecável, como os jingles bem feitos.

MAURÍCIO KUBRUSLY

Chega às loja o segundo e talvez último LP do Secos Molhados. Se fosse apenas o segundo, e não também o último, seria o acontecimento mais importante do ano para a indústria fonográfica e, também, para o comércio do setor. Musicalmente — e aí não interessa se é segundo ou último — o disco tem apenas a qualidade e a eficácia de um jingle Impecável.

Bem mais cuidado que o de estréia, o novo LP apresenta uma produção mais rica (financeiramente) e arranjos um pouquinho mais elaborados. Ney Matogrosso se aperfeiçoa e surge como excelente vocalista. Chega mesmo a abandonar, em algumas faixas, o seu cantar agudissimo, que já se confundia com a marca Secos e Molhados. Porém, mesmo mais grave, é ótimo intérprete. Isto é uma garantia para a carreira que hoje começa, isolada do grupo. (Desfeita à sociedade, parece nítido que João Ricardo sairá perdendo, a longo prazo).

Desde a capa, os cuidados da produção vão surgindo, mas não disfarçam a certeza do déjà vú. Porque o requinte da capa, negra e sem palavras, não vai alem da própria capa. No conjunto, o novo LP não esconde surpresas. A surpresa maior surge da possibilidade de ser este disco um epitáfio.

Nas rádios, “Flores Astrais” e “Voo”, exatamente as escolhidas para o compacto de promoção, anunciam duas reedições: da música e do sucesso do LP de estréia. Portanto — por que tudo se repete —não é necessário comprar o disco. Qualquer pessoa que ou ça rádio e/ou veja televisão a partir de hoje vai se fartar de Secos e Molhados. A estação do verme que passeia na lua apenas começa,

embora seja última. Ouviremos esta, e as outras faixas, muito além da saturação. E quem quiser, levará milhares de linhas sobre o tema — concorrendo com a de Richard Nixon a renúncia de Ney Matogrosso terá destaque nas páginas coloridas das revistas. Ao invés da coleções de “explicações” para o su cesso de Secos Molhados, lançadas no ano passado, deveremos ter agora a retaliação de um fim de caso.

Quanto aos jornais, começamos hoje. Somando tudo, teremos uma avalanche de Secos Molhados. Assim, quem estiver sujeito a ela, deve pensar a respeito. Para concluir o que acha de tudo isto, antes que alguém pense por nós. E decida por nós também. O que, parcialmente, já aconteceu, pois todos os envolvidos com este disco têm opiniões fixadas e, pelo menos em parte, conhecidas. E certo que, daqui para a frente, tudo vai ser diferente. Mas não é possível alterar o que aconteceu até ontem.

A VOZ DO DONO

O Secos e Molhados, conduzido pelo hábil João Ricardo, nunca disfarçou a ganância pelo sucesso que o guiava. Esta gula não deve ser acompanhada por qual quer sentimento de culpa — que teria mais razão de existir exatamente entre os invejavam e invejam o sucesso maior. O Secos e Molhados conseguiu o que pretendia e muito mais. Portanto: parabéns.

Agora, quando o primeiro LP deixa de vender no Brasil, é possível que o “Vira” abra novo mercado em Portugal; “Sangue Latino” e “Tecer Mundo” — esta última, do novo disco — poderão lançar o conjunto em toda a América Latina. O esquema, bem arquitetado, deveria ser eficaz, pois previa quase tudo — menos, o fim da união. Conquistando os mercados próximos, o Secos e Molhados repetiria o que já conseguiram Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, etc. E isto poderia maltratar Moracy do Val, ex-empresário do ex-conjunto, porque ele sonhava levá-lo à conquista do mundo, alegando talvez: se os Beatles dominaram todos os marcados a partir de Liverpool, o Secos e Molhados pode repetir a proesa e partir do Bexiga.

Para consumo interno, programava-se uma temporada no Tuca, depois do grande show de lançamento, terça-feira próxima, no Teatro Aquarius. E mais: distribuição de cartazes, selos, envelopes e até camisetas com fotos do grupo; anúncios, nos grandes jornais das principais cidades

do pais, com uma contagem regressiva do lançamento do disco, contagem que terminou exatamente ontem; filmes publicitários em vários cinemas de muitas cidades; balões gigantes, colocados em pontos de São Paulo e do Rio, com os dizeres: “Já à venda o novo LP, do Secos e Molhados” e uma série de outras iniciativas.

Também nesta programação não estava previsto o fim. E nem a separação justifica qualquer cancelamento. Cada detalhe do lançamento desse disco confirma uma extraordinária eficiência profissional, exemplo para a multidão de amadores que povoa a música popular. E o derradeiro LP

do grupo com Ney Matogrosso deverá mesmo vender muito, o que podo torturar de inveja, particularmente, Maria Alcina e Edy Star — os que acreditaram que rímel e baton seriam suficientes para conseguir a vitória.

Mas, no meio de tanto e merecido faturamento, por favor não falem de “revolução de padrões morais”, “protesto”, “desafio”, “redefinição de parâmetros sexuais”, etc. Num livro-caixa não há espaço para tais especiarias e perigos. Por exemplo; se não tivesse certezas, a Rede Globo não

aceitaria como afilhados o Secos e Molhados. Nem te ria gravado, ontem, o tape que será mostrado no “Fantástico” de amanhã. Porque, na televisão, até o comprimento das saias é determinado “pelo horário em que a cena será vista e outras, conveniências. Não se permitem riscos, muito menos na melindrosa área moral.

As piadas possíveis sobre o passeio do verme na lua serão somente piadas. Não se consegue ir além da superfície na música do Secos e Molhados. É música alegre, descontraída, não se preocupando com qualquer denúncia. Não faz perguntas, não incomoda ninguém — a não ser, é claro

aos concorrentes. Secos e Molhados é puro, leve entretenimento. Quando, no disco de despedida, garantem que na orquestra são queles que desafinam, estão mentindo. Ou — o que é mais provável — apenas brincando.

OUTRAS VOZES

Há outros que também já definiram opiniões a respeito, como os revendedores e donos de lojas — estão justamente eufóricos. Por que, afinal, aparece mais ‘um que vende e não se chama Roberto Carlos nem tem sotaque estrangeiro. E é magnífico, e lucrativo, romper a rotina de negociar

eternamente com discos dos mesmos artistas. (Levar otimismo e entusiasmo ao estacionado mercado fonográfico foi outro mérito do grupo. Pena que tudo isto talvez esteja terminando, exatamente a partir do lançamento do novo LP.)

A gravadora, pelo menos até hoje, também estava eufórica e merecia este prêmio. Porque a Continental, há alguns anos, investe cm novos, ininterruptamente. E deve ter sido reconfortante o aparecimento de um Secos e Molhados depois do Grupo Capote, Pessoal do Ceará, Paulo Bagunça e sua Tropa Maldita, Terço e tantos outros — que, talvez, rendam apenas prestigio. Sim, deve ter sido reconfortante — tão reconfortante quanto deve ser desesperador, hoje, ler aqui esta notícia. Mas tomara que a Continental, compensada pela overdose financeira de Secos e Molhados, continue a testar novos.

Finalmente, o novo disco do grupo pode servir, ainda, como fundo para uma constatação igualmente repetitiva: triste sina a da música popular, que sempre tem de se repetir... Como Ray Conniff ou Sérgio Mendes, o Secos e Molhados estabeleceu o seu grupo sound e começava a recorrer ao xerox. Assim, como todos cantavam, após a primeira audição, o jingle da Pepsi (“Só tem amor quem tem amor pra dar”), todos cantarão — num adeus — “o verme passeia/na lua cheia”. E a força oculta que faz com que nos sintamos gratificados com repetições, estará agindo outra vez.

Sem atroiçoar qualquer expectativa, a voz aguda de Ney Matogrosso irá repetindo, nas rádios e TVs, o que todos esperam. E surgirá a vontade de possuir aquilo de que todos gostam, todos querem; a necessidade de se integrar na solidária maioria. Mas, se integrar como dono, participar tendo a posse — comprando o disco.

O apelo é quase invencível. Tanto que João Apolinário abandonou a sisuda carreira de critico teatral e se tornou letrista e empresário. Agora, ele assina, com o filho João Ricardo, a maioria das faixas do disco. E, com o filho, divide a gestão dos negócios do Secos e Molhados. Negócios que vão muito bem, garantidos e motivados por jingles irrepreensíveis. O que deve incomodar, jamais, ao pai, ao filho, a ninguém — porque produzir jingles não é pecado. Principalmente quando o produto pode estar sendo retirado do mercado.

Jornal da Tarde – 15 de agosto de 1974

Entrevista de João RIcardo explicando a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde. Foto: Acervo Estadão

Pelo menos isto João Ricardo explicou: a saída de Ney.

Tumultuada e nervosa, a entrevista - que o ex-líder do Secos e Molhados deu ontem deixou muitas perguntas sem resposta. De concreto, esta explicação: Ney Matogrosso disse que precisava parar; e João Ricardo achou que não devia impedir.

Com 20 minutos de atraso e um nervosismo visível, João Ricardo, ex-líder do conjunto Secos e Molhados, enfrentou ontem dezenas de fotógrafos, repórteres e câmeras de tevê para explicar a saída dos dois outros integrantes do grupo: Ney Matogrosso e Gerson Conrad.

Foi uma entrevista tensa de parte a parte e tumultuada desde o início. Um pouco por causa do aparato — entrevistado e entrevistadores foram colocados em torno de uma grande mesa de vidro oval — um pouco por causa da interferência constante dos dois advogados que sempre acompanham João Ricardo; um pouco ainda devido à agressividade de algumas perguntas e das evasivas de quase todas as respostas.

Apesar de muito nervoso (suas mãos tremiam e suavam), notou-se que João havia realmente se preparado para a entrevista. A começar pelo lugar que escolheu para sentar: a única cadeira colocada sob um pôster de Ney Matogrosso. Foi com calculada tranqüilidade que ele ficou surpreso com as primeiras perguntas: É verdade que o motivo da separação do grupo foi a briga para escolher as músicas do novo LP? E verdade que você barrou “Trem Noturno”, de Gerson Conrad, deste mesmo LP?

— Jamais houve qualquer tipo de disputa entre nós. Eu componho desde 15 anos. e inclusive o primeiro LP lançado por nós já estava praticamente pronto quando convidei Ney e Gerson para trabalharem comigo. Quanto a “Trem Noturno”, não foi incluído no LP por não estar de acordo com a filosofia do Secos & Molhados. Aliás, quem me chamou atenção para o fato foi o Ney.

João Ricardo nega-se também a acreditar que Ney e Gerson tenham feito acusações contra ele, como os jornais noticiaram: “Conheço Ney há muito tempo e posso afirmar que ele jamais falaria certas coisas, ainda mais sem motivo. A única coisa que sei sobre sua saída é que ele me disse:

“Vou parar porque é preciso”.

Assim, João Ricardo explica por que não se achou no direito de tentar convencer seu solista a ficar:

— Nós sempre convivemos muito bem e eu posso entender essa atitude do Ney. As pessoas que estão de fora talvez não entendam, porque não sabem o quanto de liberdade era usado em nosso trabalho.

Quanto à saída de Gerson, João Ricardo não pode dizer nada porque “ele não me comunicou — fiquei sabendo através dos jornais quando voltei do Rio, depois de gravar o Fantástico”.

Diante dessa declaração é que ninguém entendeu mais nada. Para os repórteres presentes continuava muito estranho dois integrantes de um conjunto pararem de repente e ainda mais que o lider do grupo não tenha sido notificado por um deles. Diante da estranheza, começaram a sugerir hipóteses sobre os motivos da saída dos integrantes, hipóteses essas baseadas em declarações deles mesmos.

Um dos motivos seria a dura liderança de João Ricardo que, segundo declarações de Gérson a um repórter, era baseada apenas em problemas pessoais do líder. Outros motivos poderiam ter sido problemas administrativos com João Apolinário (empresário do grupo e pai de João Ricardo): questões financeiras sobre a renda do primeiro LP; soluções pendentes da dissolução da primeira firma do grupo — SPPS —; problemas de relacionamento entre os quatro integrantes da firma.

João Ricardo negou todas as sugestões.

— Não tenho problemas de auto-afirmação. Se o Gerson tinha problemas de relacionamento comigo devia ter falado comigo e não com vocês. Meu pai foi escolhido para administrador da firma por sugestão unânime de nós três. E tudo que foi feito está documentado, assinado e confirmado também por nós três. Quanto ao problema de dinheiro, devo afirmar que tudo foi dividido igualmente. Se por acaso ganhei mais do que os outros, é por que sou compositor

e a lei de direitos autorais determina isso. As contas estão todas aí: não vou divulgá-las agora porque não tenho o direito de dizer quanto cada um ganhou, sem a aprovação deles. Se depois da saida de Moracy do Val, primeiro empresário, eles passararn a se sentir empregados — segundo

afirmações que ouvi agora —é um problema subjetivo.

A SPPS recebeu proposta de dissolução em junho desse ano, na Justiça, por decisão de todos nós. Os problemas de relacionamento, as brigas, sempre existem. Se nós não tivéssemos desentendimentos, não seríamos normais.

Mas afinal, por que Ney Matogrosso e Gerson Conrad

saíram do conjunto? Henrique Suster, produtor do grupo nos últimos tempos, deu sua versão pessoal sobre o problema.

— O João Ricardo é o líder, o compositor, o organizador, o dono da idéia e do nome Secos e Molhados.

Mas quem se transformou em estrela do conjunto foi Ney Matogrosso, aliás descoberto por João Ricardo e cantando num estilo bem diferente do que canta agora.

Alguns repórteres gostaram da explicação, agora, já existia um motivo: a disputa pela liderança. Mas João Ricardo não gostou.

— Não é nada disso. Nunca houve disputa entre nós. E antes que qualquer coisa pudesse ficar mais clara, as perguntas e conversações paralelas foram estabelecidas.

De objetivo ficou-se sabendo, pelos advogados, que a firma SPPS está para ser dissolvida, com processo tramitando na Justiça. Que a marca Secos & Molhados pertence a João Ricardo; que atualmente não existe nenhuma firma, apenas uma marca; que eles — advogados — levantaram

as contas irregulares da ex-firma e que agora têm toda a documentação em ordem: que eles haviam entrado em contato com os advogados das partes para a prestação de contas; que as contas ficarão à disposição da imprensa assim que Ney e Gerson tomem conhecimento delas e autorizem a divulgação.

De objetivo, João Ricardo afirmou que o Secos e Molhados continua; que ainda não pensou nos nomes dos substitutos; que a vendagem do segundo LP do grupo vai muito bem — 300 mil cópias prensadas e 400 mil já vendidas; que a indicação de Cornelius para substituir Ney Matogrosso é infundada — ele nem conhece o rapaz; que por enquanto, ou seja, até 75, continuam contratados pela Continental; que ele vai descansar — partir em viagem para o Exterior.

De concreto, apenas o fim de um conjunto considerado o maior estouro dos últimos anos e que poderá resurgir com novos integrantes.

Jornal da Tarde - 6 de abril de 1974

Página do Jornal da Tarde de 6 de abril de 1974 com reportagem sobre o grupo musical Secos & Molhados. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Veja também

Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad sem maquiagem antes do estouro do Secos & Molhados.  Foto: Acervo Estadão

Ney Matogrosso canta no estádio Allianz Parque em São Paulo quando completa cinco décadas de uma decisão que mudou os rumos da sua vida e da música brasileira. Também num sábado 10 de agosto, só que em 1974, a ruptura do cantor com o Secos & Molhados, o grupo que revolucionou e tomou de assalto a música brasileira com apresentações e um disco extraordinário em 1973, foi revelada num furo jornalístico do Jornal da Tarde.

A reportagem “O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor”, publicada sem identificação de autoria, informava algo até então inédito: “Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados”.

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1994

Reportagem sobre a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde de 10 de agosto de 1974. Foto: Acervo Estadão

O texto conta em detalhes a insatisfação de Ney com os rumos do grupo: “— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.”

Ao lado da reportagem, outro texto, este de autoria do crítico musical Maurício Kubrusly, analisava o segundo disco da banda que chegava às lojas naque dia à luz da saída de Ney Matogrosso e de Gérson Conrad, o outro integrante do grupo, e também trazia informações inéditas, como a que eles haviam gravado um vídeo para o Fantástico, da TV Globo, no dia anterior, para ser exibido no domingo. Leia a íntegra dos textos e também a entrevista de João Ricardo, o criador, cérebro e dono do Secos & Molhados, publicada cinco dias depois.

O cantor Ney Matogrosso durante apresentação do Secos & Molhados na capital paulista em 1973.  Foto: Kenji Honda/Estadão

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1974

O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor

Ele é a estrela do grupo. Mas, como seu colega Gérson Conrad, prefere não continuar. Apesar do sucesso. Apesar dos 800 mil LPs vendidos.

Cem cruzeiros: uma nota de 50, quatro de 10, e duas de 5. É todo o dinheiro que Ney Matogrosso tem para passar este fim-de semana. Uma parte é para pagar a luz de casa. que a Light cortou desde quinta-feira passada. O que sobrar é o lucro da sua carreira como cantor do Secos e Molhados — o único conjunto brasileiro capaz de lotar o Maracanãzinho, parar as cidades onde faz shows e em alguns meses vender mais discos que o invencível Roberto Carlos (800 mil cópias só no LP de estréia, segundo informações do próprio grupo).

Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados. E, mesmo depois de pagar a conta de luz, ele sairá do conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou, em agosto de 1973.

Ontem, um ano depois, o segundo LP do grupo chegou às lojas de discos de todo o pais. Entre o primeiro e o segundo, muita coisa aconteceu. Para o LP de estréia, a Continental não se arriscou a lançar no mercado mais do que 500 cópias. Afinal, era apenas uma” estréia e, portanto, um investimento duvidoso. Rapidamente, sua linha de produção teve que deixar de lado outros contra

tados da gravadora, para cuidar apenas da prensagem de milhares de “Rosas de Hiroshima”, “Viras”, e outros, tentando atender aos pedidos que vinham de todo o país.

Um ano, 800 mil cópias vendidas e alguns milhões de cruzeiros depois, a Continental investe em Secos e Molhados com uma segurança pouco comum na história da indústria fonográfica brasileira. E os resultados são mais fantásticos do que se esperava: antes mesmo de ser lançado, o novo LP já tinha 300 mil cópias vendidas. Apesar de todo esse sucesso, o lucro de Ney Matogrosso — vocalista e principal estrela do grupo — foi menos de 100 cruzeiros. Por que? Ney não sabe e não quer saber.

A única coisa que ele sabe é que está deixando o conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou. E é exatamente por isso que está saindo: porque só tem 100 cruzeiros. Se fossem 100 mil, talvez ele não saísse.

— Faz muito tempo que Secos e Molhados virou maquina de ganhar dinheiro. O trabalho que começamos a desenvolver, agora esta em último lugar na relação das prioridades. O que importa é quanto cada sorriso, cada entrevista, cada letra, cada música pode render em cruzeiros. E mais nada.

Gérson Conrad, 22 anos, o terceiro integrante do Secos e Molhados também deixou o grupo. Vai voltar para a Escola de Arquitetura, de onde acha que nunca deveria ter saído. Gérson concorda com Ney: “O sucesso do grupo (principalmente o financeiro) em vez de incentivá-lo à criação, fechou suas portas para os compositores brasileiros. Afinal, e muito mais rendoso e de sucesso garantido inventar musiquinhas para textos de poetas famosos.”

Por isso, o novo LP tem apenas uma música de Gérson. As outras onze são de João Ricardo, o chefe do grupo: “Ele preferiu fazer parceria com Júlio Cortazar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa.

Foi graças a essa fórmula que, no primeiro LP, Ricardo ganhou uma incalculável fortuna em direitos autorais. Com as onze músicas do novo disco, ele certamente vai ficar rico.”

Mas Gérson não acredita que suas músicas façam menos sucesso que as de João Ricardo. É verdade que “O Vira”, de autoria do chefe do conjunto, quase se aposentou em primeiro lugar nas paradas de sucesso. Mas foi Gérson quem compôs a música de “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes.

Gérson acha que João Ricardo jamais o perdoou pelo sucesso dessa faixa do primeiro LP, tanto nas paradas de sucesso como nos shows ao vivo. E conta que num dos espetáculos do conjunto Ney teve que cantar a música três vezes, porque o público não parava de aplaudir e pedir bis. Irritado,

conta Gérson, João Ricardo saiu do palco e foi para os bastidores, gritando, chutando cadeiras e dizendo que era proibido repetir música “sem a minha ordem”.

Outro problema que levou Gérson a deixar o Secos e Molhados é uma crise na área administrativa do grupo. A mesma desorganização de agora foi o motivo que provocou o afastamento de Moracy Do Val do cargo de empresário (acusado de má administração). Agora, depois da substituição

de Moracy. Gérson também tem queixas do novo empresário, o jornalista João Apolinário, pai de João Ricardo.

Com a saída de Moracy Do Vai, foi dissolvida a firma que controlava os interesses do grupo, a SPPR, e em seu lugar surgiu a “S e M Produções”. Só que, enquanto Moracy era o empresário, os três integrantes (mais o próprio Moracy) formavam uma sociedade onde os lucros eram repartidos

entre quatro pessoas. Já a nova firma — diz Gérson — tem apenas um dono, João Ricardo. E como dono, teria ele proposto a Gérson e Ney a participação na empresa não mais como sócio e sim como empregados. Ney já havia decidido deixar o grupo antes mesmo de lhe fazerem qualquer proposta; ficou faltando apenas a resposta de Gérson. E ele se recusou a participar do conjunto como contratado.

Segundo Gérson, a maior parte do patrimônio do Secos e Molhados conseguida com o dinheiro do grupo está em nome de João Ricardo e seu pai, inclusive os equipamentos da sede da “S e M Produções” e a nova editora musical do grupo.

Quanto a Ney Matogrosso, ele acha que com esses 100 cruzeiros vai passar o melhor fim-de-semana de sua vida, “como nos bons tempos, quando eu não tinha dinheiro nem para comer.”

— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.

O que mais tranqüiliza Ney é saber que João Ricardo não demonstrou qualquer surpresa ou preocupação quando ele o avisou de que ia deixar o grupo. Como se não soubesse — diz Ney — que o fenômeno conseguido por Secos e Molhados é atribuído não a um conjunto de três pessoas, mas a um cantor (com seu raro registro vocal, sua excelente figura cênica) e seus acompanhantes.

O cantor Ney Matogrosso e o companheiro do grupo, João Ricardo, durante apresentação dos Secos e Molhados na capital paulista.SP. 07/3/1974. Foto: Acervo/Estadão

Um disco impecável, como os jingles bem feitos.

MAURÍCIO KUBRUSLY

Chega às loja o segundo e talvez último LP do Secos Molhados. Se fosse apenas o segundo, e não também o último, seria o acontecimento mais importante do ano para a indústria fonográfica e, também, para o comércio do setor. Musicalmente — e aí não interessa se é segundo ou último — o disco tem apenas a qualidade e a eficácia de um jingle Impecável.

Bem mais cuidado que o de estréia, o novo LP apresenta uma produção mais rica (financeiramente) e arranjos um pouquinho mais elaborados. Ney Matogrosso se aperfeiçoa e surge como excelente vocalista. Chega mesmo a abandonar, em algumas faixas, o seu cantar agudissimo, que já se confundia com a marca Secos e Molhados. Porém, mesmo mais grave, é ótimo intérprete. Isto é uma garantia para a carreira que hoje começa, isolada do grupo. (Desfeita à sociedade, parece nítido que João Ricardo sairá perdendo, a longo prazo).

Desde a capa, os cuidados da produção vão surgindo, mas não disfarçam a certeza do déjà vú. Porque o requinte da capa, negra e sem palavras, não vai alem da própria capa. No conjunto, o novo LP não esconde surpresas. A surpresa maior surge da possibilidade de ser este disco um epitáfio.

Nas rádios, “Flores Astrais” e “Voo”, exatamente as escolhidas para o compacto de promoção, anunciam duas reedições: da música e do sucesso do LP de estréia. Portanto — por que tudo se repete —não é necessário comprar o disco. Qualquer pessoa que ou ça rádio e/ou veja televisão a partir de hoje vai se fartar de Secos e Molhados. A estação do verme que passeia na lua apenas começa,

embora seja última. Ouviremos esta, e as outras faixas, muito além da saturação. E quem quiser, levará milhares de linhas sobre o tema — concorrendo com a de Richard Nixon a renúncia de Ney Matogrosso terá destaque nas páginas coloridas das revistas. Ao invés da coleções de “explicações” para o su cesso de Secos Molhados, lançadas no ano passado, deveremos ter agora a retaliação de um fim de caso.

Quanto aos jornais, começamos hoje. Somando tudo, teremos uma avalanche de Secos Molhados. Assim, quem estiver sujeito a ela, deve pensar a respeito. Para concluir o que acha de tudo isto, antes que alguém pense por nós. E decida por nós também. O que, parcialmente, já aconteceu, pois todos os envolvidos com este disco têm opiniões fixadas e, pelo menos em parte, conhecidas. E certo que, daqui para a frente, tudo vai ser diferente. Mas não é possível alterar o que aconteceu até ontem.

A VOZ DO DONO

O Secos e Molhados, conduzido pelo hábil João Ricardo, nunca disfarçou a ganância pelo sucesso que o guiava. Esta gula não deve ser acompanhada por qual quer sentimento de culpa — que teria mais razão de existir exatamente entre os invejavam e invejam o sucesso maior. O Secos e Molhados conseguiu o que pretendia e muito mais. Portanto: parabéns.

Agora, quando o primeiro LP deixa de vender no Brasil, é possível que o “Vira” abra novo mercado em Portugal; “Sangue Latino” e “Tecer Mundo” — esta última, do novo disco — poderão lançar o conjunto em toda a América Latina. O esquema, bem arquitetado, deveria ser eficaz, pois previa quase tudo — menos, o fim da união. Conquistando os mercados próximos, o Secos e Molhados repetiria o que já conseguiram Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, etc. E isto poderia maltratar Moracy do Val, ex-empresário do ex-conjunto, porque ele sonhava levá-lo à conquista do mundo, alegando talvez: se os Beatles dominaram todos os marcados a partir de Liverpool, o Secos e Molhados pode repetir a proesa e partir do Bexiga.

Para consumo interno, programava-se uma temporada no Tuca, depois do grande show de lançamento, terça-feira próxima, no Teatro Aquarius. E mais: distribuição de cartazes, selos, envelopes e até camisetas com fotos do grupo; anúncios, nos grandes jornais das principais cidades

do pais, com uma contagem regressiva do lançamento do disco, contagem que terminou exatamente ontem; filmes publicitários em vários cinemas de muitas cidades; balões gigantes, colocados em pontos de São Paulo e do Rio, com os dizeres: “Já à venda o novo LP, do Secos e Molhados” e uma série de outras iniciativas.

Também nesta programação não estava previsto o fim. E nem a separação justifica qualquer cancelamento. Cada detalhe do lançamento desse disco confirma uma extraordinária eficiência profissional, exemplo para a multidão de amadores que povoa a música popular. E o derradeiro LP

do grupo com Ney Matogrosso deverá mesmo vender muito, o que podo torturar de inveja, particularmente, Maria Alcina e Edy Star — os que acreditaram que rímel e baton seriam suficientes para conseguir a vitória.

Mas, no meio de tanto e merecido faturamento, por favor não falem de “revolução de padrões morais”, “protesto”, “desafio”, “redefinição de parâmetros sexuais”, etc. Num livro-caixa não há espaço para tais especiarias e perigos. Por exemplo; se não tivesse certezas, a Rede Globo não

aceitaria como afilhados o Secos e Molhados. Nem te ria gravado, ontem, o tape que será mostrado no “Fantástico” de amanhã. Porque, na televisão, até o comprimento das saias é determinado “pelo horário em que a cena será vista e outras, conveniências. Não se permitem riscos, muito menos na melindrosa área moral.

As piadas possíveis sobre o passeio do verme na lua serão somente piadas. Não se consegue ir além da superfície na música do Secos e Molhados. É música alegre, descontraída, não se preocupando com qualquer denúncia. Não faz perguntas, não incomoda ninguém — a não ser, é claro

aos concorrentes. Secos e Molhados é puro, leve entretenimento. Quando, no disco de despedida, garantem que na orquestra são queles que desafinam, estão mentindo. Ou — o que é mais provável — apenas brincando.

OUTRAS VOZES

Há outros que também já definiram opiniões a respeito, como os revendedores e donos de lojas — estão justamente eufóricos. Por que, afinal, aparece mais ‘um que vende e não se chama Roberto Carlos nem tem sotaque estrangeiro. E é magnífico, e lucrativo, romper a rotina de negociar

eternamente com discos dos mesmos artistas. (Levar otimismo e entusiasmo ao estacionado mercado fonográfico foi outro mérito do grupo. Pena que tudo isto talvez esteja terminando, exatamente a partir do lançamento do novo LP.)

A gravadora, pelo menos até hoje, também estava eufórica e merecia este prêmio. Porque a Continental, há alguns anos, investe cm novos, ininterruptamente. E deve ter sido reconfortante o aparecimento de um Secos e Molhados depois do Grupo Capote, Pessoal do Ceará, Paulo Bagunça e sua Tropa Maldita, Terço e tantos outros — que, talvez, rendam apenas prestigio. Sim, deve ter sido reconfortante — tão reconfortante quanto deve ser desesperador, hoje, ler aqui esta notícia. Mas tomara que a Continental, compensada pela overdose financeira de Secos e Molhados, continue a testar novos.

Finalmente, o novo disco do grupo pode servir, ainda, como fundo para uma constatação igualmente repetitiva: triste sina a da música popular, que sempre tem de se repetir... Como Ray Conniff ou Sérgio Mendes, o Secos e Molhados estabeleceu o seu grupo sound e começava a recorrer ao xerox. Assim, como todos cantavam, após a primeira audição, o jingle da Pepsi (“Só tem amor quem tem amor pra dar”), todos cantarão — num adeus — “o verme passeia/na lua cheia”. E a força oculta que faz com que nos sintamos gratificados com repetições, estará agindo outra vez.

Sem atroiçoar qualquer expectativa, a voz aguda de Ney Matogrosso irá repetindo, nas rádios e TVs, o que todos esperam. E surgirá a vontade de possuir aquilo de que todos gostam, todos querem; a necessidade de se integrar na solidária maioria. Mas, se integrar como dono, participar tendo a posse — comprando o disco.

O apelo é quase invencível. Tanto que João Apolinário abandonou a sisuda carreira de critico teatral e se tornou letrista e empresário. Agora, ele assina, com o filho João Ricardo, a maioria das faixas do disco. E, com o filho, divide a gestão dos negócios do Secos e Molhados. Negócios que vão muito bem, garantidos e motivados por jingles irrepreensíveis. O que deve incomodar, jamais, ao pai, ao filho, a ninguém — porque produzir jingles não é pecado. Principalmente quando o produto pode estar sendo retirado do mercado.

Jornal da Tarde – 15 de agosto de 1974

Entrevista de João RIcardo explicando a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde. Foto: Acervo Estadão

Pelo menos isto João Ricardo explicou: a saída de Ney.

Tumultuada e nervosa, a entrevista - que o ex-líder do Secos e Molhados deu ontem deixou muitas perguntas sem resposta. De concreto, esta explicação: Ney Matogrosso disse que precisava parar; e João Ricardo achou que não devia impedir.

Com 20 minutos de atraso e um nervosismo visível, João Ricardo, ex-líder do conjunto Secos e Molhados, enfrentou ontem dezenas de fotógrafos, repórteres e câmeras de tevê para explicar a saída dos dois outros integrantes do grupo: Ney Matogrosso e Gerson Conrad.

Foi uma entrevista tensa de parte a parte e tumultuada desde o início. Um pouco por causa do aparato — entrevistado e entrevistadores foram colocados em torno de uma grande mesa de vidro oval — um pouco por causa da interferência constante dos dois advogados que sempre acompanham João Ricardo; um pouco ainda devido à agressividade de algumas perguntas e das evasivas de quase todas as respostas.

Apesar de muito nervoso (suas mãos tremiam e suavam), notou-se que João havia realmente se preparado para a entrevista. A começar pelo lugar que escolheu para sentar: a única cadeira colocada sob um pôster de Ney Matogrosso. Foi com calculada tranqüilidade que ele ficou surpreso com as primeiras perguntas: É verdade que o motivo da separação do grupo foi a briga para escolher as músicas do novo LP? E verdade que você barrou “Trem Noturno”, de Gerson Conrad, deste mesmo LP?

— Jamais houve qualquer tipo de disputa entre nós. Eu componho desde 15 anos. e inclusive o primeiro LP lançado por nós já estava praticamente pronto quando convidei Ney e Gerson para trabalharem comigo. Quanto a “Trem Noturno”, não foi incluído no LP por não estar de acordo com a filosofia do Secos & Molhados. Aliás, quem me chamou atenção para o fato foi o Ney.

João Ricardo nega-se também a acreditar que Ney e Gerson tenham feito acusações contra ele, como os jornais noticiaram: “Conheço Ney há muito tempo e posso afirmar que ele jamais falaria certas coisas, ainda mais sem motivo. A única coisa que sei sobre sua saída é que ele me disse:

“Vou parar porque é preciso”.

Assim, João Ricardo explica por que não se achou no direito de tentar convencer seu solista a ficar:

— Nós sempre convivemos muito bem e eu posso entender essa atitude do Ney. As pessoas que estão de fora talvez não entendam, porque não sabem o quanto de liberdade era usado em nosso trabalho.

Quanto à saída de Gerson, João Ricardo não pode dizer nada porque “ele não me comunicou — fiquei sabendo através dos jornais quando voltei do Rio, depois de gravar o Fantástico”.

Diante dessa declaração é que ninguém entendeu mais nada. Para os repórteres presentes continuava muito estranho dois integrantes de um conjunto pararem de repente e ainda mais que o lider do grupo não tenha sido notificado por um deles. Diante da estranheza, começaram a sugerir hipóteses sobre os motivos da saída dos integrantes, hipóteses essas baseadas em declarações deles mesmos.

Um dos motivos seria a dura liderança de João Ricardo que, segundo declarações de Gérson a um repórter, era baseada apenas em problemas pessoais do líder. Outros motivos poderiam ter sido problemas administrativos com João Apolinário (empresário do grupo e pai de João Ricardo): questões financeiras sobre a renda do primeiro LP; soluções pendentes da dissolução da primeira firma do grupo — SPPS —; problemas de relacionamento entre os quatro integrantes da firma.

João Ricardo negou todas as sugestões.

— Não tenho problemas de auto-afirmação. Se o Gerson tinha problemas de relacionamento comigo devia ter falado comigo e não com vocês. Meu pai foi escolhido para administrador da firma por sugestão unânime de nós três. E tudo que foi feito está documentado, assinado e confirmado também por nós três. Quanto ao problema de dinheiro, devo afirmar que tudo foi dividido igualmente. Se por acaso ganhei mais do que os outros, é por que sou compositor

e a lei de direitos autorais determina isso. As contas estão todas aí: não vou divulgá-las agora porque não tenho o direito de dizer quanto cada um ganhou, sem a aprovação deles. Se depois da saida de Moracy do Val, primeiro empresário, eles passararn a se sentir empregados — segundo

afirmações que ouvi agora —é um problema subjetivo.

A SPPS recebeu proposta de dissolução em junho desse ano, na Justiça, por decisão de todos nós. Os problemas de relacionamento, as brigas, sempre existem. Se nós não tivéssemos desentendimentos, não seríamos normais.

Mas afinal, por que Ney Matogrosso e Gerson Conrad

saíram do conjunto? Henrique Suster, produtor do grupo nos últimos tempos, deu sua versão pessoal sobre o problema.

— O João Ricardo é o líder, o compositor, o organizador, o dono da idéia e do nome Secos e Molhados.

Mas quem se transformou em estrela do conjunto foi Ney Matogrosso, aliás descoberto por João Ricardo e cantando num estilo bem diferente do que canta agora.

Alguns repórteres gostaram da explicação, agora, já existia um motivo: a disputa pela liderança. Mas João Ricardo não gostou.

— Não é nada disso. Nunca houve disputa entre nós. E antes que qualquer coisa pudesse ficar mais clara, as perguntas e conversações paralelas foram estabelecidas.

De objetivo ficou-se sabendo, pelos advogados, que a firma SPPS está para ser dissolvida, com processo tramitando na Justiça. Que a marca Secos & Molhados pertence a João Ricardo; que atualmente não existe nenhuma firma, apenas uma marca; que eles — advogados — levantaram

as contas irregulares da ex-firma e que agora têm toda a documentação em ordem: que eles haviam entrado em contato com os advogados das partes para a prestação de contas; que as contas ficarão à disposição da imprensa assim que Ney e Gerson tomem conhecimento delas e autorizem a divulgação.

De objetivo, João Ricardo afirmou que o Secos e Molhados continua; que ainda não pensou nos nomes dos substitutos; que a vendagem do segundo LP do grupo vai muito bem — 300 mil cópias prensadas e 400 mil já vendidas; que a indicação de Cornelius para substituir Ney Matogrosso é infundada — ele nem conhece o rapaz; que por enquanto, ou seja, até 75, continuam contratados pela Continental; que ele vai descansar — partir em viagem para o Exterior.

De concreto, apenas o fim de um conjunto considerado o maior estouro dos últimos anos e que poderá resurgir com novos integrantes.

Jornal da Tarde - 6 de abril de 1974

Página do Jornal da Tarde de 6 de abril de 1974 com reportagem sobre o grupo musical Secos & Molhados. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Veja também

Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad sem maquiagem antes do estouro do Secos & Molhados.  Foto: Acervo Estadão

Ney Matogrosso canta no estádio Allianz Parque em São Paulo quando completa cinco décadas de uma decisão que mudou os rumos da sua vida e da música brasileira. Também num sábado 10 de agosto, só que em 1974, a ruptura do cantor com o Secos & Molhados, o grupo que revolucionou e tomou de assalto a música brasileira com apresentações e um disco extraordinário em 1973, foi revelada num furo jornalístico do Jornal da Tarde.

A reportagem “O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor”, publicada sem identificação de autoria, informava algo até então inédito: “Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados”.

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1994

Reportagem sobre a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde de 10 de agosto de 1974. Foto: Acervo Estadão

O texto conta em detalhes a insatisfação de Ney com os rumos do grupo: “— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.”

Ao lado da reportagem, outro texto, este de autoria do crítico musical Maurício Kubrusly, analisava o segundo disco da banda que chegava às lojas naque dia à luz da saída de Ney Matogrosso e de Gérson Conrad, o outro integrante do grupo, e também trazia informações inéditas, como a que eles haviam gravado um vídeo para o Fantástico, da TV Globo, no dia anterior, para ser exibido no domingo. Leia a íntegra dos textos e também a entrevista de João Ricardo, o criador, cérebro e dono do Secos & Molhados, publicada cinco dias depois.

O cantor Ney Matogrosso durante apresentação do Secos & Molhados na capital paulista em 1973.  Foto: Kenji Honda/Estadão

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1974

O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor

Ele é a estrela do grupo. Mas, como seu colega Gérson Conrad, prefere não continuar. Apesar do sucesso. Apesar dos 800 mil LPs vendidos.

Cem cruzeiros: uma nota de 50, quatro de 10, e duas de 5. É todo o dinheiro que Ney Matogrosso tem para passar este fim-de semana. Uma parte é para pagar a luz de casa. que a Light cortou desde quinta-feira passada. O que sobrar é o lucro da sua carreira como cantor do Secos e Molhados — o único conjunto brasileiro capaz de lotar o Maracanãzinho, parar as cidades onde faz shows e em alguns meses vender mais discos que o invencível Roberto Carlos (800 mil cópias só no LP de estréia, segundo informações do próprio grupo).

Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados. E, mesmo depois de pagar a conta de luz, ele sairá do conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou, em agosto de 1973.

Ontem, um ano depois, o segundo LP do grupo chegou às lojas de discos de todo o pais. Entre o primeiro e o segundo, muita coisa aconteceu. Para o LP de estréia, a Continental não se arriscou a lançar no mercado mais do que 500 cópias. Afinal, era apenas uma” estréia e, portanto, um investimento duvidoso. Rapidamente, sua linha de produção teve que deixar de lado outros contra

tados da gravadora, para cuidar apenas da prensagem de milhares de “Rosas de Hiroshima”, “Viras”, e outros, tentando atender aos pedidos que vinham de todo o país.

Um ano, 800 mil cópias vendidas e alguns milhões de cruzeiros depois, a Continental investe em Secos e Molhados com uma segurança pouco comum na história da indústria fonográfica brasileira. E os resultados são mais fantásticos do que se esperava: antes mesmo de ser lançado, o novo LP já tinha 300 mil cópias vendidas. Apesar de todo esse sucesso, o lucro de Ney Matogrosso — vocalista e principal estrela do grupo — foi menos de 100 cruzeiros. Por que? Ney não sabe e não quer saber.

A única coisa que ele sabe é que está deixando o conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou. E é exatamente por isso que está saindo: porque só tem 100 cruzeiros. Se fossem 100 mil, talvez ele não saísse.

— Faz muito tempo que Secos e Molhados virou maquina de ganhar dinheiro. O trabalho que começamos a desenvolver, agora esta em último lugar na relação das prioridades. O que importa é quanto cada sorriso, cada entrevista, cada letra, cada música pode render em cruzeiros. E mais nada.

Gérson Conrad, 22 anos, o terceiro integrante do Secos e Molhados também deixou o grupo. Vai voltar para a Escola de Arquitetura, de onde acha que nunca deveria ter saído. Gérson concorda com Ney: “O sucesso do grupo (principalmente o financeiro) em vez de incentivá-lo à criação, fechou suas portas para os compositores brasileiros. Afinal, e muito mais rendoso e de sucesso garantido inventar musiquinhas para textos de poetas famosos.”

Por isso, o novo LP tem apenas uma música de Gérson. As outras onze são de João Ricardo, o chefe do grupo: “Ele preferiu fazer parceria com Júlio Cortazar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa.

Foi graças a essa fórmula que, no primeiro LP, Ricardo ganhou uma incalculável fortuna em direitos autorais. Com as onze músicas do novo disco, ele certamente vai ficar rico.”

Mas Gérson não acredita que suas músicas façam menos sucesso que as de João Ricardo. É verdade que “O Vira”, de autoria do chefe do conjunto, quase se aposentou em primeiro lugar nas paradas de sucesso. Mas foi Gérson quem compôs a música de “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes.

Gérson acha que João Ricardo jamais o perdoou pelo sucesso dessa faixa do primeiro LP, tanto nas paradas de sucesso como nos shows ao vivo. E conta que num dos espetáculos do conjunto Ney teve que cantar a música três vezes, porque o público não parava de aplaudir e pedir bis. Irritado,

conta Gérson, João Ricardo saiu do palco e foi para os bastidores, gritando, chutando cadeiras e dizendo que era proibido repetir música “sem a minha ordem”.

Outro problema que levou Gérson a deixar o Secos e Molhados é uma crise na área administrativa do grupo. A mesma desorganização de agora foi o motivo que provocou o afastamento de Moracy Do Val do cargo de empresário (acusado de má administração). Agora, depois da substituição

de Moracy. Gérson também tem queixas do novo empresário, o jornalista João Apolinário, pai de João Ricardo.

Com a saída de Moracy Do Vai, foi dissolvida a firma que controlava os interesses do grupo, a SPPR, e em seu lugar surgiu a “S e M Produções”. Só que, enquanto Moracy era o empresário, os três integrantes (mais o próprio Moracy) formavam uma sociedade onde os lucros eram repartidos

entre quatro pessoas. Já a nova firma — diz Gérson — tem apenas um dono, João Ricardo. E como dono, teria ele proposto a Gérson e Ney a participação na empresa não mais como sócio e sim como empregados. Ney já havia decidido deixar o grupo antes mesmo de lhe fazerem qualquer proposta; ficou faltando apenas a resposta de Gérson. E ele se recusou a participar do conjunto como contratado.

Segundo Gérson, a maior parte do patrimônio do Secos e Molhados conseguida com o dinheiro do grupo está em nome de João Ricardo e seu pai, inclusive os equipamentos da sede da “S e M Produções” e a nova editora musical do grupo.

Quanto a Ney Matogrosso, ele acha que com esses 100 cruzeiros vai passar o melhor fim-de-semana de sua vida, “como nos bons tempos, quando eu não tinha dinheiro nem para comer.”

— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.

O que mais tranqüiliza Ney é saber que João Ricardo não demonstrou qualquer surpresa ou preocupação quando ele o avisou de que ia deixar o grupo. Como se não soubesse — diz Ney — que o fenômeno conseguido por Secos e Molhados é atribuído não a um conjunto de três pessoas, mas a um cantor (com seu raro registro vocal, sua excelente figura cênica) e seus acompanhantes.

O cantor Ney Matogrosso e o companheiro do grupo, João Ricardo, durante apresentação dos Secos e Molhados na capital paulista.SP. 07/3/1974. Foto: Acervo/Estadão

Um disco impecável, como os jingles bem feitos.

MAURÍCIO KUBRUSLY

Chega às loja o segundo e talvez último LP do Secos Molhados. Se fosse apenas o segundo, e não também o último, seria o acontecimento mais importante do ano para a indústria fonográfica e, também, para o comércio do setor. Musicalmente — e aí não interessa se é segundo ou último — o disco tem apenas a qualidade e a eficácia de um jingle Impecável.

Bem mais cuidado que o de estréia, o novo LP apresenta uma produção mais rica (financeiramente) e arranjos um pouquinho mais elaborados. Ney Matogrosso se aperfeiçoa e surge como excelente vocalista. Chega mesmo a abandonar, em algumas faixas, o seu cantar agudissimo, que já se confundia com a marca Secos e Molhados. Porém, mesmo mais grave, é ótimo intérprete. Isto é uma garantia para a carreira que hoje começa, isolada do grupo. (Desfeita à sociedade, parece nítido que João Ricardo sairá perdendo, a longo prazo).

Desde a capa, os cuidados da produção vão surgindo, mas não disfarçam a certeza do déjà vú. Porque o requinte da capa, negra e sem palavras, não vai alem da própria capa. No conjunto, o novo LP não esconde surpresas. A surpresa maior surge da possibilidade de ser este disco um epitáfio.

Nas rádios, “Flores Astrais” e “Voo”, exatamente as escolhidas para o compacto de promoção, anunciam duas reedições: da música e do sucesso do LP de estréia. Portanto — por que tudo se repete —não é necessário comprar o disco. Qualquer pessoa que ou ça rádio e/ou veja televisão a partir de hoje vai se fartar de Secos e Molhados. A estação do verme que passeia na lua apenas começa,

embora seja última. Ouviremos esta, e as outras faixas, muito além da saturação. E quem quiser, levará milhares de linhas sobre o tema — concorrendo com a de Richard Nixon a renúncia de Ney Matogrosso terá destaque nas páginas coloridas das revistas. Ao invés da coleções de “explicações” para o su cesso de Secos Molhados, lançadas no ano passado, deveremos ter agora a retaliação de um fim de caso.

Quanto aos jornais, começamos hoje. Somando tudo, teremos uma avalanche de Secos Molhados. Assim, quem estiver sujeito a ela, deve pensar a respeito. Para concluir o que acha de tudo isto, antes que alguém pense por nós. E decida por nós também. O que, parcialmente, já aconteceu, pois todos os envolvidos com este disco têm opiniões fixadas e, pelo menos em parte, conhecidas. E certo que, daqui para a frente, tudo vai ser diferente. Mas não é possível alterar o que aconteceu até ontem.

A VOZ DO DONO

O Secos e Molhados, conduzido pelo hábil João Ricardo, nunca disfarçou a ganância pelo sucesso que o guiava. Esta gula não deve ser acompanhada por qual quer sentimento de culpa — que teria mais razão de existir exatamente entre os invejavam e invejam o sucesso maior. O Secos e Molhados conseguiu o que pretendia e muito mais. Portanto: parabéns.

Agora, quando o primeiro LP deixa de vender no Brasil, é possível que o “Vira” abra novo mercado em Portugal; “Sangue Latino” e “Tecer Mundo” — esta última, do novo disco — poderão lançar o conjunto em toda a América Latina. O esquema, bem arquitetado, deveria ser eficaz, pois previa quase tudo — menos, o fim da união. Conquistando os mercados próximos, o Secos e Molhados repetiria o que já conseguiram Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, etc. E isto poderia maltratar Moracy do Val, ex-empresário do ex-conjunto, porque ele sonhava levá-lo à conquista do mundo, alegando talvez: se os Beatles dominaram todos os marcados a partir de Liverpool, o Secos e Molhados pode repetir a proesa e partir do Bexiga.

Para consumo interno, programava-se uma temporada no Tuca, depois do grande show de lançamento, terça-feira próxima, no Teatro Aquarius. E mais: distribuição de cartazes, selos, envelopes e até camisetas com fotos do grupo; anúncios, nos grandes jornais das principais cidades

do pais, com uma contagem regressiva do lançamento do disco, contagem que terminou exatamente ontem; filmes publicitários em vários cinemas de muitas cidades; balões gigantes, colocados em pontos de São Paulo e do Rio, com os dizeres: “Já à venda o novo LP, do Secos e Molhados” e uma série de outras iniciativas.

Também nesta programação não estava previsto o fim. E nem a separação justifica qualquer cancelamento. Cada detalhe do lançamento desse disco confirma uma extraordinária eficiência profissional, exemplo para a multidão de amadores que povoa a música popular. E o derradeiro LP

do grupo com Ney Matogrosso deverá mesmo vender muito, o que podo torturar de inveja, particularmente, Maria Alcina e Edy Star — os que acreditaram que rímel e baton seriam suficientes para conseguir a vitória.

Mas, no meio de tanto e merecido faturamento, por favor não falem de “revolução de padrões morais”, “protesto”, “desafio”, “redefinição de parâmetros sexuais”, etc. Num livro-caixa não há espaço para tais especiarias e perigos. Por exemplo; se não tivesse certezas, a Rede Globo não

aceitaria como afilhados o Secos e Molhados. Nem te ria gravado, ontem, o tape que será mostrado no “Fantástico” de amanhã. Porque, na televisão, até o comprimento das saias é determinado “pelo horário em que a cena será vista e outras, conveniências. Não se permitem riscos, muito menos na melindrosa área moral.

As piadas possíveis sobre o passeio do verme na lua serão somente piadas. Não se consegue ir além da superfície na música do Secos e Molhados. É música alegre, descontraída, não se preocupando com qualquer denúncia. Não faz perguntas, não incomoda ninguém — a não ser, é claro

aos concorrentes. Secos e Molhados é puro, leve entretenimento. Quando, no disco de despedida, garantem que na orquestra são queles que desafinam, estão mentindo. Ou — o que é mais provável — apenas brincando.

OUTRAS VOZES

Há outros que também já definiram opiniões a respeito, como os revendedores e donos de lojas — estão justamente eufóricos. Por que, afinal, aparece mais ‘um que vende e não se chama Roberto Carlos nem tem sotaque estrangeiro. E é magnífico, e lucrativo, romper a rotina de negociar

eternamente com discos dos mesmos artistas. (Levar otimismo e entusiasmo ao estacionado mercado fonográfico foi outro mérito do grupo. Pena que tudo isto talvez esteja terminando, exatamente a partir do lançamento do novo LP.)

A gravadora, pelo menos até hoje, também estava eufórica e merecia este prêmio. Porque a Continental, há alguns anos, investe cm novos, ininterruptamente. E deve ter sido reconfortante o aparecimento de um Secos e Molhados depois do Grupo Capote, Pessoal do Ceará, Paulo Bagunça e sua Tropa Maldita, Terço e tantos outros — que, talvez, rendam apenas prestigio. Sim, deve ter sido reconfortante — tão reconfortante quanto deve ser desesperador, hoje, ler aqui esta notícia. Mas tomara que a Continental, compensada pela overdose financeira de Secos e Molhados, continue a testar novos.

Finalmente, o novo disco do grupo pode servir, ainda, como fundo para uma constatação igualmente repetitiva: triste sina a da música popular, que sempre tem de se repetir... Como Ray Conniff ou Sérgio Mendes, o Secos e Molhados estabeleceu o seu grupo sound e começava a recorrer ao xerox. Assim, como todos cantavam, após a primeira audição, o jingle da Pepsi (“Só tem amor quem tem amor pra dar”), todos cantarão — num adeus — “o verme passeia/na lua cheia”. E a força oculta que faz com que nos sintamos gratificados com repetições, estará agindo outra vez.

Sem atroiçoar qualquer expectativa, a voz aguda de Ney Matogrosso irá repetindo, nas rádios e TVs, o que todos esperam. E surgirá a vontade de possuir aquilo de que todos gostam, todos querem; a necessidade de se integrar na solidária maioria. Mas, se integrar como dono, participar tendo a posse — comprando o disco.

O apelo é quase invencível. Tanto que João Apolinário abandonou a sisuda carreira de critico teatral e se tornou letrista e empresário. Agora, ele assina, com o filho João Ricardo, a maioria das faixas do disco. E, com o filho, divide a gestão dos negócios do Secos e Molhados. Negócios que vão muito bem, garantidos e motivados por jingles irrepreensíveis. O que deve incomodar, jamais, ao pai, ao filho, a ninguém — porque produzir jingles não é pecado. Principalmente quando o produto pode estar sendo retirado do mercado.

Jornal da Tarde – 15 de agosto de 1974

Entrevista de João RIcardo explicando a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde. Foto: Acervo Estadão

Pelo menos isto João Ricardo explicou: a saída de Ney.

Tumultuada e nervosa, a entrevista - que o ex-líder do Secos e Molhados deu ontem deixou muitas perguntas sem resposta. De concreto, esta explicação: Ney Matogrosso disse que precisava parar; e João Ricardo achou que não devia impedir.

Com 20 minutos de atraso e um nervosismo visível, João Ricardo, ex-líder do conjunto Secos e Molhados, enfrentou ontem dezenas de fotógrafos, repórteres e câmeras de tevê para explicar a saída dos dois outros integrantes do grupo: Ney Matogrosso e Gerson Conrad.

Foi uma entrevista tensa de parte a parte e tumultuada desde o início. Um pouco por causa do aparato — entrevistado e entrevistadores foram colocados em torno de uma grande mesa de vidro oval — um pouco por causa da interferência constante dos dois advogados que sempre acompanham João Ricardo; um pouco ainda devido à agressividade de algumas perguntas e das evasivas de quase todas as respostas.

Apesar de muito nervoso (suas mãos tremiam e suavam), notou-se que João havia realmente se preparado para a entrevista. A começar pelo lugar que escolheu para sentar: a única cadeira colocada sob um pôster de Ney Matogrosso. Foi com calculada tranqüilidade que ele ficou surpreso com as primeiras perguntas: É verdade que o motivo da separação do grupo foi a briga para escolher as músicas do novo LP? E verdade que você barrou “Trem Noturno”, de Gerson Conrad, deste mesmo LP?

— Jamais houve qualquer tipo de disputa entre nós. Eu componho desde 15 anos. e inclusive o primeiro LP lançado por nós já estava praticamente pronto quando convidei Ney e Gerson para trabalharem comigo. Quanto a “Trem Noturno”, não foi incluído no LP por não estar de acordo com a filosofia do Secos & Molhados. Aliás, quem me chamou atenção para o fato foi o Ney.

João Ricardo nega-se também a acreditar que Ney e Gerson tenham feito acusações contra ele, como os jornais noticiaram: “Conheço Ney há muito tempo e posso afirmar que ele jamais falaria certas coisas, ainda mais sem motivo. A única coisa que sei sobre sua saída é que ele me disse:

“Vou parar porque é preciso”.

Assim, João Ricardo explica por que não se achou no direito de tentar convencer seu solista a ficar:

— Nós sempre convivemos muito bem e eu posso entender essa atitude do Ney. As pessoas que estão de fora talvez não entendam, porque não sabem o quanto de liberdade era usado em nosso trabalho.

Quanto à saída de Gerson, João Ricardo não pode dizer nada porque “ele não me comunicou — fiquei sabendo através dos jornais quando voltei do Rio, depois de gravar o Fantástico”.

Diante dessa declaração é que ninguém entendeu mais nada. Para os repórteres presentes continuava muito estranho dois integrantes de um conjunto pararem de repente e ainda mais que o lider do grupo não tenha sido notificado por um deles. Diante da estranheza, começaram a sugerir hipóteses sobre os motivos da saída dos integrantes, hipóteses essas baseadas em declarações deles mesmos.

Um dos motivos seria a dura liderança de João Ricardo que, segundo declarações de Gérson a um repórter, era baseada apenas em problemas pessoais do líder. Outros motivos poderiam ter sido problemas administrativos com João Apolinário (empresário do grupo e pai de João Ricardo): questões financeiras sobre a renda do primeiro LP; soluções pendentes da dissolução da primeira firma do grupo — SPPS —; problemas de relacionamento entre os quatro integrantes da firma.

João Ricardo negou todas as sugestões.

— Não tenho problemas de auto-afirmação. Se o Gerson tinha problemas de relacionamento comigo devia ter falado comigo e não com vocês. Meu pai foi escolhido para administrador da firma por sugestão unânime de nós três. E tudo que foi feito está documentado, assinado e confirmado também por nós três. Quanto ao problema de dinheiro, devo afirmar que tudo foi dividido igualmente. Se por acaso ganhei mais do que os outros, é por que sou compositor

e a lei de direitos autorais determina isso. As contas estão todas aí: não vou divulgá-las agora porque não tenho o direito de dizer quanto cada um ganhou, sem a aprovação deles. Se depois da saida de Moracy do Val, primeiro empresário, eles passararn a se sentir empregados — segundo

afirmações que ouvi agora —é um problema subjetivo.

A SPPS recebeu proposta de dissolução em junho desse ano, na Justiça, por decisão de todos nós. Os problemas de relacionamento, as brigas, sempre existem. Se nós não tivéssemos desentendimentos, não seríamos normais.

Mas afinal, por que Ney Matogrosso e Gerson Conrad

saíram do conjunto? Henrique Suster, produtor do grupo nos últimos tempos, deu sua versão pessoal sobre o problema.

— O João Ricardo é o líder, o compositor, o organizador, o dono da idéia e do nome Secos e Molhados.

Mas quem se transformou em estrela do conjunto foi Ney Matogrosso, aliás descoberto por João Ricardo e cantando num estilo bem diferente do que canta agora.

Alguns repórteres gostaram da explicação, agora, já existia um motivo: a disputa pela liderança. Mas João Ricardo não gostou.

— Não é nada disso. Nunca houve disputa entre nós. E antes que qualquer coisa pudesse ficar mais clara, as perguntas e conversações paralelas foram estabelecidas.

De objetivo ficou-se sabendo, pelos advogados, que a firma SPPS está para ser dissolvida, com processo tramitando na Justiça. Que a marca Secos & Molhados pertence a João Ricardo; que atualmente não existe nenhuma firma, apenas uma marca; que eles — advogados — levantaram

as contas irregulares da ex-firma e que agora têm toda a documentação em ordem: que eles haviam entrado em contato com os advogados das partes para a prestação de contas; que as contas ficarão à disposição da imprensa assim que Ney e Gerson tomem conhecimento delas e autorizem a divulgação.

De objetivo, João Ricardo afirmou que o Secos e Molhados continua; que ainda não pensou nos nomes dos substitutos; que a vendagem do segundo LP do grupo vai muito bem — 300 mil cópias prensadas e 400 mil já vendidas; que a indicação de Cornelius para substituir Ney Matogrosso é infundada — ele nem conhece o rapaz; que por enquanto, ou seja, até 75, continuam contratados pela Continental; que ele vai descansar — partir em viagem para o Exterior.

De concreto, apenas o fim de um conjunto considerado o maior estouro dos últimos anos e que poderá resurgir com novos integrantes.

Jornal da Tarde - 6 de abril de 1974

Página do Jornal da Tarde de 6 de abril de 1974 com reportagem sobre o grupo musical Secos & Molhados. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Veja também

Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad sem maquiagem antes do estouro do Secos & Molhados.  Foto: Acervo Estadão

Ney Matogrosso canta no estádio Allianz Parque em São Paulo quando completa cinco décadas de uma decisão que mudou os rumos da sua vida e da música brasileira. Também num sábado 10 de agosto, só que em 1974, a ruptura do cantor com o Secos & Molhados, o grupo que revolucionou e tomou de assalto a música brasileira com apresentações e um disco extraordinário em 1973, foi revelada num furo jornalístico do Jornal da Tarde.

A reportagem “O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor”, publicada sem identificação de autoria, informava algo até então inédito: “Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados”.

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1994

Reportagem sobre a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde de 10 de agosto de 1974. Foto: Acervo Estadão

O texto conta em detalhes a insatisfação de Ney com os rumos do grupo: “— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.”

Ao lado da reportagem, outro texto, este de autoria do crítico musical Maurício Kubrusly, analisava o segundo disco da banda que chegava às lojas naque dia à luz da saída de Ney Matogrosso e de Gérson Conrad, o outro integrante do grupo, e também trazia informações inéditas, como a que eles haviam gravado um vídeo para o Fantástico, da TV Globo, no dia anterior, para ser exibido no domingo. Leia a íntegra dos textos e também a entrevista de João Ricardo, o criador, cérebro e dono do Secos & Molhados, publicada cinco dias depois.

O cantor Ney Matogrosso durante apresentação do Secos & Molhados na capital paulista em 1973.  Foto: Kenji Honda/Estadão

Jornal da Tarde - 10 de agosto de 1974

O Secos e Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira ganha um bom cantor

Ele é a estrela do grupo. Mas, como seu colega Gérson Conrad, prefere não continuar. Apesar do sucesso. Apesar dos 800 mil LPs vendidos.

Cem cruzeiros: uma nota de 50, quatro de 10, e duas de 5. É todo o dinheiro que Ney Matogrosso tem para passar este fim-de semana. Uma parte é para pagar a luz de casa. que a Light cortou desde quinta-feira passada. O que sobrar é o lucro da sua carreira como cantor do Secos e Molhados — o único conjunto brasileiro capaz de lotar o Maracanãzinho, parar as cidades onde faz shows e em alguns meses vender mais discos que o invencível Roberto Carlos (800 mil cópias só no LP de estréia, segundo informações do próprio grupo).

Faz uma semana que Ney Matogrosso não é mais do Secos e Molhados. E, mesmo depois de pagar a conta de luz, ele sairá do conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou, em agosto de 1973.

Ontem, um ano depois, o segundo LP do grupo chegou às lojas de discos de todo o pais. Entre o primeiro e o segundo, muita coisa aconteceu. Para o LP de estréia, a Continental não se arriscou a lançar no mercado mais do que 500 cópias. Afinal, era apenas uma” estréia e, portanto, um investimento duvidoso. Rapidamente, sua linha de produção teve que deixar de lado outros contra

tados da gravadora, para cuidar apenas da prensagem de milhares de “Rosas de Hiroshima”, “Viras”, e outros, tentando atender aos pedidos que vinham de todo o país.

Um ano, 800 mil cópias vendidas e alguns milhões de cruzeiros depois, a Continental investe em Secos e Molhados com uma segurança pouco comum na história da indústria fonográfica brasileira. E os resultados são mais fantásticos do que se esperava: antes mesmo de ser lançado, o novo LP já tinha 300 mil cópias vendidas. Apesar de todo esse sucesso, o lucro de Ney Matogrosso — vocalista e principal estrela do grupo — foi menos de 100 cruzeiros. Por que? Ney não sabe e não quer saber.

A única coisa que ele sabe é que está deixando o conjunto com mais dinheiro do que tinha quando entrou. E é exatamente por isso que está saindo: porque só tem 100 cruzeiros. Se fossem 100 mil, talvez ele não saísse.

— Faz muito tempo que Secos e Molhados virou maquina de ganhar dinheiro. O trabalho que começamos a desenvolver, agora esta em último lugar na relação das prioridades. O que importa é quanto cada sorriso, cada entrevista, cada letra, cada música pode render em cruzeiros. E mais nada.

Gérson Conrad, 22 anos, o terceiro integrante do Secos e Molhados também deixou o grupo. Vai voltar para a Escola de Arquitetura, de onde acha que nunca deveria ter saído. Gérson concorda com Ney: “O sucesso do grupo (principalmente o financeiro) em vez de incentivá-lo à criação, fechou suas portas para os compositores brasileiros. Afinal, e muito mais rendoso e de sucesso garantido inventar musiquinhas para textos de poetas famosos.”

Por isso, o novo LP tem apenas uma música de Gérson. As outras onze são de João Ricardo, o chefe do grupo: “Ele preferiu fazer parceria com Júlio Cortazar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa.

Foi graças a essa fórmula que, no primeiro LP, Ricardo ganhou uma incalculável fortuna em direitos autorais. Com as onze músicas do novo disco, ele certamente vai ficar rico.”

Mas Gérson não acredita que suas músicas façam menos sucesso que as de João Ricardo. É verdade que “O Vira”, de autoria do chefe do conjunto, quase se aposentou em primeiro lugar nas paradas de sucesso. Mas foi Gérson quem compôs a música de “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes.

Gérson acha que João Ricardo jamais o perdoou pelo sucesso dessa faixa do primeiro LP, tanto nas paradas de sucesso como nos shows ao vivo. E conta que num dos espetáculos do conjunto Ney teve que cantar a música três vezes, porque o público não parava de aplaudir e pedir bis. Irritado,

conta Gérson, João Ricardo saiu do palco e foi para os bastidores, gritando, chutando cadeiras e dizendo que era proibido repetir música “sem a minha ordem”.

Outro problema que levou Gérson a deixar o Secos e Molhados é uma crise na área administrativa do grupo. A mesma desorganização de agora foi o motivo que provocou o afastamento de Moracy Do Val do cargo de empresário (acusado de má administração). Agora, depois da substituição

de Moracy. Gérson também tem queixas do novo empresário, o jornalista João Apolinário, pai de João Ricardo.

Com a saída de Moracy Do Vai, foi dissolvida a firma que controlava os interesses do grupo, a SPPR, e em seu lugar surgiu a “S e M Produções”. Só que, enquanto Moracy era o empresário, os três integrantes (mais o próprio Moracy) formavam uma sociedade onde os lucros eram repartidos

entre quatro pessoas. Já a nova firma — diz Gérson — tem apenas um dono, João Ricardo. E como dono, teria ele proposto a Gérson e Ney a participação na empresa não mais como sócio e sim como empregados. Ney já havia decidido deixar o grupo antes mesmo de lhe fazerem qualquer proposta; ficou faltando apenas a resposta de Gérson. E ele se recusou a participar do conjunto como contratado.

Segundo Gérson, a maior parte do patrimônio do Secos e Molhados conseguida com o dinheiro do grupo está em nome de João Ricardo e seu pai, inclusive os equipamentos da sede da “S e M Produções” e a nova editora musical do grupo.

Quanto a Ney Matogrosso, ele acha que com esses 100 cruzeiros vai passar o melhor fim-de-semana de sua vida, “como nos bons tempos, quando eu não tinha dinheiro nem para comer.”

— Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta. Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano.

O que mais tranqüiliza Ney é saber que João Ricardo não demonstrou qualquer surpresa ou preocupação quando ele o avisou de que ia deixar o grupo. Como se não soubesse — diz Ney — que o fenômeno conseguido por Secos e Molhados é atribuído não a um conjunto de três pessoas, mas a um cantor (com seu raro registro vocal, sua excelente figura cênica) e seus acompanhantes.

O cantor Ney Matogrosso e o companheiro do grupo, João Ricardo, durante apresentação dos Secos e Molhados na capital paulista.SP. 07/3/1974. Foto: Acervo/Estadão

Um disco impecável, como os jingles bem feitos.

MAURÍCIO KUBRUSLY

Chega às loja o segundo e talvez último LP do Secos Molhados. Se fosse apenas o segundo, e não também o último, seria o acontecimento mais importante do ano para a indústria fonográfica e, também, para o comércio do setor. Musicalmente — e aí não interessa se é segundo ou último — o disco tem apenas a qualidade e a eficácia de um jingle Impecável.

Bem mais cuidado que o de estréia, o novo LP apresenta uma produção mais rica (financeiramente) e arranjos um pouquinho mais elaborados. Ney Matogrosso se aperfeiçoa e surge como excelente vocalista. Chega mesmo a abandonar, em algumas faixas, o seu cantar agudissimo, que já se confundia com a marca Secos e Molhados. Porém, mesmo mais grave, é ótimo intérprete. Isto é uma garantia para a carreira que hoje começa, isolada do grupo. (Desfeita à sociedade, parece nítido que João Ricardo sairá perdendo, a longo prazo).

Desde a capa, os cuidados da produção vão surgindo, mas não disfarçam a certeza do déjà vú. Porque o requinte da capa, negra e sem palavras, não vai alem da própria capa. No conjunto, o novo LP não esconde surpresas. A surpresa maior surge da possibilidade de ser este disco um epitáfio.

Nas rádios, “Flores Astrais” e “Voo”, exatamente as escolhidas para o compacto de promoção, anunciam duas reedições: da música e do sucesso do LP de estréia. Portanto — por que tudo se repete —não é necessário comprar o disco. Qualquer pessoa que ou ça rádio e/ou veja televisão a partir de hoje vai se fartar de Secos e Molhados. A estação do verme que passeia na lua apenas começa,

embora seja última. Ouviremos esta, e as outras faixas, muito além da saturação. E quem quiser, levará milhares de linhas sobre o tema — concorrendo com a de Richard Nixon a renúncia de Ney Matogrosso terá destaque nas páginas coloridas das revistas. Ao invés da coleções de “explicações” para o su cesso de Secos Molhados, lançadas no ano passado, deveremos ter agora a retaliação de um fim de caso.

Quanto aos jornais, começamos hoje. Somando tudo, teremos uma avalanche de Secos Molhados. Assim, quem estiver sujeito a ela, deve pensar a respeito. Para concluir o que acha de tudo isto, antes que alguém pense por nós. E decida por nós também. O que, parcialmente, já aconteceu, pois todos os envolvidos com este disco têm opiniões fixadas e, pelo menos em parte, conhecidas. E certo que, daqui para a frente, tudo vai ser diferente. Mas não é possível alterar o que aconteceu até ontem.

A VOZ DO DONO

O Secos e Molhados, conduzido pelo hábil João Ricardo, nunca disfarçou a ganância pelo sucesso que o guiava. Esta gula não deve ser acompanhada por qual quer sentimento de culpa — que teria mais razão de existir exatamente entre os invejavam e invejam o sucesso maior. O Secos e Molhados conseguiu o que pretendia e muito mais. Portanto: parabéns.

Agora, quando o primeiro LP deixa de vender no Brasil, é possível que o “Vira” abra novo mercado em Portugal; “Sangue Latino” e “Tecer Mundo” — esta última, do novo disco — poderão lançar o conjunto em toda a América Latina. O esquema, bem arquitetado, deveria ser eficaz, pois previa quase tudo — menos, o fim da união. Conquistando os mercados próximos, o Secos e Molhados repetiria o que já conseguiram Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, etc. E isto poderia maltratar Moracy do Val, ex-empresário do ex-conjunto, porque ele sonhava levá-lo à conquista do mundo, alegando talvez: se os Beatles dominaram todos os marcados a partir de Liverpool, o Secos e Molhados pode repetir a proesa e partir do Bexiga.

Para consumo interno, programava-se uma temporada no Tuca, depois do grande show de lançamento, terça-feira próxima, no Teatro Aquarius. E mais: distribuição de cartazes, selos, envelopes e até camisetas com fotos do grupo; anúncios, nos grandes jornais das principais cidades

do pais, com uma contagem regressiva do lançamento do disco, contagem que terminou exatamente ontem; filmes publicitários em vários cinemas de muitas cidades; balões gigantes, colocados em pontos de São Paulo e do Rio, com os dizeres: “Já à venda o novo LP, do Secos e Molhados” e uma série de outras iniciativas.

Também nesta programação não estava previsto o fim. E nem a separação justifica qualquer cancelamento. Cada detalhe do lançamento desse disco confirma uma extraordinária eficiência profissional, exemplo para a multidão de amadores que povoa a música popular. E o derradeiro LP

do grupo com Ney Matogrosso deverá mesmo vender muito, o que podo torturar de inveja, particularmente, Maria Alcina e Edy Star — os que acreditaram que rímel e baton seriam suficientes para conseguir a vitória.

Mas, no meio de tanto e merecido faturamento, por favor não falem de “revolução de padrões morais”, “protesto”, “desafio”, “redefinição de parâmetros sexuais”, etc. Num livro-caixa não há espaço para tais especiarias e perigos. Por exemplo; se não tivesse certezas, a Rede Globo não

aceitaria como afilhados o Secos e Molhados. Nem te ria gravado, ontem, o tape que será mostrado no “Fantástico” de amanhã. Porque, na televisão, até o comprimento das saias é determinado “pelo horário em que a cena será vista e outras, conveniências. Não se permitem riscos, muito menos na melindrosa área moral.

As piadas possíveis sobre o passeio do verme na lua serão somente piadas. Não se consegue ir além da superfície na música do Secos e Molhados. É música alegre, descontraída, não se preocupando com qualquer denúncia. Não faz perguntas, não incomoda ninguém — a não ser, é claro

aos concorrentes. Secos e Molhados é puro, leve entretenimento. Quando, no disco de despedida, garantem que na orquestra são queles que desafinam, estão mentindo. Ou — o que é mais provável — apenas brincando.

OUTRAS VOZES

Há outros que também já definiram opiniões a respeito, como os revendedores e donos de lojas — estão justamente eufóricos. Por que, afinal, aparece mais ‘um que vende e não se chama Roberto Carlos nem tem sotaque estrangeiro. E é magnífico, e lucrativo, romper a rotina de negociar

eternamente com discos dos mesmos artistas. (Levar otimismo e entusiasmo ao estacionado mercado fonográfico foi outro mérito do grupo. Pena que tudo isto talvez esteja terminando, exatamente a partir do lançamento do novo LP.)

A gravadora, pelo menos até hoje, também estava eufórica e merecia este prêmio. Porque a Continental, há alguns anos, investe cm novos, ininterruptamente. E deve ter sido reconfortante o aparecimento de um Secos e Molhados depois do Grupo Capote, Pessoal do Ceará, Paulo Bagunça e sua Tropa Maldita, Terço e tantos outros — que, talvez, rendam apenas prestigio. Sim, deve ter sido reconfortante — tão reconfortante quanto deve ser desesperador, hoje, ler aqui esta notícia. Mas tomara que a Continental, compensada pela overdose financeira de Secos e Molhados, continue a testar novos.

Finalmente, o novo disco do grupo pode servir, ainda, como fundo para uma constatação igualmente repetitiva: triste sina a da música popular, que sempre tem de se repetir... Como Ray Conniff ou Sérgio Mendes, o Secos e Molhados estabeleceu o seu grupo sound e começava a recorrer ao xerox. Assim, como todos cantavam, após a primeira audição, o jingle da Pepsi (“Só tem amor quem tem amor pra dar”), todos cantarão — num adeus — “o verme passeia/na lua cheia”. E a força oculta que faz com que nos sintamos gratificados com repetições, estará agindo outra vez.

Sem atroiçoar qualquer expectativa, a voz aguda de Ney Matogrosso irá repetindo, nas rádios e TVs, o que todos esperam. E surgirá a vontade de possuir aquilo de que todos gostam, todos querem; a necessidade de se integrar na solidária maioria. Mas, se integrar como dono, participar tendo a posse — comprando o disco.

O apelo é quase invencível. Tanto que João Apolinário abandonou a sisuda carreira de critico teatral e se tornou letrista e empresário. Agora, ele assina, com o filho João Ricardo, a maioria das faixas do disco. E, com o filho, divide a gestão dos negócios do Secos e Molhados. Negócios que vão muito bem, garantidos e motivados por jingles irrepreensíveis. O que deve incomodar, jamais, ao pai, ao filho, a ninguém — porque produzir jingles não é pecado. Principalmente quando o produto pode estar sendo retirado do mercado.

Jornal da Tarde – 15 de agosto de 1974

Entrevista de João RIcardo explicando a saída de Ney Matogrosso do Secos & Molhados no Jornal da Tarde. Foto: Acervo Estadão

Pelo menos isto João Ricardo explicou: a saída de Ney.

Tumultuada e nervosa, a entrevista - que o ex-líder do Secos e Molhados deu ontem deixou muitas perguntas sem resposta. De concreto, esta explicação: Ney Matogrosso disse que precisava parar; e João Ricardo achou que não devia impedir.

Com 20 minutos de atraso e um nervosismo visível, João Ricardo, ex-líder do conjunto Secos e Molhados, enfrentou ontem dezenas de fotógrafos, repórteres e câmeras de tevê para explicar a saída dos dois outros integrantes do grupo: Ney Matogrosso e Gerson Conrad.

Foi uma entrevista tensa de parte a parte e tumultuada desde o início. Um pouco por causa do aparato — entrevistado e entrevistadores foram colocados em torno de uma grande mesa de vidro oval — um pouco por causa da interferência constante dos dois advogados que sempre acompanham João Ricardo; um pouco ainda devido à agressividade de algumas perguntas e das evasivas de quase todas as respostas.

Apesar de muito nervoso (suas mãos tremiam e suavam), notou-se que João havia realmente se preparado para a entrevista. A começar pelo lugar que escolheu para sentar: a única cadeira colocada sob um pôster de Ney Matogrosso. Foi com calculada tranqüilidade que ele ficou surpreso com as primeiras perguntas: É verdade que o motivo da separação do grupo foi a briga para escolher as músicas do novo LP? E verdade que você barrou “Trem Noturno”, de Gerson Conrad, deste mesmo LP?

— Jamais houve qualquer tipo de disputa entre nós. Eu componho desde 15 anos. e inclusive o primeiro LP lançado por nós já estava praticamente pronto quando convidei Ney e Gerson para trabalharem comigo. Quanto a “Trem Noturno”, não foi incluído no LP por não estar de acordo com a filosofia do Secos & Molhados. Aliás, quem me chamou atenção para o fato foi o Ney.

João Ricardo nega-se também a acreditar que Ney e Gerson tenham feito acusações contra ele, como os jornais noticiaram: “Conheço Ney há muito tempo e posso afirmar que ele jamais falaria certas coisas, ainda mais sem motivo. A única coisa que sei sobre sua saída é que ele me disse:

“Vou parar porque é preciso”.

Assim, João Ricardo explica por que não se achou no direito de tentar convencer seu solista a ficar:

— Nós sempre convivemos muito bem e eu posso entender essa atitude do Ney. As pessoas que estão de fora talvez não entendam, porque não sabem o quanto de liberdade era usado em nosso trabalho.

Quanto à saída de Gerson, João Ricardo não pode dizer nada porque “ele não me comunicou — fiquei sabendo através dos jornais quando voltei do Rio, depois de gravar o Fantástico”.

Diante dessa declaração é que ninguém entendeu mais nada. Para os repórteres presentes continuava muito estranho dois integrantes de um conjunto pararem de repente e ainda mais que o lider do grupo não tenha sido notificado por um deles. Diante da estranheza, começaram a sugerir hipóteses sobre os motivos da saída dos integrantes, hipóteses essas baseadas em declarações deles mesmos.

Um dos motivos seria a dura liderança de João Ricardo que, segundo declarações de Gérson a um repórter, era baseada apenas em problemas pessoais do líder. Outros motivos poderiam ter sido problemas administrativos com João Apolinário (empresário do grupo e pai de João Ricardo): questões financeiras sobre a renda do primeiro LP; soluções pendentes da dissolução da primeira firma do grupo — SPPS —; problemas de relacionamento entre os quatro integrantes da firma.

João Ricardo negou todas as sugestões.

— Não tenho problemas de auto-afirmação. Se o Gerson tinha problemas de relacionamento comigo devia ter falado comigo e não com vocês. Meu pai foi escolhido para administrador da firma por sugestão unânime de nós três. E tudo que foi feito está documentado, assinado e confirmado também por nós três. Quanto ao problema de dinheiro, devo afirmar que tudo foi dividido igualmente. Se por acaso ganhei mais do que os outros, é por que sou compositor

e a lei de direitos autorais determina isso. As contas estão todas aí: não vou divulgá-las agora porque não tenho o direito de dizer quanto cada um ganhou, sem a aprovação deles. Se depois da saida de Moracy do Val, primeiro empresário, eles passararn a se sentir empregados — segundo

afirmações que ouvi agora —é um problema subjetivo.

A SPPS recebeu proposta de dissolução em junho desse ano, na Justiça, por decisão de todos nós. Os problemas de relacionamento, as brigas, sempre existem. Se nós não tivéssemos desentendimentos, não seríamos normais.

Mas afinal, por que Ney Matogrosso e Gerson Conrad

saíram do conjunto? Henrique Suster, produtor do grupo nos últimos tempos, deu sua versão pessoal sobre o problema.

— O João Ricardo é o líder, o compositor, o organizador, o dono da idéia e do nome Secos e Molhados.

Mas quem se transformou em estrela do conjunto foi Ney Matogrosso, aliás descoberto por João Ricardo e cantando num estilo bem diferente do que canta agora.

Alguns repórteres gostaram da explicação, agora, já existia um motivo: a disputa pela liderança. Mas João Ricardo não gostou.

— Não é nada disso. Nunca houve disputa entre nós. E antes que qualquer coisa pudesse ficar mais clara, as perguntas e conversações paralelas foram estabelecidas.

De objetivo ficou-se sabendo, pelos advogados, que a firma SPPS está para ser dissolvida, com processo tramitando na Justiça. Que a marca Secos & Molhados pertence a João Ricardo; que atualmente não existe nenhuma firma, apenas uma marca; que eles — advogados — levantaram

as contas irregulares da ex-firma e que agora têm toda a documentação em ordem: que eles haviam entrado em contato com os advogados das partes para a prestação de contas; que as contas ficarão à disposição da imprensa assim que Ney e Gerson tomem conhecimento delas e autorizem a divulgação.

De objetivo, João Ricardo afirmou que o Secos e Molhados continua; que ainda não pensou nos nomes dos substitutos; que a vendagem do segundo LP do grupo vai muito bem — 300 mil cópias prensadas e 400 mil já vendidas; que a indicação de Cornelius para substituir Ney Matogrosso é infundada — ele nem conhece o rapaz; que por enquanto, ou seja, até 75, continuam contratados pela Continental; que ele vai descansar — partir em viagem para o Exterior.

De concreto, apenas o fim de um conjunto considerado o maior estouro dos últimos anos e que poderá resurgir com novos integrantes.

Jornal da Tarde - 6 de abril de 1974

Página do Jornal da Tarde de 6 de abril de 1974 com reportagem sobre o grupo musical Secos & Molhados. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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