O perdão do papa João Paulo II ao homem que tentou matá-lo


Líder da igreja católica se encontrou com o turco Mehmet Ali Agca numa prisão italiana em 1983

Por Edmundo Leite

Dois anos e sete meses depois de ser baleado em plena Praça de São Pedro, no Vaticano, o papa João Paulo II realizou um dos gestos mais marcantes de seu pontificado: visitou numa prisão em Roma o homem que disparou os tiros contra ele em 13 de maio de 1981. O encontro do papa com o turco Mehmet Ali Agca, preso imediatamente após o atentado, foi o destaque da capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983.

Capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

Sobre uma grande foto dos dois dentro de uma cela conversando bem próximos, o título da manchete informava: O papa leva o perdão ao homem que tentou matá-lo”. A legenda da impactante imagem dava mais detalhes do encontro, que teve clima de um confessionário, com os dois homens conversando em sussurros: “Vinte e um minutos numa cela da prisão de Rebibbia, em Roma: o papa encontra-se com o seu quase assassino, Ali Agca. Os dois se apertam as mãos, emocionam-se. Agca se arrepende.

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João Paulo II já havia perdoado Mehmet Ali Agca quando estava no hospital, logo após o atentado. Mas o perdão concedido pessoalmente na cela ganhou outra dimensão, com João Paulo chamando Agca de “Irmão”. “Emotivo, com lágrimas e arrependimento”, descreveu a reportagem de página inteira “O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida”.

Na prisão, além do seu agressor, João Paulo também apertou a mão de ladrões, assassinos, prostitutas e terroristas. “Um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo teve uma palavra.”

Leia a íntegra da reportagem original:

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Jornal da Tarde - 28 de dezembro de 1983

Página do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida

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O encontro de João Paulo II com o terrorista Ali Agca, na prisão de Rebibbia, em Roma: emotivo, com lágrimas e arrependimento.

— Irmão...

Mehmet Ali Agca baixou a cabeça. Estava parado um pouco atrás da porta de sua cela, quatro metros por cinco, no pavilhão sete da prisão de Rebibbia, na periferia de Roma. Deixou que o homem de voz mansa, que o chamara de “irmão”, entrasse na cela. Beijou-lhe a mão, uma delas ainda com a cicatriz de um ferimento a bala sofrido há 31 meses. Tomou a mão e colocou-a em sua cabeça, à maneira oriental, sinal de profundo respeito. O papa João Paulo II repetiu:

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— Irmão...

Ali Agca, turco de 25 anos, estava mudo. Não parecia o mesmo homem que, no dia 13 de maio de 1981, acionou cinco vezes o gatilho de uma pistola Browning no meio da praça São Pedro, no Vaticano. O papa João Paulo II tinha acabado de beijar uma criança, quando o primeiro tiro foi disparado. Três tiros acertaram o papa: um no abdóme (mais tarde, foram extraídos 55 centímetros de seu intestino); outro no braço direito, em dois pontos; um terceiro no dedo mínimo da mão esquerda, mão que ontem, às 12h10 (8h10 de Brasília), Agca quis beijar.

Os dois — agressor e vítima — estavam comovidos.

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— É aqui o lugar onde ficas? — perguntou o papa em italiano, para só então procurar saber se Agca sabia falar essa língua. Sabia.

— Sim — respondeu Ali Agca.

— Como te sentes, te sentes bem?

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O turco respondeu que “sim” e os dois se sentaram em cadeiras de plástico colocadas uma próxima a outra, perto da estufa da cela. Não pareciam mais estar em uma cela de prisão, mas num confessionário: a partir daí, o volume das vozes baixou ao sussurro. Era uma confissão.

Durante 21 minutos, os dois conversaram em voz baixa, o turco quase sempre de cabeça baixa. Várias vezes; o papa teve de aproximar seu ouvido dos lábios do seu agressor, para escutá-lo melhor. Houve um momento em que Agca enxugou uma lágrima — e João Paulo II tomou-lhe as mãos entre as suas.

Ali Agca estava arrependido. Barba um pouco grande, pulôver azul, calças jeans, tênis, o prisioneiro — condenado à prisão perpétua — parecia sinceramente arrependido de seu ato. E João Paulo II não tinha a menor dúvida disso no momento em que, encerrada a entrevista, permitiu que dois cinegrafistas da televisão italiana e um fotógrafo do L’Osservatore Romano registrassem a cena histórica.

Mais uma vez, Ali Agca tomou as mãos do papa. Ajoelhou-se e as beijou. Lentamente, João Paulo II saiu em direção ao corredor em que esperavam a comitiva papal, os guardas da prisão (mais de cem foram mobilizados) e a imprensa.

— O que conversamos é um segredo entre eu e ele — disse o papa.

— Devo respeitar os segredos de uma pessoa.

Um jornalista de uma agência de notícias italiana quis confirmar se Ali Agca tinha declarado seu arrependimento por ter cometido o atentado. O papa respondeu afirmativamente. Perguntaram-lhe, então, se havia abençoado o autor da tentativa de assassinato de si próprio.

João Paulo II:

— Eu falei com ele como se fala com um irmão, ao qual já perdoei e que goza da minha inteira confiança.

De fato, foi preciso muita confiança para ficar sozinho com Agca, terrorista considerado violento, na mesma cela, sem mais ninguém por perto. Mas tanto o papa quanto Ali Agca preferiram assim (inicialmente, o encontro deveria ser presenciado pelo menos por dois policiais).

Por isso mesmo, nos últimos dias, desde que foi anunciada a visita papal à prisão de Retibbia, os cuidados com a segurança aumentaram. Todas as visitas eram minuciosamente revistadas, à procura de armas escondidas. Todos os 1.500 presos foram também revistados diariamente. Ontem, o dia marcado, os cuidados da direção do presídio chegaram perto da paranóia.

Conta o nosso correspondente em Roma, Rocco Morabito, que o papa chegou à prisão de Rebibbia, ontem, pouco antes das dez da manhã (6 horas de Brasília) num automóvel que, após chegar ao pátio, abaixou a capota. O motorista era o mesmo que acompanhava João Paulo II no dia do atentado.

Ontem, o dia foi ensolarado, mas com muito vento que erguia o casaco do papa. Ele estava acompanhado pelo cardeal-vigário Ugo Peletti. E foi recebido pelo ministro de Justiça, Mino Martinazzoli, pelo diretor dos institutos penais de toda a Itália, Nicoló Amato (que no processo relativo ao atentado representou a promotoria pública, pedindo a condenação de Agca a prisão perpétua) e os capelães da prisão.

Os primeiros aplausos para o papa partiram de um grande grupo de familiares de detentos que aguardavam permissão para visitá-los. Na capela da prisão, de paredes nuas e decoradas apenas com algumas colunas e com vitrais coloridos, estavam 400 detentos sorteados entre as diversas alas, onde se encontram um total de 1.500 reclusos, e presos, que receberam o papa com grandes aplausos.

Na prisão de Rebibbia, o papa apertou as mãos de ladrões, assassinos, prostitutas e, principalmente, terroristas. Pelo menos quatro terroristas falaram com o papa: Valerio Morucci, das Brigadas Vermelhas, um dos responsáveis pelo seqüestro de Aldo Moro; Giuseppe Funaro, militante esquerdista; Luca Onesti, terrorista de direita (que fez o discurso de boas-vindas, ontem); e, é claro, Ali Agca.

O papa celebrou a liturgia da palavra, em sua homilia. No seu discurso aos prisioneiros, lembrou seus direitos a um tratamento justo, aberto à possibilidade de reingresso na sociedade. Após ter dito que tinha ido lá também para celebrar o Ano Santo da Redenção, ele se referiu ao tema da “reconciliação entre os homens, que está no centro do jubileu”.

Ele disse também que esses encontros na prisão “o comovem profundamente” e que o seu desejo seria poder conversar com cada um dos detentos durante longo tempo. “Gostaria, principamente”, acrescentou, “de poder ouvir o que cada um gostaria de me contar a respeito de suas próprias experiências pessoais e da situação de suas próprias famílias, a respeito das desilusões acumuladas no passado e as expectativas que, apesar de tudo, continuam tendo em relação ao futuro.

Tenho certeza de que uma conversa desse tipo permitiria que eu avaliasse a profundidade dos sentimentos e as riquezas de humanidade que cada qual guarda dentro de si”. Como homem e como cristão, ele expressou estima pelos presentes.

“A Igreja”, continuou o papa, “aprecia e encoraja os esforços de todos os que se empenham para o desenvolvimento do sistema carcerário”. Ele também desejou um ano melhor do que o que está chegando ao fim em todas as prisões do mundo. “Será um ano melhor, se dentro de nossos corações conseguirmos reservar um espaço maior para Deus e para o amor.”

Os detentos aplaudiram longamente as palavras do papa. Depois, dentre eles saiu um jovem, de barba e óculos, um prisioneiro político, que entregou ao papa uma placa de ouro oferecida pelos presos numa coleta espontânea, na qual estão escritas as seguintes palavras: “Na nossa humildade e solidão, como recordação de um dia feliz”.

Outros presentes dos encarcerados (tinham, todos eles, recebido no Natal em suas celas um panetone enviado pelo papa e que hoje ganharam um rosário): um navio e um banjo construídos com fósforos e palitos dentes. Um crucifixo foi ofertado por um muçulmano convertido.

Nesse momento ocorreu a cena mais comovente do dia: um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo II teve uma palavra.

Bastante movimentado foi o encontro o preso Marco Appignano, apelidado de “O Cavalo Louco”, que lhe entregou uma carta, na qual pede uma anistia para os presos políticos. Ontem, a associação dos processados políticos tinham enviado ao papa um telegrama que dizia: “O senho atlvez veja alguns dos nossos cinco mil filhos. Peça aos cristãos que sejam menos severos com estes nossos filhos”.

Só depois da cerimônia na capela é que acorreu o encontro com Ali Agca, em sua cela. Depois, o papa visitou a ala feminina da prisão para dar também às reclusas uma palavra de conforto. No total, o papa permaneceu na prisão de Rebibbia durante quase três horas e meia.

Durante a visita ao setor feminino, o papa, chamando-as de “caras irmãs”, disse, entre outras coisas: “Tive a oportunidade de me encontrar com a pessoa que todas vocês conhecem pelo nome, Ali Agca, que em 1981, no dia 13 de maio, atentou contra a minha vida. Mas a providência conduziu as coisas de uma tal forma, eu diria que excepcional e maravilhosa, que hoje, após mais de dois anos, pude encontrá-lo e repetir-lhe o meu perdão”.

Depois, o papa ainda acrescentou: “Acredito também que este encontro, no final do Ano Santo da Redenção, é provi dencial e não foi nem planejado nem preparado, mas simplesmente ocorreu. O Senhor me deu a graça de poder encontrar homens, irmãos, porque todos os acontecimentos da nossa vida devem confirmar que Deus é o nosso pai e que todos somos filhos de Jesus Cristo e conseqüentemente somos todos irmãos”.

A televisão italiana mostrou, ontem à noite, a cena em que Ali Agca, sentado em sua cadeira, fala com o papa. Viu-se, também, o jovem turco aproximando-se do rosto do papa, como em uma confissão. A Itália toda (e o mundo inteiro) parece ter gostado da cena.

Em Ancara, Turquia, porém, houve gente que não gostou nada do encontro do papa com seu agressor. Entre eles, os diretores do jornal Milliyet, cujo editor-chefe, Abdi Ipexci, foi assassinado por Ali Agca em 1979.

“É natural que o papa perdoe um pecador” — disse o jornal, ontem, em editorial. Mas quando esse pecador é Mehmet Ali Agca as coisas mudam. Porque Agca não é um simples pecador, mas um assassino feroz; e sua culpa não consiste apenas em haver atentado contra a vida do papa”.

O diário turco afirma também que Agca colaborou com organizações terroristas internacionais depois de sua fuga de uma prisão em Istambul, na qual estava detido. E finalmente chegou à Itália, onde tentou assassinar o papa (mais tarde, Agca denunciaria um complô de agentes búlgaros, com raízes no KGB soviético, do qual foi sim plesmente o executor).

“Ir à cela de Agca” — disse mais o diário Milliyet — “e perdoá-lo... mais do que isso, abençoá-lo... é uma falta de respeito à memória de Abdi Ipexci e se deve considerar como um prêmio a um monstro homicida”.

Talvez. Mas o certo é que o papa foi. E parece ter gostado de poder mostrar a bondade católica — ao vivo.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Dois anos e sete meses depois de ser baleado em plena Praça de São Pedro, no Vaticano, o papa João Paulo II realizou um dos gestos mais marcantes de seu pontificado: visitou numa prisão em Roma o homem que disparou os tiros contra ele em 13 de maio de 1981. O encontro do papa com o turco Mehmet Ali Agca, preso imediatamente após o atentado, foi o destaque da capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983.

Capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

Sobre uma grande foto dos dois dentro de uma cela conversando bem próximos, o título da manchete informava: O papa leva o perdão ao homem que tentou matá-lo”. A legenda da impactante imagem dava mais detalhes do encontro, que teve clima de um confessionário, com os dois homens conversando em sussurros: “Vinte e um minutos numa cela da prisão de Rebibbia, em Roma: o papa encontra-se com o seu quase assassino, Ali Agca. Os dois se apertam as mãos, emocionam-se. Agca se arrepende.

João Paulo II já havia perdoado Mehmet Ali Agca quando estava no hospital, logo após o atentado. Mas o perdão concedido pessoalmente na cela ganhou outra dimensão, com João Paulo chamando Agca de “Irmão”. “Emotivo, com lágrimas e arrependimento”, descreveu a reportagem de página inteira “O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida”.

Na prisão, além do seu agressor, João Paulo também apertou a mão de ladrões, assassinos, prostitutas e terroristas. “Um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo teve uma palavra.”

Leia a íntegra da reportagem original:

Jornal da Tarde - 28 de dezembro de 1983

Página do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida

O encontro de João Paulo II com o terrorista Ali Agca, na prisão de Rebibbia, em Roma: emotivo, com lágrimas e arrependimento.

— Irmão...

Mehmet Ali Agca baixou a cabeça. Estava parado um pouco atrás da porta de sua cela, quatro metros por cinco, no pavilhão sete da prisão de Rebibbia, na periferia de Roma. Deixou que o homem de voz mansa, que o chamara de “irmão”, entrasse na cela. Beijou-lhe a mão, uma delas ainda com a cicatriz de um ferimento a bala sofrido há 31 meses. Tomou a mão e colocou-a em sua cabeça, à maneira oriental, sinal de profundo respeito. O papa João Paulo II repetiu:

— Irmão...

Ali Agca, turco de 25 anos, estava mudo. Não parecia o mesmo homem que, no dia 13 de maio de 1981, acionou cinco vezes o gatilho de uma pistola Browning no meio da praça São Pedro, no Vaticano. O papa João Paulo II tinha acabado de beijar uma criança, quando o primeiro tiro foi disparado. Três tiros acertaram o papa: um no abdóme (mais tarde, foram extraídos 55 centímetros de seu intestino); outro no braço direito, em dois pontos; um terceiro no dedo mínimo da mão esquerda, mão que ontem, às 12h10 (8h10 de Brasília), Agca quis beijar.

Os dois — agressor e vítima — estavam comovidos.

— É aqui o lugar onde ficas? — perguntou o papa em italiano, para só então procurar saber se Agca sabia falar essa língua. Sabia.

— Sim — respondeu Ali Agca.

— Como te sentes, te sentes bem?

O turco respondeu que “sim” e os dois se sentaram em cadeiras de plástico colocadas uma próxima a outra, perto da estufa da cela. Não pareciam mais estar em uma cela de prisão, mas num confessionário: a partir daí, o volume das vozes baixou ao sussurro. Era uma confissão.

Durante 21 minutos, os dois conversaram em voz baixa, o turco quase sempre de cabeça baixa. Várias vezes; o papa teve de aproximar seu ouvido dos lábios do seu agressor, para escutá-lo melhor. Houve um momento em que Agca enxugou uma lágrima — e João Paulo II tomou-lhe as mãos entre as suas.

Ali Agca estava arrependido. Barba um pouco grande, pulôver azul, calças jeans, tênis, o prisioneiro — condenado à prisão perpétua — parecia sinceramente arrependido de seu ato. E João Paulo II não tinha a menor dúvida disso no momento em que, encerrada a entrevista, permitiu que dois cinegrafistas da televisão italiana e um fotógrafo do L’Osservatore Romano registrassem a cena histórica.

Mais uma vez, Ali Agca tomou as mãos do papa. Ajoelhou-se e as beijou. Lentamente, João Paulo II saiu em direção ao corredor em que esperavam a comitiva papal, os guardas da prisão (mais de cem foram mobilizados) e a imprensa.

— O que conversamos é um segredo entre eu e ele — disse o papa.

— Devo respeitar os segredos de uma pessoa.

Um jornalista de uma agência de notícias italiana quis confirmar se Ali Agca tinha declarado seu arrependimento por ter cometido o atentado. O papa respondeu afirmativamente. Perguntaram-lhe, então, se havia abençoado o autor da tentativa de assassinato de si próprio.

João Paulo II:

— Eu falei com ele como se fala com um irmão, ao qual já perdoei e que goza da minha inteira confiança.

De fato, foi preciso muita confiança para ficar sozinho com Agca, terrorista considerado violento, na mesma cela, sem mais ninguém por perto. Mas tanto o papa quanto Ali Agca preferiram assim (inicialmente, o encontro deveria ser presenciado pelo menos por dois policiais).

Por isso mesmo, nos últimos dias, desde que foi anunciada a visita papal à prisão de Retibbia, os cuidados com a segurança aumentaram. Todas as visitas eram minuciosamente revistadas, à procura de armas escondidas. Todos os 1.500 presos foram também revistados diariamente. Ontem, o dia marcado, os cuidados da direção do presídio chegaram perto da paranóia.

Conta o nosso correspondente em Roma, Rocco Morabito, que o papa chegou à prisão de Rebibbia, ontem, pouco antes das dez da manhã (6 horas de Brasília) num automóvel que, após chegar ao pátio, abaixou a capota. O motorista era o mesmo que acompanhava João Paulo II no dia do atentado.

Ontem, o dia foi ensolarado, mas com muito vento que erguia o casaco do papa. Ele estava acompanhado pelo cardeal-vigário Ugo Peletti. E foi recebido pelo ministro de Justiça, Mino Martinazzoli, pelo diretor dos institutos penais de toda a Itália, Nicoló Amato (que no processo relativo ao atentado representou a promotoria pública, pedindo a condenação de Agca a prisão perpétua) e os capelães da prisão.

Os primeiros aplausos para o papa partiram de um grande grupo de familiares de detentos que aguardavam permissão para visitá-los. Na capela da prisão, de paredes nuas e decoradas apenas com algumas colunas e com vitrais coloridos, estavam 400 detentos sorteados entre as diversas alas, onde se encontram um total de 1.500 reclusos, e presos, que receberam o papa com grandes aplausos.

Na prisão de Rebibbia, o papa apertou as mãos de ladrões, assassinos, prostitutas e, principalmente, terroristas. Pelo menos quatro terroristas falaram com o papa: Valerio Morucci, das Brigadas Vermelhas, um dos responsáveis pelo seqüestro de Aldo Moro; Giuseppe Funaro, militante esquerdista; Luca Onesti, terrorista de direita (que fez o discurso de boas-vindas, ontem); e, é claro, Ali Agca.

O papa celebrou a liturgia da palavra, em sua homilia. No seu discurso aos prisioneiros, lembrou seus direitos a um tratamento justo, aberto à possibilidade de reingresso na sociedade. Após ter dito que tinha ido lá também para celebrar o Ano Santo da Redenção, ele se referiu ao tema da “reconciliação entre os homens, que está no centro do jubileu”.

Ele disse também que esses encontros na prisão “o comovem profundamente” e que o seu desejo seria poder conversar com cada um dos detentos durante longo tempo. “Gostaria, principamente”, acrescentou, “de poder ouvir o que cada um gostaria de me contar a respeito de suas próprias experiências pessoais e da situação de suas próprias famílias, a respeito das desilusões acumuladas no passado e as expectativas que, apesar de tudo, continuam tendo em relação ao futuro.

Tenho certeza de que uma conversa desse tipo permitiria que eu avaliasse a profundidade dos sentimentos e as riquezas de humanidade que cada qual guarda dentro de si”. Como homem e como cristão, ele expressou estima pelos presentes.

“A Igreja”, continuou o papa, “aprecia e encoraja os esforços de todos os que se empenham para o desenvolvimento do sistema carcerário”. Ele também desejou um ano melhor do que o que está chegando ao fim em todas as prisões do mundo. “Será um ano melhor, se dentro de nossos corações conseguirmos reservar um espaço maior para Deus e para o amor.”

Os detentos aplaudiram longamente as palavras do papa. Depois, dentre eles saiu um jovem, de barba e óculos, um prisioneiro político, que entregou ao papa uma placa de ouro oferecida pelos presos numa coleta espontânea, na qual estão escritas as seguintes palavras: “Na nossa humildade e solidão, como recordação de um dia feliz”.

Outros presentes dos encarcerados (tinham, todos eles, recebido no Natal em suas celas um panetone enviado pelo papa e que hoje ganharam um rosário): um navio e um banjo construídos com fósforos e palitos dentes. Um crucifixo foi ofertado por um muçulmano convertido.

Nesse momento ocorreu a cena mais comovente do dia: um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo II teve uma palavra.

Bastante movimentado foi o encontro o preso Marco Appignano, apelidado de “O Cavalo Louco”, que lhe entregou uma carta, na qual pede uma anistia para os presos políticos. Ontem, a associação dos processados políticos tinham enviado ao papa um telegrama que dizia: “O senho atlvez veja alguns dos nossos cinco mil filhos. Peça aos cristãos que sejam menos severos com estes nossos filhos”.

Só depois da cerimônia na capela é que acorreu o encontro com Ali Agca, em sua cela. Depois, o papa visitou a ala feminina da prisão para dar também às reclusas uma palavra de conforto. No total, o papa permaneceu na prisão de Rebibbia durante quase três horas e meia.

Durante a visita ao setor feminino, o papa, chamando-as de “caras irmãs”, disse, entre outras coisas: “Tive a oportunidade de me encontrar com a pessoa que todas vocês conhecem pelo nome, Ali Agca, que em 1981, no dia 13 de maio, atentou contra a minha vida. Mas a providência conduziu as coisas de uma tal forma, eu diria que excepcional e maravilhosa, que hoje, após mais de dois anos, pude encontrá-lo e repetir-lhe o meu perdão”.

Depois, o papa ainda acrescentou: “Acredito também que este encontro, no final do Ano Santo da Redenção, é provi dencial e não foi nem planejado nem preparado, mas simplesmente ocorreu. O Senhor me deu a graça de poder encontrar homens, irmãos, porque todos os acontecimentos da nossa vida devem confirmar que Deus é o nosso pai e que todos somos filhos de Jesus Cristo e conseqüentemente somos todos irmãos”.

A televisão italiana mostrou, ontem à noite, a cena em que Ali Agca, sentado em sua cadeira, fala com o papa. Viu-se, também, o jovem turco aproximando-se do rosto do papa, como em uma confissão. A Itália toda (e o mundo inteiro) parece ter gostado da cena.

Em Ancara, Turquia, porém, houve gente que não gostou nada do encontro do papa com seu agressor. Entre eles, os diretores do jornal Milliyet, cujo editor-chefe, Abdi Ipexci, foi assassinado por Ali Agca em 1979.

“É natural que o papa perdoe um pecador” — disse o jornal, ontem, em editorial. Mas quando esse pecador é Mehmet Ali Agca as coisas mudam. Porque Agca não é um simples pecador, mas um assassino feroz; e sua culpa não consiste apenas em haver atentado contra a vida do papa”.

O diário turco afirma também que Agca colaborou com organizações terroristas internacionais depois de sua fuga de uma prisão em Istambul, na qual estava detido. E finalmente chegou à Itália, onde tentou assassinar o papa (mais tarde, Agca denunciaria um complô de agentes búlgaros, com raízes no KGB soviético, do qual foi sim plesmente o executor).

“Ir à cela de Agca” — disse mais o diário Milliyet — “e perdoá-lo... mais do que isso, abençoá-lo... é uma falta de respeito à memória de Abdi Ipexci e se deve considerar como um prêmio a um monstro homicida”.

Talvez. Mas o certo é que o papa foi. E parece ter gostado de poder mostrar a bondade católica — ao vivo.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Dois anos e sete meses depois de ser baleado em plena Praça de São Pedro, no Vaticano, o papa João Paulo II realizou um dos gestos mais marcantes de seu pontificado: visitou numa prisão em Roma o homem que disparou os tiros contra ele em 13 de maio de 1981. O encontro do papa com o turco Mehmet Ali Agca, preso imediatamente após o atentado, foi o destaque da capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983.

Capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

Sobre uma grande foto dos dois dentro de uma cela conversando bem próximos, o título da manchete informava: O papa leva o perdão ao homem que tentou matá-lo”. A legenda da impactante imagem dava mais detalhes do encontro, que teve clima de um confessionário, com os dois homens conversando em sussurros: “Vinte e um minutos numa cela da prisão de Rebibbia, em Roma: o papa encontra-se com o seu quase assassino, Ali Agca. Os dois se apertam as mãos, emocionam-se. Agca se arrepende.

João Paulo II já havia perdoado Mehmet Ali Agca quando estava no hospital, logo após o atentado. Mas o perdão concedido pessoalmente na cela ganhou outra dimensão, com João Paulo chamando Agca de “Irmão”. “Emotivo, com lágrimas e arrependimento”, descreveu a reportagem de página inteira “O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida”.

Na prisão, além do seu agressor, João Paulo também apertou a mão de ladrões, assassinos, prostitutas e terroristas. “Um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo teve uma palavra.”

Leia a íntegra da reportagem original:

Jornal da Tarde - 28 de dezembro de 1983

Página do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida

O encontro de João Paulo II com o terrorista Ali Agca, na prisão de Rebibbia, em Roma: emotivo, com lágrimas e arrependimento.

— Irmão...

Mehmet Ali Agca baixou a cabeça. Estava parado um pouco atrás da porta de sua cela, quatro metros por cinco, no pavilhão sete da prisão de Rebibbia, na periferia de Roma. Deixou que o homem de voz mansa, que o chamara de “irmão”, entrasse na cela. Beijou-lhe a mão, uma delas ainda com a cicatriz de um ferimento a bala sofrido há 31 meses. Tomou a mão e colocou-a em sua cabeça, à maneira oriental, sinal de profundo respeito. O papa João Paulo II repetiu:

— Irmão...

Ali Agca, turco de 25 anos, estava mudo. Não parecia o mesmo homem que, no dia 13 de maio de 1981, acionou cinco vezes o gatilho de uma pistola Browning no meio da praça São Pedro, no Vaticano. O papa João Paulo II tinha acabado de beijar uma criança, quando o primeiro tiro foi disparado. Três tiros acertaram o papa: um no abdóme (mais tarde, foram extraídos 55 centímetros de seu intestino); outro no braço direito, em dois pontos; um terceiro no dedo mínimo da mão esquerda, mão que ontem, às 12h10 (8h10 de Brasília), Agca quis beijar.

Os dois — agressor e vítima — estavam comovidos.

— É aqui o lugar onde ficas? — perguntou o papa em italiano, para só então procurar saber se Agca sabia falar essa língua. Sabia.

— Sim — respondeu Ali Agca.

— Como te sentes, te sentes bem?

O turco respondeu que “sim” e os dois se sentaram em cadeiras de plástico colocadas uma próxima a outra, perto da estufa da cela. Não pareciam mais estar em uma cela de prisão, mas num confessionário: a partir daí, o volume das vozes baixou ao sussurro. Era uma confissão.

Durante 21 minutos, os dois conversaram em voz baixa, o turco quase sempre de cabeça baixa. Várias vezes; o papa teve de aproximar seu ouvido dos lábios do seu agressor, para escutá-lo melhor. Houve um momento em que Agca enxugou uma lágrima — e João Paulo II tomou-lhe as mãos entre as suas.

Ali Agca estava arrependido. Barba um pouco grande, pulôver azul, calças jeans, tênis, o prisioneiro — condenado à prisão perpétua — parecia sinceramente arrependido de seu ato. E João Paulo II não tinha a menor dúvida disso no momento em que, encerrada a entrevista, permitiu que dois cinegrafistas da televisão italiana e um fotógrafo do L’Osservatore Romano registrassem a cena histórica.

Mais uma vez, Ali Agca tomou as mãos do papa. Ajoelhou-se e as beijou. Lentamente, João Paulo II saiu em direção ao corredor em que esperavam a comitiva papal, os guardas da prisão (mais de cem foram mobilizados) e a imprensa.

— O que conversamos é um segredo entre eu e ele — disse o papa.

— Devo respeitar os segredos de uma pessoa.

Um jornalista de uma agência de notícias italiana quis confirmar se Ali Agca tinha declarado seu arrependimento por ter cometido o atentado. O papa respondeu afirmativamente. Perguntaram-lhe, então, se havia abençoado o autor da tentativa de assassinato de si próprio.

João Paulo II:

— Eu falei com ele como se fala com um irmão, ao qual já perdoei e que goza da minha inteira confiança.

De fato, foi preciso muita confiança para ficar sozinho com Agca, terrorista considerado violento, na mesma cela, sem mais ninguém por perto. Mas tanto o papa quanto Ali Agca preferiram assim (inicialmente, o encontro deveria ser presenciado pelo menos por dois policiais).

Por isso mesmo, nos últimos dias, desde que foi anunciada a visita papal à prisão de Retibbia, os cuidados com a segurança aumentaram. Todas as visitas eram minuciosamente revistadas, à procura de armas escondidas. Todos os 1.500 presos foram também revistados diariamente. Ontem, o dia marcado, os cuidados da direção do presídio chegaram perto da paranóia.

Conta o nosso correspondente em Roma, Rocco Morabito, que o papa chegou à prisão de Rebibbia, ontem, pouco antes das dez da manhã (6 horas de Brasília) num automóvel que, após chegar ao pátio, abaixou a capota. O motorista era o mesmo que acompanhava João Paulo II no dia do atentado.

Ontem, o dia foi ensolarado, mas com muito vento que erguia o casaco do papa. Ele estava acompanhado pelo cardeal-vigário Ugo Peletti. E foi recebido pelo ministro de Justiça, Mino Martinazzoli, pelo diretor dos institutos penais de toda a Itália, Nicoló Amato (que no processo relativo ao atentado representou a promotoria pública, pedindo a condenação de Agca a prisão perpétua) e os capelães da prisão.

Os primeiros aplausos para o papa partiram de um grande grupo de familiares de detentos que aguardavam permissão para visitá-los. Na capela da prisão, de paredes nuas e decoradas apenas com algumas colunas e com vitrais coloridos, estavam 400 detentos sorteados entre as diversas alas, onde se encontram um total de 1.500 reclusos, e presos, que receberam o papa com grandes aplausos.

Na prisão de Rebibbia, o papa apertou as mãos de ladrões, assassinos, prostitutas e, principalmente, terroristas. Pelo menos quatro terroristas falaram com o papa: Valerio Morucci, das Brigadas Vermelhas, um dos responsáveis pelo seqüestro de Aldo Moro; Giuseppe Funaro, militante esquerdista; Luca Onesti, terrorista de direita (que fez o discurso de boas-vindas, ontem); e, é claro, Ali Agca.

O papa celebrou a liturgia da palavra, em sua homilia. No seu discurso aos prisioneiros, lembrou seus direitos a um tratamento justo, aberto à possibilidade de reingresso na sociedade. Após ter dito que tinha ido lá também para celebrar o Ano Santo da Redenção, ele se referiu ao tema da “reconciliação entre os homens, que está no centro do jubileu”.

Ele disse também que esses encontros na prisão “o comovem profundamente” e que o seu desejo seria poder conversar com cada um dos detentos durante longo tempo. “Gostaria, principamente”, acrescentou, “de poder ouvir o que cada um gostaria de me contar a respeito de suas próprias experiências pessoais e da situação de suas próprias famílias, a respeito das desilusões acumuladas no passado e as expectativas que, apesar de tudo, continuam tendo em relação ao futuro.

Tenho certeza de que uma conversa desse tipo permitiria que eu avaliasse a profundidade dos sentimentos e as riquezas de humanidade que cada qual guarda dentro de si”. Como homem e como cristão, ele expressou estima pelos presentes.

“A Igreja”, continuou o papa, “aprecia e encoraja os esforços de todos os que se empenham para o desenvolvimento do sistema carcerário”. Ele também desejou um ano melhor do que o que está chegando ao fim em todas as prisões do mundo. “Será um ano melhor, se dentro de nossos corações conseguirmos reservar um espaço maior para Deus e para o amor.”

Os detentos aplaudiram longamente as palavras do papa. Depois, dentre eles saiu um jovem, de barba e óculos, um prisioneiro político, que entregou ao papa uma placa de ouro oferecida pelos presos numa coleta espontânea, na qual estão escritas as seguintes palavras: “Na nossa humildade e solidão, como recordação de um dia feliz”.

Outros presentes dos encarcerados (tinham, todos eles, recebido no Natal em suas celas um panetone enviado pelo papa e que hoje ganharam um rosário): um navio e um banjo construídos com fósforos e palitos dentes. Um crucifixo foi ofertado por um muçulmano convertido.

Nesse momento ocorreu a cena mais comovente do dia: um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo II teve uma palavra.

Bastante movimentado foi o encontro o preso Marco Appignano, apelidado de “O Cavalo Louco”, que lhe entregou uma carta, na qual pede uma anistia para os presos políticos. Ontem, a associação dos processados políticos tinham enviado ao papa um telegrama que dizia: “O senho atlvez veja alguns dos nossos cinco mil filhos. Peça aos cristãos que sejam menos severos com estes nossos filhos”.

Só depois da cerimônia na capela é que acorreu o encontro com Ali Agca, em sua cela. Depois, o papa visitou a ala feminina da prisão para dar também às reclusas uma palavra de conforto. No total, o papa permaneceu na prisão de Rebibbia durante quase três horas e meia.

Durante a visita ao setor feminino, o papa, chamando-as de “caras irmãs”, disse, entre outras coisas: “Tive a oportunidade de me encontrar com a pessoa que todas vocês conhecem pelo nome, Ali Agca, que em 1981, no dia 13 de maio, atentou contra a minha vida. Mas a providência conduziu as coisas de uma tal forma, eu diria que excepcional e maravilhosa, que hoje, após mais de dois anos, pude encontrá-lo e repetir-lhe o meu perdão”.

Depois, o papa ainda acrescentou: “Acredito também que este encontro, no final do Ano Santo da Redenção, é provi dencial e não foi nem planejado nem preparado, mas simplesmente ocorreu. O Senhor me deu a graça de poder encontrar homens, irmãos, porque todos os acontecimentos da nossa vida devem confirmar que Deus é o nosso pai e que todos somos filhos de Jesus Cristo e conseqüentemente somos todos irmãos”.

A televisão italiana mostrou, ontem à noite, a cena em que Ali Agca, sentado em sua cadeira, fala com o papa. Viu-se, também, o jovem turco aproximando-se do rosto do papa, como em uma confissão. A Itália toda (e o mundo inteiro) parece ter gostado da cena.

Em Ancara, Turquia, porém, houve gente que não gostou nada do encontro do papa com seu agressor. Entre eles, os diretores do jornal Milliyet, cujo editor-chefe, Abdi Ipexci, foi assassinado por Ali Agca em 1979.

“É natural que o papa perdoe um pecador” — disse o jornal, ontem, em editorial. Mas quando esse pecador é Mehmet Ali Agca as coisas mudam. Porque Agca não é um simples pecador, mas um assassino feroz; e sua culpa não consiste apenas em haver atentado contra a vida do papa”.

O diário turco afirma também que Agca colaborou com organizações terroristas internacionais depois de sua fuga de uma prisão em Istambul, na qual estava detido. E finalmente chegou à Itália, onde tentou assassinar o papa (mais tarde, Agca denunciaria um complô de agentes búlgaros, com raízes no KGB soviético, do qual foi sim plesmente o executor).

“Ir à cela de Agca” — disse mais o diário Milliyet — “e perdoá-lo... mais do que isso, abençoá-lo... é uma falta de respeito à memória de Abdi Ipexci e se deve considerar como um prêmio a um monstro homicida”.

Talvez. Mas o certo é que o papa foi. E parece ter gostado de poder mostrar a bondade católica — ao vivo.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Dois anos e sete meses depois de ser baleado em plena Praça de São Pedro, no Vaticano, o papa João Paulo II realizou um dos gestos mais marcantes de seu pontificado: visitou numa prisão em Roma o homem que disparou os tiros contra ele em 13 de maio de 1981. O encontro do papa com o turco Mehmet Ali Agca, preso imediatamente após o atentado, foi o destaque da capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983.

Capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

Sobre uma grande foto dos dois dentro de uma cela conversando bem próximos, o título da manchete informava: O papa leva o perdão ao homem que tentou matá-lo”. A legenda da impactante imagem dava mais detalhes do encontro, que teve clima de um confessionário, com os dois homens conversando em sussurros: “Vinte e um minutos numa cela da prisão de Rebibbia, em Roma: o papa encontra-se com o seu quase assassino, Ali Agca. Os dois se apertam as mãos, emocionam-se. Agca se arrepende.

João Paulo II já havia perdoado Mehmet Ali Agca quando estava no hospital, logo após o atentado. Mas o perdão concedido pessoalmente na cela ganhou outra dimensão, com João Paulo chamando Agca de “Irmão”. “Emotivo, com lágrimas e arrependimento”, descreveu a reportagem de página inteira “O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida”.

Na prisão, além do seu agressor, João Paulo também apertou a mão de ladrões, assassinos, prostitutas e terroristas. “Um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo teve uma palavra.”

Leia a íntegra da reportagem original:

Jornal da Tarde - 28 de dezembro de 1983

Página do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida

O encontro de João Paulo II com o terrorista Ali Agca, na prisão de Rebibbia, em Roma: emotivo, com lágrimas e arrependimento.

— Irmão...

Mehmet Ali Agca baixou a cabeça. Estava parado um pouco atrás da porta de sua cela, quatro metros por cinco, no pavilhão sete da prisão de Rebibbia, na periferia de Roma. Deixou que o homem de voz mansa, que o chamara de “irmão”, entrasse na cela. Beijou-lhe a mão, uma delas ainda com a cicatriz de um ferimento a bala sofrido há 31 meses. Tomou a mão e colocou-a em sua cabeça, à maneira oriental, sinal de profundo respeito. O papa João Paulo II repetiu:

— Irmão...

Ali Agca, turco de 25 anos, estava mudo. Não parecia o mesmo homem que, no dia 13 de maio de 1981, acionou cinco vezes o gatilho de uma pistola Browning no meio da praça São Pedro, no Vaticano. O papa João Paulo II tinha acabado de beijar uma criança, quando o primeiro tiro foi disparado. Três tiros acertaram o papa: um no abdóme (mais tarde, foram extraídos 55 centímetros de seu intestino); outro no braço direito, em dois pontos; um terceiro no dedo mínimo da mão esquerda, mão que ontem, às 12h10 (8h10 de Brasília), Agca quis beijar.

Os dois — agressor e vítima — estavam comovidos.

— É aqui o lugar onde ficas? — perguntou o papa em italiano, para só então procurar saber se Agca sabia falar essa língua. Sabia.

— Sim — respondeu Ali Agca.

— Como te sentes, te sentes bem?

O turco respondeu que “sim” e os dois se sentaram em cadeiras de plástico colocadas uma próxima a outra, perto da estufa da cela. Não pareciam mais estar em uma cela de prisão, mas num confessionário: a partir daí, o volume das vozes baixou ao sussurro. Era uma confissão.

Durante 21 minutos, os dois conversaram em voz baixa, o turco quase sempre de cabeça baixa. Várias vezes; o papa teve de aproximar seu ouvido dos lábios do seu agressor, para escutá-lo melhor. Houve um momento em que Agca enxugou uma lágrima — e João Paulo II tomou-lhe as mãos entre as suas.

Ali Agca estava arrependido. Barba um pouco grande, pulôver azul, calças jeans, tênis, o prisioneiro — condenado à prisão perpétua — parecia sinceramente arrependido de seu ato. E João Paulo II não tinha a menor dúvida disso no momento em que, encerrada a entrevista, permitiu que dois cinegrafistas da televisão italiana e um fotógrafo do L’Osservatore Romano registrassem a cena histórica.

Mais uma vez, Ali Agca tomou as mãos do papa. Ajoelhou-se e as beijou. Lentamente, João Paulo II saiu em direção ao corredor em que esperavam a comitiva papal, os guardas da prisão (mais de cem foram mobilizados) e a imprensa.

— O que conversamos é um segredo entre eu e ele — disse o papa.

— Devo respeitar os segredos de uma pessoa.

Um jornalista de uma agência de notícias italiana quis confirmar se Ali Agca tinha declarado seu arrependimento por ter cometido o atentado. O papa respondeu afirmativamente. Perguntaram-lhe, então, se havia abençoado o autor da tentativa de assassinato de si próprio.

João Paulo II:

— Eu falei com ele como se fala com um irmão, ao qual já perdoei e que goza da minha inteira confiança.

De fato, foi preciso muita confiança para ficar sozinho com Agca, terrorista considerado violento, na mesma cela, sem mais ninguém por perto. Mas tanto o papa quanto Ali Agca preferiram assim (inicialmente, o encontro deveria ser presenciado pelo menos por dois policiais).

Por isso mesmo, nos últimos dias, desde que foi anunciada a visita papal à prisão de Retibbia, os cuidados com a segurança aumentaram. Todas as visitas eram minuciosamente revistadas, à procura de armas escondidas. Todos os 1.500 presos foram também revistados diariamente. Ontem, o dia marcado, os cuidados da direção do presídio chegaram perto da paranóia.

Conta o nosso correspondente em Roma, Rocco Morabito, que o papa chegou à prisão de Rebibbia, ontem, pouco antes das dez da manhã (6 horas de Brasília) num automóvel que, após chegar ao pátio, abaixou a capota. O motorista era o mesmo que acompanhava João Paulo II no dia do atentado.

Ontem, o dia foi ensolarado, mas com muito vento que erguia o casaco do papa. Ele estava acompanhado pelo cardeal-vigário Ugo Peletti. E foi recebido pelo ministro de Justiça, Mino Martinazzoli, pelo diretor dos institutos penais de toda a Itália, Nicoló Amato (que no processo relativo ao atentado representou a promotoria pública, pedindo a condenação de Agca a prisão perpétua) e os capelães da prisão.

Os primeiros aplausos para o papa partiram de um grande grupo de familiares de detentos que aguardavam permissão para visitá-los. Na capela da prisão, de paredes nuas e decoradas apenas com algumas colunas e com vitrais coloridos, estavam 400 detentos sorteados entre as diversas alas, onde se encontram um total de 1.500 reclusos, e presos, que receberam o papa com grandes aplausos.

Na prisão de Rebibbia, o papa apertou as mãos de ladrões, assassinos, prostitutas e, principalmente, terroristas. Pelo menos quatro terroristas falaram com o papa: Valerio Morucci, das Brigadas Vermelhas, um dos responsáveis pelo seqüestro de Aldo Moro; Giuseppe Funaro, militante esquerdista; Luca Onesti, terrorista de direita (que fez o discurso de boas-vindas, ontem); e, é claro, Ali Agca.

O papa celebrou a liturgia da palavra, em sua homilia. No seu discurso aos prisioneiros, lembrou seus direitos a um tratamento justo, aberto à possibilidade de reingresso na sociedade. Após ter dito que tinha ido lá também para celebrar o Ano Santo da Redenção, ele se referiu ao tema da “reconciliação entre os homens, que está no centro do jubileu”.

Ele disse também que esses encontros na prisão “o comovem profundamente” e que o seu desejo seria poder conversar com cada um dos detentos durante longo tempo. “Gostaria, principamente”, acrescentou, “de poder ouvir o que cada um gostaria de me contar a respeito de suas próprias experiências pessoais e da situação de suas próprias famílias, a respeito das desilusões acumuladas no passado e as expectativas que, apesar de tudo, continuam tendo em relação ao futuro.

Tenho certeza de que uma conversa desse tipo permitiria que eu avaliasse a profundidade dos sentimentos e as riquezas de humanidade que cada qual guarda dentro de si”. Como homem e como cristão, ele expressou estima pelos presentes.

“A Igreja”, continuou o papa, “aprecia e encoraja os esforços de todos os que se empenham para o desenvolvimento do sistema carcerário”. Ele também desejou um ano melhor do que o que está chegando ao fim em todas as prisões do mundo. “Será um ano melhor, se dentro de nossos corações conseguirmos reservar um espaço maior para Deus e para o amor.”

Os detentos aplaudiram longamente as palavras do papa. Depois, dentre eles saiu um jovem, de barba e óculos, um prisioneiro político, que entregou ao papa uma placa de ouro oferecida pelos presos numa coleta espontânea, na qual estão escritas as seguintes palavras: “Na nossa humildade e solidão, como recordação de um dia feliz”.

Outros presentes dos encarcerados (tinham, todos eles, recebido no Natal em suas celas um panetone enviado pelo papa e que hoje ganharam um rosário): um navio e um banjo construídos com fósforos e palitos dentes. Um crucifixo foi ofertado por um muçulmano convertido.

Nesse momento ocorreu a cena mais comovente do dia: um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo II teve uma palavra.

Bastante movimentado foi o encontro o preso Marco Appignano, apelidado de “O Cavalo Louco”, que lhe entregou uma carta, na qual pede uma anistia para os presos políticos. Ontem, a associação dos processados políticos tinham enviado ao papa um telegrama que dizia: “O senho atlvez veja alguns dos nossos cinco mil filhos. Peça aos cristãos que sejam menos severos com estes nossos filhos”.

Só depois da cerimônia na capela é que acorreu o encontro com Ali Agca, em sua cela. Depois, o papa visitou a ala feminina da prisão para dar também às reclusas uma palavra de conforto. No total, o papa permaneceu na prisão de Rebibbia durante quase três horas e meia.

Durante a visita ao setor feminino, o papa, chamando-as de “caras irmãs”, disse, entre outras coisas: “Tive a oportunidade de me encontrar com a pessoa que todas vocês conhecem pelo nome, Ali Agca, que em 1981, no dia 13 de maio, atentou contra a minha vida. Mas a providência conduziu as coisas de uma tal forma, eu diria que excepcional e maravilhosa, que hoje, após mais de dois anos, pude encontrá-lo e repetir-lhe o meu perdão”.

Depois, o papa ainda acrescentou: “Acredito também que este encontro, no final do Ano Santo da Redenção, é provi dencial e não foi nem planejado nem preparado, mas simplesmente ocorreu. O Senhor me deu a graça de poder encontrar homens, irmãos, porque todos os acontecimentos da nossa vida devem confirmar que Deus é o nosso pai e que todos somos filhos de Jesus Cristo e conseqüentemente somos todos irmãos”.

A televisão italiana mostrou, ontem à noite, a cena em que Ali Agca, sentado em sua cadeira, fala com o papa. Viu-se, também, o jovem turco aproximando-se do rosto do papa, como em uma confissão. A Itália toda (e o mundo inteiro) parece ter gostado da cena.

Em Ancara, Turquia, porém, houve gente que não gostou nada do encontro do papa com seu agressor. Entre eles, os diretores do jornal Milliyet, cujo editor-chefe, Abdi Ipexci, foi assassinado por Ali Agca em 1979.

“É natural que o papa perdoe um pecador” — disse o jornal, ontem, em editorial. Mas quando esse pecador é Mehmet Ali Agca as coisas mudam. Porque Agca não é um simples pecador, mas um assassino feroz; e sua culpa não consiste apenas em haver atentado contra a vida do papa”.

O diário turco afirma também que Agca colaborou com organizações terroristas internacionais depois de sua fuga de uma prisão em Istambul, na qual estava detido. E finalmente chegou à Itália, onde tentou assassinar o papa (mais tarde, Agca denunciaria um complô de agentes búlgaros, com raízes no KGB soviético, do qual foi sim plesmente o executor).

“Ir à cela de Agca” — disse mais o diário Milliyet — “e perdoá-lo... mais do que isso, abençoá-lo... é uma falta de respeito à memória de Abdi Ipexci e se deve considerar como um prêmio a um monstro homicida”.

Talvez. Mas o certo é que o papa foi. E parece ter gostado de poder mostrar a bondade católica — ao vivo.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Dois anos e sete meses depois de ser baleado em plena Praça de São Pedro, no Vaticano, o papa João Paulo II realizou um dos gestos mais marcantes de seu pontificado: visitou numa prisão em Roma o homem que disparou os tiros contra ele em 13 de maio de 1981. O encontro do papa com o turco Mehmet Ali Agca, preso imediatamente após o atentado, foi o destaque da capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983.

Capa do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

Sobre uma grande foto dos dois dentro de uma cela conversando bem próximos, o título da manchete informava: O papa leva o perdão ao homem que tentou matá-lo”. A legenda da impactante imagem dava mais detalhes do encontro, que teve clima de um confessionário, com os dois homens conversando em sussurros: “Vinte e um minutos numa cela da prisão de Rebibbia, em Roma: o papa encontra-se com o seu quase assassino, Ali Agca. Os dois se apertam as mãos, emocionam-se. Agca se arrepende.

João Paulo II já havia perdoado Mehmet Ali Agca quando estava no hospital, logo após o atentado. Mas o perdão concedido pessoalmente na cela ganhou outra dimensão, com João Paulo chamando Agca de “Irmão”. “Emotivo, com lágrimas e arrependimento”, descreveu a reportagem de página inteira “O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida”.

Na prisão, além do seu agressor, João Paulo também apertou a mão de ladrões, assassinos, prostitutas e terroristas. “Um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo teve uma palavra.”

Leia a íntegra da reportagem original:

Jornal da Tarde - 28 de dezembro de 1983

Página do Jornal da Tarde de 28 de dezembro de 1983 com notícia do encontro do papa João Paulo II com o turco Mehmet Ali Agca Foto: Acervo Estadão

O papa aperta a mão que tentou tirar a sua vida

O encontro de João Paulo II com o terrorista Ali Agca, na prisão de Rebibbia, em Roma: emotivo, com lágrimas e arrependimento.

— Irmão...

Mehmet Ali Agca baixou a cabeça. Estava parado um pouco atrás da porta de sua cela, quatro metros por cinco, no pavilhão sete da prisão de Rebibbia, na periferia de Roma. Deixou que o homem de voz mansa, que o chamara de “irmão”, entrasse na cela. Beijou-lhe a mão, uma delas ainda com a cicatriz de um ferimento a bala sofrido há 31 meses. Tomou a mão e colocou-a em sua cabeça, à maneira oriental, sinal de profundo respeito. O papa João Paulo II repetiu:

— Irmão...

Ali Agca, turco de 25 anos, estava mudo. Não parecia o mesmo homem que, no dia 13 de maio de 1981, acionou cinco vezes o gatilho de uma pistola Browning no meio da praça São Pedro, no Vaticano. O papa João Paulo II tinha acabado de beijar uma criança, quando o primeiro tiro foi disparado. Três tiros acertaram o papa: um no abdóme (mais tarde, foram extraídos 55 centímetros de seu intestino); outro no braço direito, em dois pontos; um terceiro no dedo mínimo da mão esquerda, mão que ontem, às 12h10 (8h10 de Brasília), Agca quis beijar.

Os dois — agressor e vítima — estavam comovidos.

— É aqui o lugar onde ficas? — perguntou o papa em italiano, para só então procurar saber se Agca sabia falar essa língua. Sabia.

— Sim — respondeu Ali Agca.

— Como te sentes, te sentes bem?

O turco respondeu que “sim” e os dois se sentaram em cadeiras de plástico colocadas uma próxima a outra, perto da estufa da cela. Não pareciam mais estar em uma cela de prisão, mas num confessionário: a partir daí, o volume das vozes baixou ao sussurro. Era uma confissão.

Durante 21 minutos, os dois conversaram em voz baixa, o turco quase sempre de cabeça baixa. Várias vezes; o papa teve de aproximar seu ouvido dos lábios do seu agressor, para escutá-lo melhor. Houve um momento em que Agca enxugou uma lágrima — e João Paulo II tomou-lhe as mãos entre as suas.

Ali Agca estava arrependido. Barba um pouco grande, pulôver azul, calças jeans, tênis, o prisioneiro — condenado à prisão perpétua — parecia sinceramente arrependido de seu ato. E João Paulo II não tinha a menor dúvida disso no momento em que, encerrada a entrevista, permitiu que dois cinegrafistas da televisão italiana e um fotógrafo do L’Osservatore Romano registrassem a cena histórica.

Mais uma vez, Ali Agca tomou as mãos do papa. Ajoelhou-se e as beijou. Lentamente, João Paulo II saiu em direção ao corredor em que esperavam a comitiva papal, os guardas da prisão (mais de cem foram mobilizados) e a imprensa.

— O que conversamos é um segredo entre eu e ele — disse o papa.

— Devo respeitar os segredos de uma pessoa.

Um jornalista de uma agência de notícias italiana quis confirmar se Ali Agca tinha declarado seu arrependimento por ter cometido o atentado. O papa respondeu afirmativamente. Perguntaram-lhe, então, se havia abençoado o autor da tentativa de assassinato de si próprio.

João Paulo II:

— Eu falei com ele como se fala com um irmão, ao qual já perdoei e que goza da minha inteira confiança.

De fato, foi preciso muita confiança para ficar sozinho com Agca, terrorista considerado violento, na mesma cela, sem mais ninguém por perto. Mas tanto o papa quanto Ali Agca preferiram assim (inicialmente, o encontro deveria ser presenciado pelo menos por dois policiais).

Por isso mesmo, nos últimos dias, desde que foi anunciada a visita papal à prisão de Retibbia, os cuidados com a segurança aumentaram. Todas as visitas eram minuciosamente revistadas, à procura de armas escondidas. Todos os 1.500 presos foram também revistados diariamente. Ontem, o dia marcado, os cuidados da direção do presídio chegaram perto da paranóia.

Conta o nosso correspondente em Roma, Rocco Morabito, que o papa chegou à prisão de Rebibbia, ontem, pouco antes das dez da manhã (6 horas de Brasília) num automóvel que, após chegar ao pátio, abaixou a capota. O motorista era o mesmo que acompanhava João Paulo II no dia do atentado.

Ontem, o dia foi ensolarado, mas com muito vento que erguia o casaco do papa. Ele estava acompanhado pelo cardeal-vigário Ugo Peletti. E foi recebido pelo ministro de Justiça, Mino Martinazzoli, pelo diretor dos institutos penais de toda a Itália, Nicoló Amato (que no processo relativo ao atentado representou a promotoria pública, pedindo a condenação de Agca a prisão perpétua) e os capelães da prisão.

Os primeiros aplausos para o papa partiram de um grande grupo de familiares de detentos que aguardavam permissão para visitá-los. Na capela da prisão, de paredes nuas e decoradas apenas com algumas colunas e com vitrais coloridos, estavam 400 detentos sorteados entre as diversas alas, onde se encontram um total de 1.500 reclusos, e presos, que receberam o papa com grandes aplausos.

Na prisão de Rebibbia, o papa apertou as mãos de ladrões, assassinos, prostitutas e, principalmente, terroristas. Pelo menos quatro terroristas falaram com o papa: Valerio Morucci, das Brigadas Vermelhas, um dos responsáveis pelo seqüestro de Aldo Moro; Giuseppe Funaro, militante esquerdista; Luca Onesti, terrorista de direita (que fez o discurso de boas-vindas, ontem); e, é claro, Ali Agca.

O papa celebrou a liturgia da palavra, em sua homilia. No seu discurso aos prisioneiros, lembrou seus direitos a um tratamento justo, aberto à possibilidade de reingresso na sociedade. Após ter dito que tinha ido lá também para celebrar o Ano Santo da Redenção, ele se referiu ao tema da “reconciliação entre os homens, que está no centro do jubileu”.

Ele disse também que esses encontros na prisão “o comovem profundamente” e que o seu desejo seria poder conversar com cada um dos detentos durante longo tempo. “Gostaria, principamente”, acrescentou, “de poder ouvir o que cada um gostaria de me contar a respeito de suas próprias experiências pessoais e da situação de suas próprias famílias, a respeito das desilusões acumuladas no passado e as expectativas que, apesar de tudo, continuam tendo em relação ao futuro.

Tenho certeza de que uma conversa desse tipo permitiria que eu avaliasse a profundidade dos sentimentos e as riquezas de humanidade que cada qual guarda dentro de si”. Como homem e como cristão, ele expressou estima pelos presentes.

“A Igreja”, continuou o papa, “aprecia e encoraja os esforços de todos os que se empenham para o desenvolvimento do sistema carcerário”. Ele também desejou um ano melhor do que o que está chegando ao fim em todas as prisões do mundo. “Será um ano melhor, se dentro de nossos corações conseguirmos reservar um espaço maior para Deus e para o amor.”

Os detentos aplaudiram longamente as palavras do papa. Depois, dentre eles saiu um jovem, de barba e óculos, um prisioneiro político, que entregou ao papa uma placa de ouro oferecida pelos presos numa coleta espontânea, na qual estão escritas as seguintes palavras: “Na nossa humildade e solidão, como recordação de um dia feliz”.

Outros presentes dos encarcerados (tinham, todos eles, recebido no Natal em suas celas um panetone enviado pelo papa e que hoje ganharam um rosário): um navio e um banjo construídos com fósforos e palitos dentes. Um crucifixo foi ofertado por um muçulmano convertido.

Nesse momento ocorreu a cena mais comovente do dia: um por um, os 400 presos desfilaram diante do papa, apertaram e beijaram sua mão e alguns foram abraçados por ele. Para todos, João Paulo II teve uma palavra.

Bastante movimentado foi o encontro o preso Marco Appignano, apelidado de “O Cavalo Louco”, que lhe entregou uma carta, na qual pede uma anistia para os presos políticos. Ontem, a associação dos processados políticos tinham enviado ao papa um telegrama que dizia: “O senho atlvez veja alguns dos nossos cinco mil filhos. Peça aos cristãos que sejam menos severos com estes nossos filhos”.

Só depois da cerimônia na capela é que acorreu o encontro com Ali Agca, em sua cela. Depois, o papa visitou a ala feminina da prisão para dar também às reclusas uma palavra de conforto. No total, o papa permaneceu na prisão de Rebibbia durante quase três horas e meia.

Durante a visita ao setor feminino, o papa, chamando-as de “caras irmãs”, disse, entre outras coisas: “Tive a oportunidade de me encontrar com a pessoa que todas vocês conhecem pelo nome, Ali Agca, que em 1981, no dia 13 de maio, atentou contra a minha vida. Mas a providência conduziu as coisas de uma tal forma, eu diria que excepcional e maravilhosa, que hoje, após mais de dois anos, pude encontrá-lo e repetir-lhe o meu perdão”.

Depois, o papa ainda acrescentou: “Acredito também que este encontro, no final do Ano Santo da Redenção, é provi dencial e não foi nem planejado nem preparado, mas simplesmente ocorreu. O Senhor me deu a graça de poder encontrar homens, irmãos, porque todos os acontecimentos da nossa vida devem confirmar que Deus é o nosso pai e que todos somos filhos de Jesus Cristo e conseqüentemente somos todos irmãos”.

A televisão italiana mostrou, ontem à noite, a cena em que Ali Agca, sentado em sua cadeira, fala com o papa. Viu-se, também, o jovem turco aproximando-se do rosto do papa, como em uma confissão. A Itália toda (e o mundo inteiro) parece ter gostado da cena.

Em Ancara, Turquia, porém, houve gente que não gostou nada do encontro do papa com seu agressor. Entre eles, os diretores do jornal Milliyet, cujo editor-chefe, Abdi Ipexci, foi assassinado por Ali Agca em 1979.

“É natural que o papa perdoe um pecador” — disse o jornal, ontem, em editorial. Mas quando esse pecador é Mehmet Ali Agca as coisas mudam. Porque Agca não é um simples pecador, mas um assassino feroz; e sua culpa não consiste apenas em haver atentado contra a vida do papa”.

O diário turco afirma também que Agca colaborou com organizações terroristas internacionais depois de sua fuga de uma prisão em Istambul, na qual estava detido. E finalmente chegou à Itália, onde tentou assassinar o papa (mais tarde, Agca denunciaria um complô de agentes búlgaros, com raízes no KGB soviético, do qual foi sim plesmente o executor).

“Ir à cela de Agca” — disse mais o diário Milliyet — “e perdoá-lo... mais do que isso, abençoá-lo... é uma falta de respeito à memória de Abdi Ipexci e se deve considerar como um prêmio a um monstro homicida”.

Talvez. Mas o certo é que o papa foi. E parece ter gostado de poder mostrar a bondade católica — ao vivo.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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