Com 11 perguntas abrindo o seu texto “Secos & Molhados, Um balanço de seis meses de sucesso,” o repórter Claudio Bojunga contou aos leitores do Jornal da Tarde do dia 6 de abril de 1974 como viu os integrantes do conjunto num estúdio de gravação preparando o segundo disco enquanto desfrutavam do sucesso colossal do álbum de estreia.
As 11 interrogações iniciais eram um ponto de partida para tentar explicar como todo um País estava hipnotizado e encantado desde o segundo semestre de 1973 pelos Secos & Molhados. “Eles próprios se perguntam, tentam explicar, duvidam das explicações”, escreveu o repórter após os questionamentos iniciais e antes de mostrar - no momento de sua mais alta ebulição - como via um dos maiores acontecimentos artísticos e comerciais da história da música brasileira. Leia a íntegra:
Jornal da Tarde - 6 de abril de 1974
Secos & Molhados
Um balanço de seis meses de sucesso
Claudio Bojunga
Como? Porque? De onde? Para onde? Quem não tenta descobrir? Quem não arrisca uma explicação? Quem não duvida da explicação oferecida? De que forma esses três rapazes puderam, em seis meses, vender 500 mil discos; lotar teatros e clubes em São Paulo e no Rio, ginásios e conchas acústicas em Porto Alegre e Salvador? Como foi passível encher o Maracanãzinho, deixando do lado de fora uma multidão capaz de lotar dois Maracanãzinhos diante da placa lotação esgotada?
De que maneira eles conseguem simultaneamente, rodopiar na vitrola do industrial que toma sol no Guarujá e obter a benção dos dramaturgos de vanguarda? Arrancar gritos da gordinha que viajou durante 17 noites seguidas de Nilópolis para o Teatro Teresa Rachel e, ao mesmo tempo, ser aplaudido par médicos, bancários, avós, filhos, netos? Eles próprios se perguntam, tentam explicar, duvidam das explicações.
Embora Ney Matogrosso (32 anos), João Ricardo (24) e Gerson Conrad (21) admitam que, antes de mais nada, o grupo Secos & Molhados seja uma realidade baseada na divisão do trabalho, dificilmente os três conseguem oferecer uma mesma explicação sobre as causas dos sucessos dos três.
Atá através do espesso vidro à prova de som do estúdio é fácil adivinhar os diferentes papéis e responsabilidades. João Ricardo é quem comanda, teoriza, interrompe, fala com o técnico de som. João Ricardo é tambem o mais arrogante, irritável o quê mais crê na importância nacional e na missão histórica do grupo - o que mais explode, o que mais boceja. O que mais gostou do único disco que os Secos e Molhados gravaram até hoje, o mais intelectual, o mais frágil. Foi ele quem selecionou as poesias de Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira e Vinicius que o grupo musicou. Como não gostaria do primeiro disco? No fundo não foi obra sua? Volta e meia, João Ricardo se distrai e diz eu em vez de nós, mas será verdade?
Gerson Conrad é o mais jovem e impassível. Distante, ele pede com os olhos e quase sempre aceita instrução a João Ricardo, João Ricardo já se habituou a responder as pergtmtas que lhe são feitas, e ele acha isso natural. João Ricardo diz que os músicos de rock brasileiros, de uma maneira geral, não tem a metade das informações que ele, Ricardo controla.
Gerson parece concordar mas, de repente, pede a palavra e diz que não se deve exagerar o lado intelectual de João Ricardo, que seu amigo também é muito emotivo e que isso é importante. Ricardo tem que concordar. Gerson é o elemento de ligação e equilíbrio entre o que há de literário, ideológico, formulado, e o que há de passional, barroco, intuitivo no grupo. É intérprete de formação clássica, universitária, situado na confluência do que há de mais (Ricardo) e menos (Ney) no grupo.
Bom, Ney é uma presença e uma voz rara (contratenor). E o lado ritualístico, barroco, satânico, feérico. Ney são os gestos, a máscara, as evoluções. A interpretação vocal e a sensualidade elétrica do show são suas responsabilidades. Ney é extremo, exagerado, seguro - o mais velho. O que mais teria chance de o dos padrões atuais do sucesso - sobreviver dentro dos padrões atuais do sucesso. deve, a todo custo, ser disfarçada: ela exacerbaria o individualismo de João Ricardo, o que seria nada gentil e muito pouco prático. [Nota do blog em 2024: transcrição fiel à publicação original onde, aparentemente, neste parágrafo ocorreu algum problema na montagem do texto para a impressão no jornal].
Eles estão lá, atrás do vidro espesso. Pelos alto-falantes Kenwood que a gravadora Continental colocou, dia e noite, à disposição dos três (a Continental adora os Secos E Molhados) vem os primeiros sons do novo disco. Semelhantes aos do primeiro. Melodias simples, vinhetas poéticas, cujos autores desta vez se chamarão Oswald de Andrade, Fernando Pessoa, Lorca. A capa é um segredo e promete excessos.
Quando os três passam para o lado de cá do vidro, as respostas confirmam as primeiras impressões provocadas por seus gestos. As palavras são de João Ricardo. Ele explica que o novo disco não apresentará uma música na linha da tão bem sucedida Vira e que o processo de criação dos Secos E Molhados é aquilo mesmo - espontâneo, coletivo. E acrescenta que não vê contradição entre essa espontaneidade e sua afirmação de que “o enorme sucesso do grupo era previsível.”. Suas mãos estão frias.
Gerson quase não fala. E Ney reclama do ar condicionado que traz uma ameaça para sua voz. Ele adora o verão, os próprios Secos e Molhados foram um fenômeno que explodiu no verão. Enquanto Ricardo diz que acha São Paulo linda, Ney pergunta ao empresário Moracy do VaI: quando é que partimos?
Já se escreveu muito sobre Secos e Molhados. Mas nem sempre se alinhou de maneira clara algumas particularidades do grupo. Para começar, recapitulemos rapidamente seu histórico. Em 1971, João Ricardo, português, filho do poeta e crítico João Apolinário, há muitos anos exilado no Brasil, já fazia música. Ricardo era jornalista de dia e, de noite, tocava. Alguém lembra do jovem de traços finos que tinha, como Bob Dylan, uma harmônica de boca encaixada no violão e que, todas as noites, se apresentava no bar Kurtisso Negro?
Gerson é o amigo de adolescência, vizinho no bairro da Bela Vista, aos poucos conquistado para o rock. É o estudante de arquitetura de matrícula trancada que tem formação clássica e, até hoje, empunha o violão de maneira tão firme e precisa que o comentário de Ricardo é um meio amargo “esse cara ainda vai ser maestro”.
Ney também saiu de Bela Vista - só que no seu caso trata-se de uma cidade de Mato Grosso. Filho de militar (ele trabalha na segurança de Ilha Solteira e nunca assistiu a um show do filho), terceiro filho de uma família de cinco irmãos, seu verda-eiro sobrenome é Souza Pereira. Mil atividades: funcionário de um hospital em Brasília, cantor de coral, ator em peças infantis (eu-queria-ser-ator), vendedor de artesanato na praça da República. Ney já habitou muitas cidades e bairros e, no tempo em que morou na zona norte do Rio, preferia cantar Jezebel “uma música que dava vazão à minha voz”. Música pop? Só um pouquinho do rebolado de Elvis Presley entra na sua formação.
No primeiro encontro, na casa de Luli (cantora e compositora) Ricardo detestou o repertório de Ney, mas confessa que descobriu ma voz que necessitava para formar seu conjunto. Ricardo diz que, por essa época, a grande influência musical que sofrera “como todo mundo” viera dos Beatles. Sempre considerou que uma voz era fundamental ao grupo: “acho Paul McCartney o mais inventivo, rico e versátil dos cantores”. Já em relação a John Lennon, as palavras hoje são duras: “foi uma atitude de superstar idiota trocar o grupo por aquela japonesa e declarar que o sonho acabou”.
Mas se, pelo menos do ponto de vista da estrutura musical, Ney é a voz (como Paul McCartney) e Gerson o instrumento (como Harrison) Ricardo não é o mentor intelectual como Lennon? Uma coisa é certa: Moracy do Val , o empresário, já imagina ter a etiqueta especial (como a Aple) e fazer um filme sobre os Secos e Molhados, como Brian Epstein. As semelhanças param aqui.
Unta carreira rápida: um ano de preparação, a aparição na Casa de Badalação e Tédio no início do ano passado (Ney: “usamos purpurina antes, dos Dzi”; Moracy: “vi logo que o grupo era incrível”) e uma sequência de apresentações (Mixturação, Teatro Aquarius, Juventus, Pinheiros, Teatro Itália, etc...) que vieram preparar e apoiar o lançamento do disco em agosto de 1973.
Moracy: “a tática empregada foi a inversa da empregada por Roberto Carlos, que aliás teve o enorme mérito de criar o mercado jovem. Roberto partiu da juventude classe B e C e, aos poucos, foi atingindo a classe A. Nós saíamos de uma casa de prestígio intelectual (Badalação e Tédio), uma espécie de nova incarnação do João Sebastião Bar, para irmos ao encontro dos subúrbios. Nunca decepcionei, nem decepcionarei, o pequeno empresário”.
O momento musical é propicio. Em 1973, Roberto Carlos apresenta sintomas visíveis de decadência musical: um compositor convencional que tem mais de trinta anos e que, portanto, não merece mais a confiança incondicional do mercado jovem. Por outro lado, o grupo baiano (Caetano, Gil, Gal) se radicaliza musicalmente: suas formas musicais avançadas (pesquisa e inovação constantes, ruptura com as formas tradicionais da música popular, abandono da tradição pop) afastam os rapazes e as moças que preferem dançar nos corredores do teatro a ouvir algo novo e exigente.
Agora, o show: lançada no nível do teatro pelos Dzi Croquetes (que adaptaram para o musical a androginia maquiada dos The Coquettes norte-americanos) o espetáculo ritualístico veio preencher um vazio do nosso teatro, como os Secos e Molhados vão preencher um vazio do espetáculo musical.
Existem vários fatores no ar: 1 - A influência da androginia cênica que leve sua primeira manifestação no Brasil com a chegada de Caetano de Londres, extremamente influenciado por Mick Jaegger; 2 -O corpo musculoso e pintado de Lenny Dale, lançando uma coreografia profissional para a androginia; 3 - A androginia nos Estados Unidos: Alice Cooper, David Bowe, Don Reed, Jobriath; 4 - A maquiagem; a influência de Pippin (Musical da Broadway) em Fantástico é evidente.
Ney Matogrosso veio consubstanciar uma série de tendências: o lado ritualístico, indígena, pagão; o feérico dos contos infantis, a sensualidade liberadora dirigida contra o machismo nacional. A coisa foi bem feita e vingou. No caso de Maria Alcina (versão musical das Dzi Croquetas) não deu certo.
Outro lado sedutor foi simplicidade melódica e o repetitivo das interpretações. Muitos se lembraram da singeleza dos jingles, como aquele que Luis Sá (lembram-se de seus rock rurais?) compôs para a Pepsi-Cola e que ninguém mais esqueceu: quem-tem-amor etc.. Ricardo não gosta muito dessa linha de raciocínio. Mas, confunde-se ligeiramente quando pretende explicar que é, ao mesmo tempo, despojado (uma virtude) e musicalmente pobre (não tenho formação musical”). Ou ainda, em recusar subliminarmente que Gerson e Ney são elementos que enriquecem suas músicas, com técnica instrumental e vocal.
Ricardo diz que inventou o nome Secos e Molhados que viu, certo dia, num armazém em Ubatuba. Recusa qualquer significado a mais. Entretanto será coincidência a ironia com que tratou o encontro de sua formação portuguesa no que ela tem de melhor (a poesia, a consciência) com os estereótipos brasileiro que pesam sobre ele? Escrito no disco como se fosse um anúncio luminoso, as palavras Secos e Molhados pretendem ao chique irônico do cinema de vanguarda que se chama Poeira, ou de revista que se intitula Pasquim. Isso equivale a transformar uma mercearia popular em boutique (há uma em São Paulo que se cha a Às Ultimas Nuvens Indiscretas) no qual os componentes do grupo aparecem imolados em forma de mercadoria.
Todos os álibis estão presentes: para os intelectuais, há a garantia dos poemas que se insurgem contra o peso do cotidiano (Mulher Barriguda); o protesto (Primavera nos Dentes); o pacifismo (Rota de Hiroshima), o lirismo poético (As Andorinhas) - elementos que podem ser encontrados no infinitamente mais perigoso e proibido Chico Buarque.
Para as crianças tem fadas e sacis (Ney: “nos olhos das crianças, só vejo encantamento”) e para os reprimidos tem sensualidade (“nos olhares adultos vejo espanto”). Para os que vivem confortavelmente há uma música confortável e, para a gordinha de Nilópolis e a mocidade pop, o ritual mágico que é consumido como essas revistas que vendem irracionalismo a cinco cruzeiros.
Ney: “não sou racional”; Ricardo: “a música só é racional”. Ney: “sou uma idéia viva”. Ricardo: “tudo é importante nos Secos e Molhados; Ney: “a principal invenção foi visual”. Por mais que Ricardo se esforce em assumir o papel de consciência do grupo e em ser amado por sua mensagem, ele é obrigado a confessar: “às vezes uma empregada doméstica me telefona, nos elogia e diz que não compreende nossas letras”.
Por mais que ele se esforce, o polo contaminador é Ney, não ele (sua máscara, influênciou o carnaval brasileiro). Sua difusão lembra a dos nossos Doces e Salgados, que já viraram título de coluna e nome de grupo musical. Não que a palavra (Ricardo) seja menos importante; apenas, agora, ela é mais perigosa e impotente. Aqui, pelo menos, David Bowie venceu Bob Dylan.
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Jornal da Tarde
Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.
Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.
Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.