Em seu último indulto de Natal, o presidente Jair Bolsonaro abriu prerrogativa que pode perdoar policiais envolvidos no massacre do Carandiru, que completou 30 anos em outubro deste ano. Embora não estejam na mesma página quanto à constitucionalidade do ato e considerem indultos uma prática essencial, juristas criticam a especificidade do perdão e também a possibilidade de abarcar um evento de importante dimensão humanitária.
“Quando o indulto é utilizado para acabar com a responsabilização de agentes do Estado por algo que está claro e decidido em último instância que foi um massacre, que foi intencional, foram homicídios, ele perde completamente a função para a qual foi criado. A gente tem historicamente nesse caso do Carandiru um problema de falta de responsabilização estatal grave. É muito problemático. É um escárnio o que faz o presidente Bolsonaro”, avalia Luisa Ferreira, professora da FGV-SP e Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena.
Para Bianca Tavolari, professora de Direito do Insper que estuda a memória urbana sobre o massacre, o indulto significa a “legitimação da barbárie” e tem graves impactos sociais. “Passa uma mensagem de que nós, enquanto sociedade, a gente não responsabiliza agentes estatais por tortura e execução”, argumenta.
“Na perspectiva de um sistema carcerário humano, que realmente consiga devolver pessoas melhores do que aquelas que entraram porta adentro, a gente tem um episódio muito lamentável que teve e parece que vai ter seu destino selado sem que os responsáveis pelos excessos cometidos sejam de fato punidos ou absolvidos”, acrescenta Rômulo Luis Veloso de Carvalho, professor de Direito Penal e defensor público do Estado de Minas Gerais.
Thiago Bottino, professor da FGV Rio, critica a escolha por dois motivos. O primeiro porque avalia que esse tipo de decreto não deve ser “particularizado”, pois assim o indulto perde seus efeitos esperados, desafogar o sistema carcerário (o que tem um viés humanitário) e também dar um bônus ao bom comportamento. “E, por um segundo ponto de vista, acho que você não deve indultar casos que não chegaram ainda ao início concreto da pena.”
O caso
O massacre do Carandiru completou 30 anos em 2 de outubro, sem que os 74 policiais militares denunciados pelo assassinato de 111 presos após uma rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da cidade, tenham começado a cumprir suas sentenças. Conforme mostrou o Estadão, eles foram condenados a penas que chegam a 624 anos de prisão, mas o desfecho do processo foi atrasado por sucessivos recursos na Justiça.
Luisa lembra que só recentemente, em novembro, os agentes foram efetivamente considerados condenados. “O Supremo Tribunal Federal manteve a decisão que determinou que os réus fossem de fato condenados. Isso porque (os policiais) tinham sido condenados pelo júri; (depois) as condenações foram anuladas pelo Tribunal de Justiça; (mas) o Superior Tribunal de Justiça reformou a decisão do Tribunal de Justiça, disse que deveria deve ser mantida a decisão do júri e o STF, o ministro Barroso, em novembro, disse que não cabe mais recurso, a decisão transitou em julgado.”
O que se discutia, agora, no Tribunal de Justiça era a dosimetria das penas. Porém, ao final de novembro, o desembargador Edson Aparecido Brandão, da 4.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), pediu vista (mais tempo para análise) e suspendeu a discussão (julgamento).
Luisa reforça que, por mais que haja a extinção da pena com o indulto, isso não muda o fato de que o sistema de Justiça “entendeu definitivamente que houve o massacre e que esses policiais militares cometeram os crimes de homicídio qualificado”.
Constitucional ou não?
No decreto, Bolsonaro não cita o Carandiru ou frisa que a medida seja especificamente para os agentes públicos envolvidos no caso. O artigo 6º fala em “indulto natalino também aos agentes públicos que (...) tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática.” Homicídios dolosos, como no caso do Carandiru, que ocorreu em 1992, só passaram a integrar o rol de crimes hediondos em 1994.
Mesmo sem a citação específica, os especialistas ouvidos pelo Estadão são unânimes em dizer que o indulto pode ser usado para perdoar os envolvidos no massacre de 92. “O decreto veio sob medida”, comenta Bianca.
No entanto, eles não estão na mesma página quando o assunto é a constitucionalidade do último indulto de Bolsonaro.
Apesar de apontar ser atípico indultos serem tão específicos, Bonnoni acredita que não cabe discussão judicial e que o decreto é constitucional. “O presidente tem a prerrogativa de estabelecer essa regra, não é uma lei votada pelo Congresso. A única forma que o judiciário poderia modificar é se identificasse um vício formal, mas o judiciário não pode modificar a escolha do presidente.”
Luisa e Carvalho, por outro lado, destacam que há possibilidade, por diferentes motivos, de o decreto ser questionado judicialmente. Eles estão reticentes em cravar se o decreto é ou não constitucional.
Luisa acredita que a especificidade pode ser um ponto de questionamento e deve gerar debate. “Tem uma discussão de que o indulto tem que ser coletivo, ou seja, ele não pode ser individualizado. Ele não é como a anistia ou a graça (concedida) ao Daniel Silveira.”
Por outro lado, Carvalho avalia que a convencionalidade do decreto também pode ser questionada. “Quer dizer, esse decreto de indulto ele está em harmonia às convenções internacionais que o Brasil se obrigou a cumprir?”, exemplifica o defensor público.
Embora questionem e critiquem a escolha de Bolsonaro, os juristas reconhecem a importância dos indultos. Eles explicam que há uma dimensão humanitária e logística da prática, no sentido de desafogar o sistema carcerário e combater superlotação, ao mesmo tempo em que são um bônus ao bom comportamento dentro das instituições.