Um tipo de maconha sintética descoberta nos presídios de São Paulo em 2018 tem aumentado a sua presença nas ruas e penitenciárias do Estado ao longo dos últimos quatro anos. Conhecida popularmente como K4, K9 ou spice, ela tem efeito até cem vezes mais potente que a versão “tradicional” da cannabis e pode ser consumida como cigarro ou “selo” sublingual. O número de apreensões, desde que a droga foi inicialmente identificada até o ano passado, teve um aumento superior a 2.010%.
Dados obtidos pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, em 2018, foram 65 apreensões da K4 em todo o sistema prisional do Estado de São Paulo. Em 2021, o número chegou a 1.372. Entre janeiro e abril deste ano, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) registrou outras 229.
Segundo a pasta, há uma queda no número de apreensões da K4 em 2022, ainda que o ano não tenha se encerrado, devido a uma “melhora consistente nos métodos de detecção da entrada da droga”. Os números, no entanto, escondem uma realidade mais ampla e preocupante, já que uma folha de tamanho A4 pode conter até 1,2 mil micropontos ou selos (equivalente a doses) ativos da droga, que já é comercializada fora do sistema prisional.
A K4 é tecnicamente classificada como um canabinoide sintético e pertence ao grupo das Novas Substâncias Psicoativas, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Essas moléculas são criadas em laboratório com fórmulas específicas que mimetizam os efeitos de drogas já conhecidas – como LSD, maconha, cocaína, heroína etc. – e que, ao mesmo tempo, conseguem burlar medidas internacionais de controle e apreensão.
Contrabando
No caso específico da K4, a matéria-prima para a fabricação da droga chega ao Brasil pelo contrabando ilegal em portos, aeroportos e fronteiras terrestres. Ela vem da Ásia, de partes da Europa e do norte da África em pequenas pedras que se assemelham a sais de banho e que, uma vez no País, são “cozinhadas” em laboratórios normais “de fundo de quintal” até serem transformadas em um líquido transparente.
Esse líquido contém princípios ativos sintéticos, que imitam o efeito de drogas clássicas como maconha ou LSD, e é borrifado em folhas de gramatura grossa, parecidas com papel de carta. A partir daí, os pedaços de papel (micropontos) são consumidos rasgados em meio ao tabaco ou como “selos” dissolvidos embaixo da língua, da mesma forma que o LSD.
“A K4 apareceu inicialmente como um grande fantasma. Muito se falava em apreensão e pouco se conhecia sobre o produto, a produção e a distribuição”, afirma o promotor Tiago Dutra Fonseca, membro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo. “Mas, pelo que investigamos, a forma como ela é feita e distribuída no Brasil é inédita no mundo.”
Fonseca explica que a disseminação da droga ainda se dá “de forma predominante dentro dos sistemas prisionais”, que foram usados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) como “balões de ensaio” para os efeitos da substância. Por passar “despercebida” como uma simples folha de papel, a droga já foi encontrada dentro de tubos de pasta de dente, sola de chinelos, de chuteiras, fatias de pão, pedaços de bolo, costuras de roupa, fotos, cartas etc.
Hoje, entretanto, a K4 já ultrapassou os limites das celas e pode ser encontrada “na rua”, onde um microponto (selo) custa em torno de R$ 30. “Descobrimos que o PCC tinha um caixa exclusivo, com uma equipe de contabilidade apenas para administrar a venda da K4. Em um mês, eles chegavam a lucrar mais de R$ 1 milhão só com essa droga”, aponta o promotor. “Nos preocupa muito os efeitos que o lucro e a distribuição dela podem gerar para o tráfico e para a saúde pública.”
‘Viagem’ cara
Nos Estados Unidos, o amplo acesso aos canabinoides sintéticos levou algumas partes do país a anunciarem uma “epidemia” da droga e adotarem medidas para o que logo se tornou uma crise de saúde pública. Em Nova York, por exemplo, a K2 (ou “spice”) foi tão disseminada como produtos comestíveis, incensos e misturas de ervas que o governo do Estado enrijeceu as proibições contra compostos químicos na tentativa de barrar sua comercialização.
Segundo o governo de Nova York, “ansiedade extrema, confusão, paranoia, alucinações, arritmia, vômito, convulsões, desmaios, falha renal e redução de sangue no coração” são alguns dos efeitos colaterais da K2. Muitos deles foram observados em pessoas privadas de liberdade no Estado de São Paulo.
“Tivemos casos graves de pessoas que perderam o controle motor pela forma como a droga agiu no sistema nervoso”, aponta Fonseca. “Alguns estavam completamente em surto.”
A SAP informou ao Estadão que “grandes quantidades de papel, como número exagerado de fotos impressas e pedaços de papel colocados em locais estranhos” despertam a atenção dos agentes prisionais, que apreendem esse material e encaminham para a perícia. “Essa percepção dos servidores, aliada às informações de inteligência, resultou no aumento do número de apreensões de K4 durante a pandemia, o que desestimulou a tentativa de entrada desses ilícitos a partir de 2022″, defende a pasta.
Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Drogas, Sociedade e Cultura da Unifesp, a professora Adriana Marcassa Tucci explica que os canabinoides sintéticos, assim como a maioria das novas substâncias psicoativas, ainda têm efeitos de longo prazo desconhecidos da ciência e dos próprios usuários. Outro fator que encarece a conta dessa “viagem” é a falta de controle da droga comprada na rua, muitas vezes misturada com outros elementos de menor pureza e com maior chance de prejudicar a saúde.
“Os canabinoides sintéticos passam por muitas mudanças nos laboratórios, onde as estruturas bioquímicas e moleculares são bem diferentes a depender de onde é feita a produção. A maioria deles tem os mesmos efeitos psicoativos da maconha, mas com uma potência até 100 x maior que a do THC (Tetrahidrocanabinol)”, alerta Adriana.
Os principais danos mapeados até o momento são ao sistema nervoso central: alguns usuários começam a apresentar “a curto prazo” um aumento de agressividade e violência no comportamento, confusão mental, alucinações, convulsões, psicose e perda de consciência.
“Para quem já tem algum histórico de transtorno mental, isso pode agravar ainda mais como gatilho para um novo surto. Já nos casos fatais, a grande maioria está associada ao sistema cardiorrespiratório, gerando um infarto do miocárdio, um parada cardíaca, e taquicardia; ou depressão no sistema respiratório, com falta de ar”, aponta a pesquisadora. “Isso tudo pode levar à morte.”
Fenômeno mundial
Até 2020, o Estado de São Paulo não tinha nem sequer máquinas capazes de realizar a perícia em drogas sintéticas como a K4. De 2018 a março daquele ano, foram quase 500 apreensões que não resultaram em nenhuma prisão pela impossibilidade de caracterizar a substância descoberta.
Hoje, apesar de já ser possível testar e identificar a substância apreendida, o combate ao tráfico de sintéticos ainda enfrenta um grande desafio: o aumento das vendas na internet, onde elas são disfarçadas e comercializadas em sites populares.
“Já vimos pessoas que vendiam a droga como sal de banho ou colocavam qualquer coisa ali no nome para disfarçar no Mercado Livre. Mas como a substância também não estava listada como proibida pela Anvisa, o cara não era processado criminalmente”, aponta Alexandre Learth, perito criminal diretor do Núcleo de Exames de Entorpecentes da Polícia Técnico-Científica do Estado
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram descobertas 1.124 novas substâncias entre 2009 e janeiro de 2021, o equivalente a uma nova droga por semana em todo o mundo. Algumas delas foram notificadas exatamente pela Polícia Técnico-Científica de São Paulo durante as testagens das apreensões feitas no Estado.
“Há um aumento expressivo (das drogas sintéticas), que antes eram apenas uma exceção do que testávamos”, observa Learth. Adriana complementa que o rastreio dessas substâncias é ainda mais difícil porque “as características químicas mudam muito rapidamente” com a produção nos laboratórios de “fundos de quintal”.
As testagens da Polícia Técnico-Científica são feitas em parceria com centros de pesquisa universitários. Mas ainda há o problema do transporte nacional, já que a patrulha das fronteiras e rodovias, por exemplo, dificilmente localizaria a droga se não soubesse exatamente o que procurar.
“Imagina uma pessoa passando com um caderno na alfândega de um aeroporto ou numa blitz”, aponta Dutra. “É imperceptível a olho nu, isso que nos preocupa.” Learth diz que é exatamente essa característica “que estimula a proliferação desse tipo de droga”.