O Supremo Tribunal Federal (STF) começa nesta quinta-feira, 29, a julgar se proíbe em definitivo ou autoriza o uso da tese jurídica da legítima defesa da honra durante investigações criminais e processos. Essa tese não está prevista em lei, mas foi muito usada no Brasil para defender homens que mataram mulheres por ciúme ou raiva.
A alegação é de que a vítima teria dado causa ao comportamento do réu por ferir a honra dele com sua conduta. Isso incluiria, nesse entendimento, traição, não aceitação de um relacionamento com ele, relação com outro homem ou prática de qualquer conduta que, à luz da época, fosse considerada reprovável.
A tese parte de um preceito legal, a legítima defesa, que é prevista no Código Penal. “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” e também “o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.
Quem fere ou mata alguém nessas condições não comete crime. Na primeira metade do século passado, advogados adaptaram essa previsão para tentar inocentar homens que mataram mulheres com quem tinham ou queriam ter algum relacionamento, alegando que elas causaram a reação deles.
Dois dos casos mais famosos em que essa tese foi usada são os feminicídios praticados pelo empresário Raul do Amaral Street, conhecido como Doca Street (1934 – 2020), e pelo cantor Lindomar Castilho.
O primeiro matou com quatro tiros sua então namorada, Ângela Diniz, em 30 de dezembro de 1976, na praia dos Ossos, em Búzios (Rio), após uma briga do casal. O advogado Evandro Lins e Silva defendeu Doca e, usando da tese da legítima defesa da honra, conseguiu convencer um júri composto por cinco homens e duas mulheres de que seu cliente matou por amor.
Em 1979, Doca foi condenado a 18 meses de prisão pelo homicídio e seis meses por ter fugido da Justiça. Como já havia ficado sete meses preso, foi autorizado a cumprir o restante da pena em liberdade.
Mas houve intensa reação de movimentos feministas, que lançaram campanha com o slogan “Quem ama não mata”, e a Justiça acabou anulando o primeiro julgamento. No segundo, ocorrido em 1981, ele foi condenado a 15 anos de prisão.
Lindomar Castilho, hoje com 83 anos, matou sua ex-mulher, a cantora Eliane de Grammont, enquanto ela fazia um show em uma boate em São Paulo. A defesa do cantor também usou a tese da legítima defesa da honra, mas ele acabou condenado a 12 anos de prisão.
A ação
Em dezembro de 2020 o PDT impetrou uma ação no STF em que defende que essa tese é inconstitucional, porque é incompatível com os direitos fundamentais à vida e à não discriminação das mulheres e por ferir os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e da proporcionalidade.
Na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 779, o partido argumenta que Tribunais do Júri, compostos por pessoas não especializadas em Direito, têm absolvido feminicidas com fundamento nessa tese, e depois os Tribunais de Justiça ou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ora anulam as sentenças, considerando que houve manifesta contrariedade às provas produzidas durante o processo, ora confirmam as absolvições alegando que o Júri é soberano.
Na ação, o PDT alega que a soberania atribuída ao Tribunal do Júri não lhe permite tomar decisões condenatórias ou absolutórias que sejam claramente contrárias às provas. O partido pede que o STF impeça os Tribunais do Júri a usar a tese da legítima defesa da honra.
A ação foi distribuída ao ministro Dias Toffoli e o pedido de liminar (decisão provisória) foi julgado em março de 2021. Por unanimidade, o plenário do STF concedeu a liminar e proibiu provisoriamente o uso da tese.
Agora vai começar o julgamento que irá estabelecer de forma definitiva se a tese pode ou não ser usada. A tendência é de que se repita o resultado e seja mantida a proibição da tese. O procurador-geral da República, Augusto Aras, manifestou-se no processo pela manutenção da decisão provisória.
No julgamento de 2021, o voto condutor, do relator Dias Toffoli, considerou que a infidelidade no contexto das relações amorosas se insere no âmbito ético e moral e não há direito de agir contra ela com violência, especialmente de forma desproporcional, covarde e criminosa. O ministro classificou a tese como “recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel” usado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões para atribuir à vítima a causa de suas próprias mortes ou lesões.
Pela decisão provisória de 2021, que segue em vigor mas será substituída pela decisão a ser tomada a partir desta quinta-feira, a legítima defesa da honra é inconstitucional e não pode ser usada pela defesa, pela acusação, pela autoridade policial nem pelo próprio juízo nas fases pré-processual ou processual. Qualquer referência a ela pode levar à nulidade de provas ou mesmo do julgamento.