Lei Maria da Penha: julgamento do STJ pode dificultar proteção de mulher vítima de violência


Entidades de defesa de direitos das mulheres defendem que não haja prazo de validade para as medidas e que seja reconhecida a natureza autônoma delas

Por Beatriz Bulla
Atualização:

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute um caso que afetará a forma como o Judiciário tem aplicado um trecho da Lei Maria da Penha - o que estabelece medidas de proteção para a vítima de violência doméstica contra o agressor. Segundo o Ministério Público, a ONG Me Too Brasil e parte dos especialistas, o tribunal corre o risco de dificultar a proteção de mulheres vítimas no País. Não há consenso jurídico, no entanto, em torno da discussão.

Entidades veem risco de revitimização diante da necessidade de comprovar a persistência do risco Foto: Gabriela Biló/Estadão

O caso em debate é um recurso do Ministério Público de Minas Gerais contra decisão do Tribunal de Justiça. O relator do recurso no STJ, ministro Joel Paciornik, entendeu que o debate deveria ser levado à Terceira Seção para dar entendimento uniforme ao tema, que tem sido recorrente no Judiciário. Até hoje, a Quinta e a Sexta Turmas do STJ, que discutem matéria penal, têm posições divergentes.

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O TJ-MG aceitou parcialmente o recurso de um agressor de mulher vítima de violência doméstica e estabeleceu que as medidas protetivas impostas a ele teriam prazo de 90 dias. Depois disso, a situação deveria ser reavaliada.

O MP, por sua vez, defende que não haja prazo determinado no qual a vítima precise comprovar que o risco ainda existe. A visão da promotoria é a de que as medidas protetivas devem valer enquanto durar a situação de ameaça. Ela só deveria se encerrar, portanto, quando uma das partes for ao Judiciário e comprovar que não há mais necessidade da manutenção.

O promotor de Justiça Felipe Faria, assessor especial da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas, afirma que estipular prazo para que a medida protetiva expire é submeter a vítima a uma nova violência, desta vez por parte do Estado.

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“Fazer a vítima, já fragilizada, precisar periodicamente voltar aos órgãos para fazer novos pedidos é gerar um ciclo de violência institucional, uma revitimização. Além disso, seguindo decisões anteriores, medidas protetivas têm de durar enquanto a situação persistir, não têm prazo determinado. Pode durar uma semana, um mês, ou cinco anos”, diz o promotor.

Para ele, “isso tem o condão de desestimular e afastar as vítimas dessa estrutura estatal, que está aqui para resguardá-la”.

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A necessidade de comprovar que o risco de violência permanece também é considerada inviável. Isso porque muitas vezes, segundo o MP, o que impede a vítima de sofrer nova violência é justamente a medida protetiva em vigor. Uma vez expirada, a violência volta.

“Há receio de não conseguir demonstrar de tempos em tempos a persistência do risco. Pode haver transferência de ônus da prova quase intransponível”, concorda a sócia de direito penal do Mattos Filho e uma das responsáveis pelo caso em nome do Me Too, Flávia Leardini.

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O Me Too Brasil tenta ingressar no debate no STJ como amicus curiae no processo - a expressão latina significa “amigo da corte” e é usada para que interessados no resultado da causa, que não são as partes, possam ser ouvidos pelo Judiciário. Para isso, a ONG contratou o escritório Mattos Filho, por meio do setor de advocacia pro bono da banca. O pedido ainda não foi analisado pelo STJ.

“A Lei Maria da Penha nunca foi criminal. É uma legislação integral de proteção e defesa das mulheres em situação de violência doméstica intrafamiliar”, diz Marina Ganzarolli, advogada e presidente do Me Too Brasil.

“Quando a Lei Maria da Penha foi desenhada, falava em varas (de Justiça) híbridas, para um único juiz definir o divórcio, a guarda, mas também cuidar da questão criminal, da lesão corporal, da ameaça. Só temos vara híbrida em um Estado”, afirma.

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Para Marina, não só há dificuldade em implementar de modo integral a legislação de proteção à mulher, como o Judiciário pode enfraquecer um dos instrumentos mais eficientes: as medidas protetivas.

Natureza jurídica e revitimização

Para discutir a necessidade ou não de prazo para a medida protetiva, o STJ entra em um debate jurídico com consequências práticas para as vítimas de violência: se a medida protetiva é autônoma ou se tem natureza penal e deve correr em paralelo a um processo penal equivalente.

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Entidades de defesa de direitos das mulheres, como o Me Too, defendem, assim como o MP-MG, que seja reconhecida a natureza autônoma das medidas de proteção.

O julgamento foi iniciado em sessão virtual da Terceira Seção, mas houve pedido de vista do ministro Rogério Schietti. A expectativa das partes é de que o tema volte ao debate esta semana no STJ.

“Às vezes as pessoas entendem como algo punitivista, como se estivéssemos pleiteando mais punições. Já está na lei que medidas protetivas são autônomas sem prazo predeterminado”, diz a criminalista Flávia Leardini.

“Muitas mulheres não querem continuar com procedimento criminal contra seus companheiros, apesar do risco de reiteração de violência doméstica. Atuamos pro bono em casos de refugiados, e é comum o receio das vítimas de o companheiro, com a cessação da medida protetiva, levarem os filhos embora do País. Nessas situações, apesar de muitas vítimas não quererem processar o agressor criminalmente, ao encerrarem o processo cível, como o divórcio, juízes têm cessado as medidas protetivas”, diz ela.

Caso pode voltar ao debate no STJ nesta semana Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Ela diz ser importante definir a natureza autônoma da medida protetiva, pois se ela fosse vinculada a um processo penal relacionado, caberia debater a necessidade de prazo exato para a revisão da medida, pois ninguém pode ser sancionado por tempo indeterminado. “E não se trata de pleitear medida protetiva eterna, mas da manutenção enquanto perdurar o risco de violência”, afirma.

O promotor diz que embora a discussão pareça muito técnica, há consequências diretas para as vítimas. “Se passar o prazo máximo para a denúncia, temos prescrição, não haverá o processo penal. Mas não quer dizer que a vítima não tenha sua integridade física sob ameaça. Precisa consolidar a desvinculação do processo criminal”, afirma Faria.

Divergência e risco de descredibilização

O tema divide opiniões. O próprio judiciário tem dado decisões diferentes sobre o assunto. A advogada Marina Coelho Araújo, doutora em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), defende que as medidas protetivas tenham, sim, natureza penal reconhecida e sejam acompanhadas de processo penal.

“Essa medida da Lei Maria da Penha é concedida pelo juiz penal e é uma medida cautelar. A medida cautelar é preparatória e tem natureza acessória. A medida protetiva não é uma medida em si e isso não diminui a importância dela, mas está sempre relacionada a uma necessária proteção penal”, afirma a advogada. Segundo ela, sem uma medida penal, não pode haver medida cautelar. “A cautelar só pode ser decretada se ela tiver contemporaneidade. O perigo deve ser contemporâneo”, afirma.

Marina Coelho Araújo, que também trabalha em casos de violência de gênero, afirma que a banalização das medidas protetivas acaba descredibilizando a lei. ”Não significa diminuir a importância da Lei Maria da Penha, mas a utilização banalizada tira a credibilidade da medida e não chega nos objetivos que precisamos”, diz.

“Hoje, a medida protetiva muitas vezes é decretada sem nenhuma questão, sem medida fiscalizatória e a mulher fica desprotegida. Isso está sendo concedido até quando vemos litigiosidade no divórcio. As mulheres têm de ser protegidas efetivamente”, afirma a advogada.

Ainda que com posição diferente, e a favor de reconhecer a natureza jurídica das medidas protetivas, a advogada diz que não deve caber à vítima comprovar que o risco persiste para a continuidade da proteção. “O Judiciário, provocado, que tem de fazer essa análise. Se tiver uma medida cautelar em vigor, a pessoa interessada pode procurar o Judiciário para comprovar que não tem mais risco”, afirma.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute um caso que afetará a forma como o Judiciário tem aplicado um trecho da Lei Maria da Penha - o que estabelece medidas de proteção para a vítima de violência doméstica contra o agressor. Segundo o Ministério Público, a ONG Me Too Brasil e parte dos especialistas, o tribunal corre o risco de dificultar a proteção de mulheres vítimas no País. Não há consenso jurídico, no entanto, em torno da discussão.

Entidades veem risco de revitimização diante da necessidade de comprovar a persistência do risco Foto: Gabriela Biló/Estadão

O caso em debate é um recurso do Ministério Público de Minas Gerais contra decisão do Tribunal de Justiça. O relator do recurso no STJ, ministro Joel Paciornik, entendeu que o debate deveria ser levado à Terceira Seção para dar entendimento uniforme ao tema, que tem sido recorrente no Judiciário. Até hoje, a Quinta e a Sexta Turmas do STJ, que discutem matéria penal, têm posições divergentes.

O TJ-MG aceitou parcialmente o recurso de um agressor de mulher vítima de violência doméstica e estabeleceu que as medidas protetivas impostas a ele teriam prazo de 90 dias. Depois disso, a situação deveria ser reavaliada.

O MP, por sua vez, defende que não haja prazo determinado no qual a vítima precise comprovar que o risco ainda existe. A visão da promotoria é a de que as medidas protetivas devem valer enquanto durar a situação de ameaça. Ela só deveria se encerrar, portanto, quando uma das partes for ao Judiciário e comprovar que não há mais necessidade da manutenção.

O promotor de Justiça Felipe Faria, assessor especial da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas, afirma que estipular prazo para que a medida protetiva expire é submeter a vítima a uma nova violência, desta vez por parte do Estado.

“Fazer a vítima, já fragilizada, precisar periodicamente voltar aos órgãos para fazer novos pedidos é gerar um ciclo de violência institucional, uma revitimização. Além disso, seguindo decisões anteriores, medidas protetivas têm de durar enquanto a situação persistir, não têm prazo determinado. Pode durar uma semana, um mês, ou cinco anos”, diz o promotor.

Para ele, “isso tem o condão de desestimular e afastar as vítimas dessa estrutura estatal, que está aqui para resguardá-la”.

A necessidade de comprovar que o risco de violência permanece também é considerada inviável. Isso porque muitas vezes, segundo o MP, o que impede a vítima de sofrer nova violência é justamente a medida protetiva em vigor. Uma vez expirada, a violência volta.

“Há receio de não conseguir demonstrar de tempos em tempos a persistência do risco. Pode haver transferência de ônus da prova quase intransponível”, concorda a sócia de direito penal do Mattos Filho e uma das responsáveis pelo caso em nome do Me Too, Flávia Leardini.

O Me Too Brasil tenta ingressar no debate no STJ como amicus curiae no processo - a expressão latina significa “amigo da corte” e é usada para que interessados no resultado da causa, que não são as partes, possam ser ouvidos pelo Judiciário. Para isso, a ONG contratou o escritório Mattos Filho, por meio do setor de advocacia pro bono da banca. O pedido ainda não foi analisado pelo STJ.

“A Lei Maria da Penha nunca foi criminal. É uma legislação integral de proteção e defesa das mulheres em situação de violência doméstica intrafamiliar”, diz Marina Ganzarolli, advogada e presidente do Me Too Brasil.

“Quando a Lei Maria da Penha foi desenhada, falava em varas (de Justiça) híbridas, para um único juiz definir o divórcio, a guarda, mas também cuidar da questão criminal, da lesão corporal, da ameaça. Só temos vara híbrida em um Estado”, afirma.

Para Marina, não só há dificuldade em implementar de modo integral a legislação de proteção à mulher, como o Judiciário pode enfraquecer um dos instrumentos mais eficientes: as medidas protetivas.

Natureza jurídica e revitimização

Para discutir a necessidade ou não de prazo para a medida protetiva, o STJ entra em um debate jurídico com consequências práticas para as vítimas de violência: se a medida protetiva é autônoma ou se tem natureza penal e deve correr em paralelo a um processo penal equivalente.

Entidades de defesa de direitos das mulheres, como o Me Too, defendem, assim como o MP-MG, que seja reconhecida a natureza autônoma das medidas de proteção.

O julgamento foi iniciado em sessão virtual da Terceira Seção, mas houve pedido de vista do ministro Rogério Schietti. A expectativa das partes é de que o tema volte ao debate esta semana no STJ.

“Às vezes as pessoas entendem como algo punitivista, como se estivéssemos pleiteando mais punições. Já está na lei que medidas protetivas são autônomas sem prazo predeterminado”, diz a criminalista Flávia Leardini.

“Muitas mulheres não querem continuar com procedimento criminal contra seus companheiros, apesar do risco de reiteração de violência doméstica. Atuamos pro bono em casos de refugiados, e é comum o receio das vítimas de o companheiro, com a cessação da medida protetiva, levarem os filhos embora do País. Nessas situações, apesar de muitas vítimas não quererem processar o agressor criminalmente, ao encerrarem o processo cível, como o divórcio, juízes têm cessado as medidas protetivas”, diz ela.

Caso pode voltar ao debate no STJ nesta semana Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Ela diz ser importante definir a natureza autônoma da medida protetiva, pois se ela fosse vinculada a um processo penal relacionado, caberia debater a necessidade de prazo exato para a revisão da medida, pois ninguém pode ser sancionado por tempo indeterminado. “E não se trata de pleitear medida protetiva eterna, mas da manutenção enquanto perdurar o risco de violência”, afirma.

O promotor diz que embora a discussão pareça muito técnica, há consequências diretas para as vítimas. “Se passar o prazo máximo para a denúncia, temos prescrição, não haverá o processo penal. Mas não quer dizer que a vítima não tenha sua integridade física sob ameaça. Precisa consolidar a desvinculação do processo criminal”, afirma Faria.

Divergência e risco de descredibilização

O tema divide opiniões. O próprio judiciário tem dado decisões diferentes sobre o assunto. A advogada Marina Coelho Araújo, doutora em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), defende que as medidas protetivas tenham, sim, natureza penal reconhecida e sejam acompanhadas de processo penal.

“Essa medida da Lei Maria da Penha é concedida pelo juiz penal e é uma medida cautelar. A medida cautelar é preparatória e tem natureza acessória. A medida protetiva não é uma medida em si e isso não diminui a importância dela, mas está sempre relacionada a uma necessária proteção penal”, afirma a advogada. Segundo ela, sem uma medida penal, não pode haver medida cautelar. “A cautelar só pode ser decretada se ela tiver contemporaneidade. O perigo deve ser contemporâneo”, afirma.

Marina Coelho Araújo, que também trabalha em casos de violência de gênero, afirma que a banalização das medidas protetivas acaba descredibilizando a lei. ”Não significa diminuir a importância da Lei Maria da Penha, mas a utilização banalizada tira a credibilidade da medida e não chega nos objetivos que precisamos”, diz.

“Hoje, a medida protetiva muitas vezes é decretada sem nenhuma questão, sem medida fiscalizatória e a mulher fica desprotegida. Isso está sendo concedido até quando vemos litigiosidade no divórcio. As mulheres têm de ser protegidas efetivamente”, afirma a advogada.

Ainda que com posição diferente, e a favor de reconhecer a natureza jurídica das medidas protetivas, a advogada diz que não deve caber à vítima comprovar que o risco persiste para a continuidade da proteção. “O Judiciário, provocado, que tem de fazer essa análise. Se tiver uma medida cautelar em vigor, a pessoa interessada pode procurar o Judiciário para comprovar que não tem mais risco”, afirma.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute um caso que afetará a forma como o Judiciário tem aplicado um trecho da Lei Maria da Penha - o que estabelece medidas de proteção para a vítima de violência doméstica contra o agressor. Segundo o Ministério Público, a ONG Me Too Brasil e parte dos especialistas, o tribunal corre o risco de dificultar a proteção de mulheres vítimas no País. Não há consenso jurídico, no entanto, em torno da discussão.

Entidades veem risco de revitimização diante da necessidade de comprovar a persistência do risco Foto: Gabriela Biló/Estadão

O caso em debate é um recurso do Ministério Público de Minas Gerais contra decisão do Tribunal de Justiça. O relator do recurso no STJ, ministro Joel Paciornik, entendeu que o debate deveria ser levado à Terceira Seção para dar entendimento uniforme ao tema, que tem sido recorrente no Judiciário. Até hoje, a Quinta e a Sexta Turmas do STJ, que discutem matéria penal, têm posições divergentes.

O TJ-MG aceitou parcialmente o recurso de um agressor de mulher vítima de violência doméstica e estabeleceu que as medidas protetivas impostas a ele teriam prazo de 90 dias. Depois disso, a situação deveria ser reavaliada.

O MP, por sua vez, defende que não haja prazo determinado no qual a vítima precise comprovar que o risco ainda existe. A visão da promotoria é a de que as medidas protetivas devem valer enquanto durar a situação de ameaça. Ela só deveria se encerrar, portanto, quando uma das partes for ao Judiciário e comprovar que não há mais necessidade da manutenção.

O promotor de Justiça Felipe Faria, assessor especial da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas, afirma que estipular prazo para que a medida protetiva expire é submeter a vítima a uma nova violência, desta vez por parte do Estado.

“Fazer a vítima, já fragilizada, precisar periodicamente voltar aos órgãos para fazer novos pedidos é gerar um ciclo de violência institucional, uma revitimização. Além disso, seguindo decisões anteriores, medidas protetivas têm de durar enquanto a situação persistir, não têm prazo determinado. Pode durar uma semana, um mês, ou cinco anos”, diz o promotor.

Para ele, “isso tem o condão de desestimular e afastar as vítimas dessa estrutura estatal, que está aqui para resguardá-la”.

A necessidade de comprovar que o risco de violência permanece também é considerada inviável. Isso porque muitas vezes, segundo o MP, o que impede a vítima de sofrer nova violência é justamente a medida protetiva em vigor. Uma vez expirada, a violência volta.

“Há receio de não conseguir demonstrar de tempos em tempos a persistência do risco. Pode haver transferência de ônus da prova quase intransponível”, concorda a sócia de direito penal do Mattos Filho e uma das responsáveis pelo caso em nome do Me Too, Flávia Leardini.

O Me Too Brasil tenta ingressar no debate no STJ como amicus curiae no processo - a expressão latina significa “amigo da corte” e é usada para que interessados no resultado da causa, que não são as partes, possam ser ouvidos pelo Judiciário. Para isso, a ONG contratou o escritório Mattos Filho, por meio do setor de advocacia pro bono da banca. O pedido ainda não foi analisado pelo STJ.

“A Lei Maria da Penha nunca foi criminal. É uma legislação integral de proteção e defesa das mulheres em situação de violência doméstica intrafamiliar”, diz Marina Ganzarolli, advogada e presidente do Me Too Brasil.

“Quando a Lei Maria da Penha foi desenhada, falava em varas (de Justiça) híbridas, para um único juiz definir o divórcio, a guarda, mas também cuidar da questão criminal, da lesão corporal, da ameaça. Só temos vara híbrida em um Estado”, afirma.

Para Marina, não só há dificuldade em implementar de modo integral a legislação de proteção à mulher, como o Judiciário pode enfraquecer um dos instrumentos mais eficientes: as medidas protetivas.

Natureza jurídica e revitimização

Para discutir a necessidade ou não de prazo para a medida protetiva, o STJ entra em um debate jurídico com consequências práticas para as vítimas de violência: se a medida protetiva é autônoma ou se tem natureza penal e deve correr em paralelo a um processo penal equivalente.

Entidades de defesa de direitos das mulheres, como o Me Too, defendem, assim como o MP-MG, que seja reconhecida a natureza autônoma das medidas de proteção.

O julgamento foi iniciado em sessão virtual da Terceira Seção, mas houve pedido de vista do ministro Rogério Schietti. A expectativa das partes é de que o tema volte ao debate esta semana no STJ.

“Às vezes as pessoas entendem como algo punitivista, como se estivéssemos pleiteando mais punições. Já está na lei que medidas protetivas são autônomas sem prazo predeterminado”, diz a criminalista Flávia Leardini.

“Muitas mulheres não querem continuar com procedimento criminal contra seus companheiros, apesar do risco de reiteração de violência doméstica. Atuamos pro bono em casos de refugiados, e é comum o receio das vítimas de o companheiro, com a cessação da medida protetiva, levarem os filhos embora do País. Nessas situações, apesar de muitas vítimas não quererem processar o agressor criminalmente, ao encerrarem o processo cível, como o divórcio, juízes têm cessado as medidas protetivas”, diz ela.

Caso pode voltar ao debate no STJ nesta semana Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Ela diz ser importante definir a natureza autônoma da medida protetiva, pois se ela fosse vinculada a um processo penal relacionado, caberia debater a necessidade de prazo exato para a revisão da medida, pois ninguém pode ser sancionado por tempo indeterminado. “E não se trata de pleitear medida protetiva eterna, mas da manutenção enquanto perdurar o risco de violência”, afirma.

O promotor diz que embora a discussão pareça muito técnica, há consequências diretas para as vítimas. “Se passar o prazo máximo para a denúncia, temos prescrição, não haverá o processo penal. Mas não quer dizer que a vítima não tenha sua integridade física sob ameaça. Precisa consolidar a desvinculação do processo criminal”, afirma Faria.

Divergência e risco de descredibilização

O tema divide opiniões. O próprio judiciário tem dado decisões diferentes sobre o assunto. A advogada Marina Coelho Araújo, doutora em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), defende que as medidas protetivas tenham, sim, natureza penal reconhecida e sejam acompanhadas de processo penal.

“Essa medida da Lei Maria da Penha é concedida pelo juiz penal e é uma medida cautelar. A medida cautelar é preparatória e tem natureza acessória. A medida protetiva não é uma medida em si e isso não diminui a importância dela, mas está sempre relacionada a uma necessária proteção penal”, afirma a advogada. Segundo ela, sem uma medida penal, não pode haver medida cautelar. “A cautelar só pode ser decretada se ela tiver contemporaneidade. O perigo deve ser contemporâneo”, afirma.

Marina Coelho Araújo, que também trabalha em casos de violência de gênero, afirma que a banalização das medidas protetivas acaba descredibilizando a lei. ”Não significa diminuir a importância da Lei Maria da Penha, mas a utilização banalizada tira a credibilidade da medida e não chega nos objetivos que precisamos”, diz.

“Hoje, a medida protetiva muitas vezes é decretada sem nenhuma questão, sem medida fiscalizatória e a mulher fica desprotegida. Isso está sendo concedido até quando vemos litigiosidade no divórcio. As mulheres têm de ser protegidas efetivamente”, afirma a advogada.

Ainda que com posição diferente, e a favor de reconhecer a natureza jurídica das medidas protetivas, a advogada diz que não deve caber à vítima comprovar que o risco persiste para a continuidade da proteção. “O Judiciário, provocado, que tem de fazer essa análise. Se tiver uma medida cautelar em vigor, a pessoa interessada pode procurar o Judiciário para comprovar que não tem mais risco”, afirma.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute um caso que afetará a forma como o Judiciário tem aplicado um trecho da Lei Maria da Penha - o que estabelece medidas de proteção para a vítima de violência doméstica contra o agressor. Segundo o Ministério Público, a ONG Me Too Brasil e parte dos especialistas, o tribunal corre o risco de dificultar a proteção de mulheres vítimas no País. Não há consenso jurídico, no entanto, em torno da discussão.

Entidades veem risco de revitimização diante da necessidade de comprovar a persistência do risco Foto: Gabriela Biló/Estadão

O caso em debate é um recurso do Ministério Público de Minas Gerais contra decisão do Tribunal de Justiça. O relator do recurso no STJ, ministro Joel Paciornik, entendeu que o debate deveria ser levado à Terceira Seção para dar entendimento uniforme ao tema, que tem sido recorrente no Judiciário. Até hoje, a Quinta e a Sexta Turmas do STJ, que discutem matéria penal, têm posições divergentes.

O TJ-MG aceitou parcialmente o recurso de um agressor de mulher vítima de violência doméstica e estabeleceu que as medidas protetivas impostas a ele teriam prazo de 90 dias. Depois disso, a situação deveria ser reavaliada.

O MP, por sua vez, defende que não haja prazo determinado no qual a vítima precise comprovar que o risco ainda existe. A visão da promotoria é a de que as medidas protetivas devem valer enquanto durar a situação de ameaça. Ela só deveria se encerrar, portanto, quando uma das partes for ao Judiciário e comprovar que não há mais necessidade da manutenção.

O promotor de Justiça Felipe Faria, assessor especial da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas, afirma que estipular prazo para que a medida protetiva expire é submeter a vítima a uma nova violência, desta vez por parte do Estado.

“Fazer a vítima, já fragilizada, precisar periodicamente voltar aos órgãos para fazer novos pedidos é gerar um ciclo de violência institucional, uma revitimização. Além disso, seguindo decisões anteriores, medidas protetivas têm de durar enquanto a situação persistir, não têm prazo determinado. Pode durar uma semana, um mês, ou cinco anos”, diz o promotor.

Para ele, “isso tem o condão de desestimular e afastar as vítimas dessa estrutura estatal, que está aqui para resguardá-la”.

A necessidade de comprovar que o risco de violência permanece também é considerada inviável. Isso porque muitas vezes, segundo o MP, o que impede a vítima de sofrer nova violência é justamente a medida protetiva em vigor. Uma vez expirada, a violência volta.

“Há receio de não conseguir demonstrar de tempos em tempos a persistência do risco. Pode haver transferência de ônus da prova quase intransponível”, concorda a sócia de direito penal do Mattos Filho e uma das responsáveis pelo caso em nome do Me Too, Flávia Leardini.

O Me Too Brasil tenta ingressar no debate no STJ como amicus curiae no processo - a expressão latina significa “amigo da corte” e é usada para que interessados no resultado da causa, que não são as partes, possam ser ouvidos pelo Judiciário. Para isso, a ONG contratou o escritório Mattos Filho, por meio do setor de advocacia pro bono da banca. O pedido ainda não foi analisado pelo STJ.

“A Lei Maria da Penha nunca foi criminal. É uma legislação integral de proteção e defesa das mulheres em situação de violência doméstica intrafamiliar”, diz Marina Ganzarolli, advogada e presidente do Me Too Brasil.

“Quando a Lei Maria da Penha foi desenhada, falava em varas (de Justiça) híbridas, para um único juiz definir o divórcio, a guarda, mas também cuidar da questão criminal, da lesão corporal, da ameaça. Só temos vara híbrida em um Estado”, afirma.

Para Marina, não só há dificuldade em implementar de modo integral a legislação de proteção à mulher, como o Judiciário pode enfraquecer um dos instrumentos mais eficientes: as medidas protetivas.

Natureza jurídica e revitimização

Para discutir a necessidade ou não de prazo para a medida protetiva, o STJ entra em um debate jurídico com consequências práticas para as vítimas de violência: se a medida protetiva é autônoma ou se tem natureza penal e deve correr em paralelo a um processo penal equivalente.

Entidades de defesa de direitos das mulheres, como o Me Too, defendem, assim como o MP-MG, que seja reconhecida a natureza autônoma das medidas de proteção.

O julgamento foi iniciado em sessão virtual da Terceira Seção, mas houve pedido de vista do ministro Rogério Schietti. A expectativa das partes é de que o tema volte ao debate esta semana no STJ.

“Às vezes as pessoas entendem como algo punitivista, como se estivéssemos pleiteando mais punições. Já está na lei que medidas protetivas são autônomas sem prazo predeterminado”, diz a criminalista Flávia Leardini.

“Muitas mulheres não querem continuar com procedimento criminal contra seus companheiros, apesar do risco de reiteração de violência doméstica. Atuamos pro bono em casos de refugiados, e é comum o receio das vítimas de o companheiro, com a cessação da medida protetiva, levarem os filhos embora do País. Nessas situações, apesar de muitas vítimas não quererem processar o agressor criminalmente, ao encerrarem o processo cível, como o divórcio, juízes têm cessado as medidas protetivas”, diz ela.

Caso pode voltar ao debate no STJ nesta semana Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Ela diz ser importante definir a natureza autônoma da medida protetiva, pois se ela fosse vinculada a um processo penal relacionado, caberia debater a necessidade de prazo exato para a revisão da medida, pois ninguém pode ser sancionado por tempo indeterminado. “E não se trata de pleitear medida protetiva eterna, mas da manutenção enquanto perdurar o risco de violência”, afirma.

O promotor diz que embora a discussão pareça muito técnica, há consequências diretas para as vítimas. “Se passar o prazo máximo para a denúncia, temos prescrição, não haverá o processo penal. Mas não quer dizer que a vítima não tenha sua integridade física sob ameaça. Precisa consolidar a desvinculação do processo criminal”, afirma Faria.

Divergência e risco de descredibilização

O tema divide opiniões. O próprio judiciário tem dado decisões diferentes sobre o assunto. A advogada Marina Coelho Araújo, doutora em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), defende que as medidas protetivas tenham, sim, natureza penal reconhecida e sejam acompanhadas de processo penal.

“Essa medida da Lei Maria da Penha é concedida pelo juiz penal e é uma medida cautelar. A medida cautelar é preparatória e tem natureza acessória. A medida protetiva não é uma medida em si e isso não diminui a importância dela, mas está sempre relacionada a uma necessária proteção penal”, afirma a advogada. Segundo ela, sem uma medida penal, não pode haver medida cautelar. “A cautelar só pode ser decretada se ela tiver contemporaneidade. O perigo deve ser contemporâneo”, afirma.

Marina Coelho Araújo, que também trabalha em casos de violência de gênero, afirma que a banalização das medidas protetivas acaba descredibilizando a lei. ”Não significa diminuir a importância da Lei Maria da Penha, mas a utilização banalizada tira a credibilidade da medida e não chega nos objetivos que precisamos”, diz.

“Hoje, a medida protetiva muitas vezes é decretada sem nenhuma questão, sem medida fiscalizatória e a mulher fica desprotegida. Isso está sendo concedido até quando vemos litigiosidade no divórcio. As mulheres têm de ser protegidas efetivamente”, afirma a advogada.

Ainda que com posição diferente, e a favor de reconhecer a natureza jurídica das medidas protetivas, a advogada diz que não deve caber à vítima comprovar que o risco persiste para a continuidade da proteção. “O Judiciário, provocado, que tem de fazer essa análise. Se tiver uma medida cautelar em vigor, a pessoa interessada pode procurar o Judiciário para comprovar que não tem mais risco”, afirma.

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