A ausência e a presença de letramento racial interferem diretamente nas relações. Engana-se quem acha que o letramento racial é somente ‘’decorar’' frases e palavras racistas que não podem ser ditas. É muito mais que isso e precisa estar presente nas escolas, empresas, academias, clubes, enfim, em todos os espaços cotidianos.
Letrar-se racialmente é pensar criticamente sobre as práticas que remontam e alimentam o status quo do racismo. É muito mais sobre o modus operandi do pensar do que exatamente a palavra que está sendo dita. É sobre desconstruir formas racistas de pensar.
Uma pesquisa feita pela empresa CEGOS mostrou que no Brasil 75% das pessoas entrevistadas apontaram o racismo como principal discriminação no ambiente de trabalho. Mas poucas, ou quase nenhuma, reconhecem ser racistas.
É fundamental que as pessoas não negras reconheçam o racismo como um processo estrutural, enraizado em nossa cultura. Mas isso, de forma alguma, pode ser usado como maneira de justificar uma prática racista. Uma coisa é reconhecer que há uma lógica que impacta a sociedade e esta lógica é racista; outra coisa é a responsabilidade individual de cada pessoa.
O letramento é fundamental para a construção da responsabilização daquelas pessoas que querem, de fato, serem antirracistas. Reconhecer que é racista e a partir disso buscar conhecimento e aplicar na práticas ações antirracistas. Letramento é parte da ação. Reconhecimento dos privilégios também.
Também precisamos pensar no fato de que pessoas negras também podem cometer racismo. Pessoas negras podem reproduzir racismo, inclusive como resultado do próprio racismo sofrido. Racismo é uma estrutura de poder. Hoje, quem está socialmente em lugar de poder não é a pessoa negra.
O letramento racial também é necessário para a pessoa negra que também tem o direito de saber de si, de sua história. Achar que uma pessoa por ser negra tem letramento racial ou cometer um ato racista e justificar dizendo que uma pessoa negra concordou com este ato, se valendo disso para não ser visto como racista… Isso é racismo.
Para entendermos bem sobre esse processo, analisemos agora três cenários corporativos.
Na contratação, a famosa “boa aparência” pode ser traduzida por uma imagem, no caso do homem negro, como alguém que usa seu cabelo o mais curto possível. Raspado. No entanto, um homem branco que não usa seu cabelo raspado, mas sim um pouco mais longo, tem sua aparência normalizada. E acredite, uma situação como essa não é nada banal. Os vieses inconscientes na leitura de cada uma destas pessoas irá moldar suas relações.
No livro Meu Crespo é de Rainha, escrito por Bell Hooks, o livro infantil debate a importância do cabelo para as pessoas pretas. Em um país plural como o Brasil, você verá esse cabelo em diferentes tons de pele negra. Então precisamos refletir sobre como nossa história está sendo contada e quem acaba tendo o direito de ter ou não seus corpos aceitos como são.
No meu livro Nuang: caminhos da liberdade, que escrevi dos 9 aos 14 anos, lembro que minha motivação maior para escrever a história era o desejo de ter uma amiga negra de cabelos como o meu. Com essa idade, eu já sabia palavras no idioma Bantu, no entanto, quando falava sobre este meu saber como minha escola, riam de mim.
Depois, mais velha, fui vendo que este saber tinha sim espaço e era real. Em Nuang apresento estas palavras e fico feliz de ter feito esta escolha, ainda que na época que escrevi a história, muitos debocharam, dizendo que estas palavras não existiam. Então também precisamos pensar. Para quem está resguardado o direito de produção de conhecimento? Quais corpos são vistos como capazes de produzir saber?
Pensemos agora em crescimento profissional. Segundo o relatório da B3, de agosto de 2023, das 343 companhias analisadas 88,9% declararam não ter nenhuma pessoa negra na diretoria e 311 (90,7%) não têm nenhuma pessoa negra no conselho. Apenas quatro empresas (1,1%) disseram contar com três ou mais pessoas negras na diretoria.
Esses dados mostram que algo grave ocorre nos processos internos. É o racismo impedindo que pessoas negras cheguem nos cargos de liderança. Sempre que implementamos um trabalho de equidade racial nas empresas, lançamos alguns questionamentos. Sua empresa está mais preocupada com representatividade ou com proporcionalidade? Representatividade é fundamental, proporcionalidade também. Há proporcionalidade para pessoas negras em cargos de liderança na sua instituição?
Outro impacto do racismo na percepção das pessoas no ambiente de trabalho tem justamente a ver com a comunicação. Uma pessoa branca que se posiciona, que tem uma postura mais direta e objetiva, nem sempre será lida socialmente como alguém abusivo. Às vezes esse perfil será admirado justamente pela sua objetividade.
Mas, se uma pessoa negra faz o mesmo, poderá ser lido como violento ou soberbo. Recentemente a atriz Taís Araújo, em entrevista para o podcast Quem pode, pod deu um depoimento falando sobre um episódio onde um ator disse que pessoas negras que ascendem ficam soberbas e grosseiras. Isso é um retrato do imaginário social racista que acha que a pessoa negra deverá sempre estar no lugar de silenciamento.
É preciso implicar as pessoas nas demandas por soluções e consciência responsável para que depois se construam outros modos de pensar, ou seja, modos antirracistas, afetando positivamente o agir. Não só esperar que alguém te forme no assunto, mas buscar esse conhecimento. Existe hoje uma oferta significativa de conteúdos, pensadores e intelectuais que versam sobre o assunto.
Empresas devem, pôr compromisso social, ético e histórico, ter como prioridade a equidade racial. É preciso se haver com o fato de que a história por muito tempo criou políticas de extermínio da população negra no Brasil e que a simples assinatura de um documento não apagaria o estrago causado. Estrago este que ainda traz consequências. Responsabilização e intencionalidade para mudar é fundamental.