Binômio é um título bizarro até para um pasquim. Era uma provocação ao nome do plano de governo do popular governador de Minas, Juscelino Kubitcheck, o "Binômio Energia e Transporte". Quem usaria hoje a palavra "binômio" para uma campanha publicitária? O pasquim roubou o bordão: Binômio Sombra e Água Fresca. 1952. Dois os jovens jornalistas, José Maria Rabelo e Euro Arantes, de 23 e 24 anos, trabalhavam no Jornal do Comércio. "Esta imprensa mineira é uma titica . Por que a gente não faz um jornal?" "E o tutu?" O dinheiro veio de um grupo de deputados de oposição: num editorial, o Binômio anunciava: "Somos 99% independentes e 1% suspeitos, exatamente o oposto dos concorrentes". O sucesso foi instantâneo. A primeira edição teve três impressões. Depois de três semanas, o jornal dispensou o dinheiro dos deputados. Deboche com humor e denúncias das promiscuidades entre o governo e os poderosos do Estado eram o prato semanal. Juscelino era popular, alegre, limpo, garanhão e pé de valsa. Um alvo difícil. Em um evento, o governador se protegeu da chuva com uma cadeira de cabeça para baixo. O jornal inverteu a foto, colocou JK numa posição circense e deu o título "Minas de Cabeça para Baixo". Uma manchete provocante envolvia o mais rico empreiteiro do Estado, Joaquim Rolla. "JK foi à Araxá e levou Rolla". Vendeu jornal e não comprometeu a fama de garanhão de JK. Não era homem vingativo. Levava o deboche no deboche. Euro Arantes, parceiro de Rabelo, dizia que o Binômio era "uma brincadeira de estudantes que a polícia levou a sério", mas eles sabiam se promover. Anunciaram uma edição imprópria para menores de 18 anos com cartazes que diziam que "os pais não devem levar o jornal para casa e as bancas não devem expor páginas abertas". A polícia se preparou para confiscar o jornal, que saia sempre aos domingos, mas naquela semana saiu no sábado. Esgotou numa manhã. Toda edição trazia reportagens e textos de jornais concorrentes com histórias engraçadas e venenosas, como a de uma mulher que queria acrescentar o sobrenome Pinto e as considerações do juiz de como podia usar o Pinto. Os concorrentes nunca mais incomodaram o Binômio. Belo Horizonte era uma das cidades mais conservadoras do Brasil e o homem mais rico da cidade, um dos mais ricos do pais, truculento e alvo frequente do jornal, era Antonio Luciano, dono de mais de trinta cinemas, centenas de imóveis, viciado em virgens. Consumiu mais de 2.000, teve mais de 100 filhos, muitos com suas próprias filhas. São números mineiros. Desconfie. O duplo sentido era uma especialidade da casa, mas com o general João Punaro Bley a manchete de 8 colunas foi na boca do estômago: "O Democrata de Hoje é o Facista de Ontem". Em 1961, o general era a maior autoridade militar da cidade. O Binômio descobriu que fora interventor no Espírito Santo durante a ditadura de Getúlio Vargas, onde ganhou o apelido "Capitão Óleo de Ricínio" porque costumava invadir redações e forçar jornalistas a engolir a página de jornal que considerava ofensiva com óleo de rícino. Punaro Bley entrou no Binômio com um bastão metálico debaixo do braço, pegou José Maria Rabelo pelo pescoço: "seu jornalista de merda, filho da puta". Rabelo sabia judô e sangrou o general. Duas horas depois, duzentos homens do Exército e da Aeronáutica empastelaram o jornal. Não sobraram nem pias nem privadas. Rabelo se refugiou em São Paulo. Os comandantes responsáveis foram transferidos, mas Rabelo estava na mira dos militares. No golpe de 64, se asilou na embaixada da Bolívia e passou 16 anos no exílio. Perdeu quase tudo. Em 1952, Belo Horizonte tinha 300 mil habitantes. O Binômio vendia 60 mil exemplares. Hoje, a grande BH tem 5 milhões de habitantes, a cidade tem 2,5 milhões e o jornal de maior circulação vende exatamente 60 mil exemplares no domingo, o dia campeão de vendas. O Binômio este ano faz 60 anos e há uma excelente entrevista com José Maria Rabelo, que faz 84 neste ano, lúcido e ativo, no excelente jornal Trem Itabirano. Há também farto material de vídeo e texto na web e no YouTube. Os jornalistas Marcos Caldeira, editor do Trem, e Lucas Ferraz, da Folha, enriqueceram esta coluna com várias histórias. Só estive com José Maria Rabelo uma vez no Rio, numa reunião de jornalistas e escritores mineiros, e pouco falamos. Pelo Binômio, um precursor do Pasquim, passaram Ziraldo, Borjado, Ponce de Leon, Affonso Romano de Sant'Anna, Barão de Itararé, Fernando Gabeira, Fernando Sabino, Roberto Drummond, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, Wander Piroli, a fina flor do jornalismo e dos cartunistas. Num período do governo Bias Fortes, entre 55 a 60, nenhuma gráfica imprimia o jornal em BH. Era impresso no Rio e foi o primeiro a usar cores. José Maria Rabelo ia lançar a edição nacional quando veio o golpe de 64 e o exílio. Hoje, finaliza um livro sobre a história de Belo Horizonte, que deve ser lançado até o fim de ano. Temos bom jornalismo investigativo na grande imprensa brasileira, mas onde estão os Pasquins e os Binômios? Quem sabe, o Trem Itabirano chega lá. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.