Opinião|‘Luta negra por integração e participação política começou muito antes da assinatura da Lei Áurea’


Professora e historiadora destaca a busca pela alforria, principal mecanismo para conquistar liberdades e autonomias pelos escravizados

Por Lucimar Felisberto

Uma sociedade escravista com um reduzido número de escravizados. Qual seria o impacto de se descrever assim a sociedade brasileira dos anos finais do século XIX? Que tipo de reparo no mito que transformou a Princesa Isabel em uma monarca heroína, salvadora, libertadora e redentora seria possível?

Registra-se, ainda, que em 25 de março de 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, o médico e político Sátiro de Oliveira Dias, à frente do poder executivo provincial, extinguiu o regime de trabalho forçado no Ceará. Diante de novas narrativas da História do Brasil, parece fazer sentido o questionamento: como esses e outros fatos históricos fragilizam o entendimento da ação da Princesa Regente como um marco histórico fundamental na trajetória de vida da população negra no País?

A província do Ceará possuía um número muito reduzido de escravizados quando do ato político de Dias. O último Censo realizado no Império do Brasil, em 1872, apurou que apenas 4% da população daquela província era de escravizados.

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Professora e historiadora Lucimar Felisberto afirma que luta dos escravizados por participação política começou antes da assinatura da Lei Áurea. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Havia 9.930.478 habitantes em todo território brasileiro, os dessa condição social eram da ordem de 15,2% da população, de acordo com os dados recenseados naquele ano. Ou seja, é um fato que levas de homens, mulheres e crianças reduzidos à condição de escravos após terem sido sequestrados em diferentes regiões do continente africano desembarcaram no Brasil ao longo de mais de 350 anos.

Contudo, precisamos fazer uso da produção historiográfica para destacar que, deste lado do Atlântico, eles protagonizaram situações sociais diversas que resultaram em mudanças de status; que tiveram na alforria o principal mecanismo de suas investidas para conquistar liberdades e autonomias.

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A despeito da rigidez da estrutura escravista, e ainda que não tenhamos dados concretos, pode ser correto afirmar que o porcentual de escravizados no Brasil nos meses que antecederam a Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, fosse ainda mais reduzido. Fundamentalmente porque promover a emancipação dos escravizados de maneira “lenta e gradual” era o sentido da política abolicionista de D. Pedro II. Ainda que aquelas e aqueles que buscavam conquistar a liberdade fizessem outros cálculos!

Sabe-se que as alforrias – onerosa ou gratuita – deixaram de constituir um direito costumeiro e assumiram ares de legalidade com a Lei Rio Branco, assinada em 28 de setembro de 1871, um ano antes da divulgação dos dados recenseados aqui apresentados. Em minhas pesquisas, encontrei evidências de que africanos e seus descendentes – escravizados, libertos e livres – negociavam suas mãos de obra no mercado de trabalho assalariado que progressivamente ganhava corpo no Brasil dos anos finais do século XIX (1). Seguramente, ampliavam a possibilidade de depositar pecúlios para comprarem suas liberdades, ou de ajudar outros cativos a comprarem.

Com efeito, o pressuposto de que a mudança de condição social dos africanos e de seus descendentes que em nosso País experenciaram a escravidão tenha sido, em verdade, uma conquista dos próprios vem sendo propalado. E por muitos estudiosos das relações político-sociais brasileiras. Apontam para a possibilidade de uma outra interpretação da realidade que não guarda relação com a oferecida em meados do século passado por Gilberto Freyre; apresentam argumentos desenvolvidos a partir de uma mudança de paradigma que repensou os papéis sociais que tanto os africanos que chegaram aqui escravizados quanto os afrobrasileiros desempenharam na História do Brasil.

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Não somente dados quantitativos, como o número de alforrias conquistadas pelos sujeitos escravizados, colaboram nas novas interpretações da História do Brasil. Ainda que não se possa chamar de uma “contranarrativa histórica”, desde os anos 1980, pesquisas refinadas – por reduzir a escala de observação do objeto; por levar em consideração novas fontes de pesquisas; por introduzir novos sujeitos nas análises - como as realizadas por historiadoras como Maria Helena Machado e Hebe Mattos ou por historiadores como Flávio dos Santos Gomes e Sidney Chalhoub[2] apresentaram evidências de que a violência do sistema escravista não transformou os escravizados em seres passivos e nem em receptores automáticos dos valores senhoriais.

Por um outro lado, também não os brutalizavam a ponto de serem “coisificados” ou de perderem a sua humanidade como proposto por Fernando Henrique Cardoso[3]. Eu venho buscando contribuir com os dados de minhas pesquisas que demonstram que também não foi retirada a capacidade de se integrarem ao moderno sistema capitalista e à sociedade de classes que o conformaria. Embora, mesmo após conquistarem a liberdade, tivessem de lidar com a prática de discriminação racial e a persistente submissão aos brancos que marcariam a relação da vida cotidiana[4].

Apesar do exposto, vale ressaltar que, ainda que pudessem ser negociadas, as conquistas escravas não evidenciavam relações harmônicas no interior de uma sociedade escravista. O que elas traziam à tona era a recusa dos escravizados de permanecerem enquanto tal. Para muitos que, mesmo na condição de escravizados, experimentavam “doses de liberdade”, conquistar a alforria era a principal etapa de projetos de vida, coletivos e individuais.

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Ou seja, uma parcela significativa já compartilhavam experiências de trabalho com uma massa de trabalhadores, negros e não negros, que atuavam na formação de um mercado de trabalho que se constituía para atender as demandas de uma economia capitalista que ganhava uma forma específica diante da expansão econômica verificada à época no Brasil. o que projetavam era uma participação ativa na sociedade brasileira, com vista à mobilidade social ascendente[5]. E não apenas os que eram socialmente percebidos como “mulatos” – e ficaram na mira dos intérpretes tradicionais - tinham essas expectativas. Abundam exemplos nesse sentido nas produções acadêmicas atuais.

Não somente por força da obrigatoriedade da Lei 10.639/03, os educandos brasileiros de todos os níveis de escolaridade precisam aprender que, muito antes do deslizar da pena da Princesa Regente, um verdadeiro exército de homens e mulheres estava envolvido em vigorosas batalhas. Primeiro para reabilitar a humanidade de um povo, depois contra a “precariedade estrutural’' da liberdade conquistada.

Caso exemplar foi o do casal negro livre ou liberto Jerônimo da Motta Monteiro Lopes e Maria Egiphicíaca de Paula Lopes. Os novos intérpretes do Brasil vêm colocando em evidência o fato de um de seus filhos, Manoel da Motta Monteiro Lopes, ter sido o primeiro deputado federal autodeclarado negro do País. Antes de ser diplomado, o menino preto que nasceu na cidade do Recife, capital de Pernambuco, em 1867, seguindo o plano de mobilidade social entabulado pelos pais, formou-se pela Faculdade de Direito do Recife e atuou como Promotor Público no Amazonas.

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Apesar do preciosismo desse resgate histórico, é importante destacar o projeto de uma família negra naquela sociedade escravista. No acesso dos filhos à educação superior foi depositada a expectativa do casal. Segundo Petrónio Domingues, Manoel da Motta Monteiro Lopes teve quatro irmãos: José Elias Monteiro Lopes, juiz de direito; João Clodoaldo Monteiro Lopes, advogado; Maria Júlia e Taciana Monteiro Lopes, professoras.

Mesmos aqueles trabalhadores africanos e afrodescendentes, contemporâneos da família Lopez, que não tiveram como acessar a educação formal, escravizados, libertos e livres; que no Império do Brasil compartilharam experiências de trabalho com sujeitos que possuíam outros marcadores raciais, levavam a cabo projetos de vida no sentido de formar famílias, adquirir moradia própria, qualificar sua mão de obra e aprender as “primeiras letras”.

O elevado números de manumissões deixa evidente que a liberdade estava no horizonte das expectativas dos escravizados e que eles buscavam colocar limite na escravidão. Para mais de um milhão e meio de libertos por força da Lei Áurea, certamente, o 13 de maio foi sim um marco. Mas vale destacar que as ações daquele exército de homens e mulheres que lutavam por sua liberdade e autonomia, e para resgatar sua humanidade, também colocavam em xeque a estrutura de uma sociedade escravista. Em uma outra possibilidade interpretativa, podemos sugerir que suas lutas tenham determinado o deslizar da pena histórica.

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[1] Santos, Lucimar Felisberto dos. (2011). “Doses” de liberdade: mercado de trabalho, ocupações e escolarização no Rio de Janeiro (1870-1888). Politeia - História E Sociedade, 9(1).

[2] CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. [1.ª ed. 1990]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 49.

[3] Uma crítica à teoria do “escravo coisa” conforme desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso, está em REIS, João José, “Escravo Coisa”. Jornal de Resenhas, Folha de São Paulo, 13 de setembro de 2003.

[4] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (1º vol.). São Paulo: Globo, 2008.

[5] SANTOS, Lucimar Felisberto dos. (2011). “Doses” de liberdade: mercado de trabalho, ocupações e escolarização no Rio de Janeiro (1870-1888). Politeia - História E Sociedade, 9(1).

Uma sociedade escravista com um reduzido número de escravizados. Qual seria o impacto de se descrever assim a sociedade brasileira dos anos finais do século XIX? Que tipo de reparo no mito que transformou a Princesa Isabel em uma monarca heroína, salvadora, libertadora e redentora seria possível?

Registra-se, ainda, que em 25 de março de 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, o médico e político Sátiro de Oliveira Dias, à frente do poder executivo provincial, extinguiu o regime de trabalho forçado no Ceará. Diante de novas narrativas da História do Brasil, parece fazer sentido o questionamento: como esses e outros fatos históricos fragilizam o entendimento da ação da Princesa Regente como um marco histórico fundamental na trajetória de vida da população negra no País?

A província do Ceará possuía um número muito reduzido de escravizados quando do ato político de Dias. O último Censo realizado no Império do Brasil, em 1872, apurou que apenas 4% da população daquela província era de escravizados.

Professora e historiadora Lucimar Felisberto afirma que luta dos escravizados por participação política começou antes da assinatura da Lei Áurea. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Havia 9.930.478 habitantes em todo território brasileiro, os dessa condição social eram da ordem de 15,2% da população, de acordo com os dados recenseados naquele ano. Ou seja, é um fato que levas de homens, mulheres e crianças reduzidos à condição de escravos após terem sido sequestrados em diferentes regiões do continente africano desembarcaram no Brasil ao longo de mais de 350 anos.

Contudo, precisamos fazer uso da produção historiográfica para destacar que, deste lado do Atlântico, eles protagonizaram situações sociais diversas que resultaram em mudanças de status; que tiveram na alforria o principal mecanismo de suas investidas para conquistar liberdades e autonomias.

A despeito da rigidez da estrutura escravista, e ainda que não tenhamos dados concretos, pode ser correto afirmar que o porcentual de escravizados no Brasil nos meses que antecederam a Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, fosse ainda mais reduzido. Fundamentalmente porque promover a emancipação dos escravizados de maneira “lenta e gradual” era o sentido da política abolicionista de D. Pedro II. Ainda que aquelas e aqueles que buscavam conquistar a liberdade fizessem outros cálculos!

Sabe-se que as alforrias – onerosa ou gratuita – deixaram de constituir um direito costumeiro e assumiram ares de legalidade com a Lei Rio Branco, assinada em 28 de setembro de 1871, um ano antes da divulgação dos dados recenseados aqui apresentados. Em minhas pesquisas, encontrei evidências de que africanos e seus descendentes – escravizados, libertos e livres – negociavam suas mãos de obra no mercado de trabalho assalariado que progressivamente ganhava corpo no Brasil dos anos finais do século XIX (1). Seguramente, ampliavam a possibilidade de depositar pecúlios para comprarem suas liberdades, ou de ajudar outros cativos a comprarem.

Com efeito, o pressuposto de que a mudança de condição social dos africanos e de seus descendentes que em nosso País experenciaram a escravidão tenha sido, em verdade, uma conquista dos próprios vem sendo propalado. E por muitos estudiosos das relações político-sociais brasileiras. Apontam para a possibilidade de uma outra interpretação da realidade que não guarda relação com a oferecida em meados do século passado por Gilberto Freyre; apresentam argumentos desenvolvidos a partir de uma mudança de paradigma que repensou os papéis sociais que tanto os africanos que chegaram aqui escravizados quanto os afrobrasileiros desempenharam na História do Brasil.

Não somente dados quantitativos, como o número de alforrias conquistadas pelos sujeitos escravizados, colaboram nas novas interpretações da História do Brasil. Ainda que não se possa chamar de uma “contranarrativa histórica”, desde os anos 1980, pesquisas refinadas – por reduzir a escala de observação do objeto; por levar em consideração novas fontes de pesquisas; por introduzir novos sujeitos nas análises - como as realizadas por historiadoras como Maria Helena Machado e Hebe Mattos ou por historiadores como Flávio dos Santos Gomes e Sidney Chalhoub[2] apresentaram evidências de que a violência do sistema escravista não transformou os escravizados em seres passivos e nem em receptores automáticos dos valores senhoriais.

Por um outro lado, também não os brutalizavam a ponto de serem “coisificados” ou de perderem a sua humanidade como proposto por Fernando Henrique Cardoso[3]. Eu venho buscando contribuir com os dados de minhas pesquisas que demonstram que também não foi retirada a capacidade de se integrarem ao moderno sistema capitalista e à sociedade de classes que o conformaria. Embora, mesmo após conquistarem a liberdade, tivessem de lidar com a prática de discriminação racial e a persistente submissão aos brancos que marcariam a relação da vida cotidiana[4].

Apesar do exposto, vale ressaltar que, ainda que pudessem ser negociadas, as conquistas escravas não evidenciavam relações harmônicas no interior de uma sociedade escravista. O que elas traziam à tona era a recusa dos escravizados de permanecerem enquanto tal. Para muitos que, mesmo na condição de escravizados, experimentavam “doses de liberdade”, conquistar a alforria era a principal etapa de projetos de vida, coletivos e individuais.

Ou seja, uma parcela significativa já compartilhavam experiências de trabalho com uma massa de trabalhadores, negros e não negros, que atuavam na formação de um mercado de trabalho que se constituía para atender as demandas de uma economia capitalista que ganhava uma forma específica diante da expansão econômica verificada à época no Brasil. o que projetavam era uma participação ativa na sociedade brasileira, com vista à mobilidade social ascendente[5]. E não apenas os que eram socialmente percebidos como “mulatos” – e ficaram na mira dos intérpretes tradicionais - tinham essas expectativas. Abundam exemplos nesse sentido nas produções acadêmicas atuais.

Não somente por força da obrigatoriedade da Lei 10.639/03, os educandos brasileiros de todos os níveis de escolaridade precisam aprender que, muito antes do deslizar da pena da Princesa Regente, um verdadeiro exército de homens e mulheres estava envolvido em vigorosas batalhas. Primeiro para reabilitar a humanidade de um povo, depois contra a “precariedade estrutural’' da liberdade conquistada.

Caso exemplar foi o do casal negro livre ou liberto Jerônimo da Motta Monteiro Lopes e Maria Egiphicíaca de Paula Lopes. Os novos intérpretes do Brasil vêm colocando em evidência o fato de um de seus filhos, Manoel da Motta Monteiro Lopes, ter sido o primeiro deputado federal autodeclarado negro do País. Antes de ser diplomado, o menino preto que nasceu na cidade do Recife, capital de Pernambuco, em 1867, seguindo o plano de mobilidade social entabulado pelos pais, formou-se pela Faculdade de Direito do Recife e atuou como Promotor Público no Amazonas.

Apesar do preciosismo desse resgate histórico, é importante destacar o projeto de uma família negra naquela sociedade escravista. No acesso dos filhos à educação superior foi depositada a expectativa do casal. Segundo Petrónio Domingues, Manoel da Motta Monteiro Lopes teve quatro irmãos: José Elias Monteiro Lopes, juiz de direito; João Clodoaldo Monteiro Lopes, advogado; Maria Júlia e Taciana Monteiro Lopes, professoras.

Mesmos aqueles trabalhadores africanos e afrodescendentes, contemporâneos da família Lopez, que não tiveram como acessar a educação formal, escravizados, libertos e livres; que no Império do Brasil compartilharam experiências de trabalho com sujeitos que possuíam outros marcadores raciais, levavam a cabo projetos de vida no sentido de formar famílias, adquirir moradia própria, qualificar sua mão de obra e aprender as “primeiras letras”.

O elevado números de manumissões deixa evidente que a liberdade estava no horizonte das expectativas dos escravizados e que eles buscavam colocar limite na escravidão. Para mais de um milhão e meio de libertos por força da Lei Áurea, certamente, o 13 de maio foi sim um marco. Mas vale destacar que as ações daquele exército de homens e mulheres que lutavam por sua liberdade e autonomia, e para resgatar sua humanidade, também colocavam em xeque a estrutura de uma sociedade escravista. Em uma outra possibilidade interpretativa, podemos sugerir que suas lutas tenham determinado o deslizar da pena histórica.

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[1] Santos, Lucimar Felisberto dos. (2011). “Doses” de liberdade: mercado de trabalho, ocupações e escolarização no Rio de Janeiro (1870-1888). Politeia - História E Sociedade, 9(1).

[2] CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. [1.ª ed. 1990]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 49.

[3] Uma crítica à teoria do “escravo coisa” conforme desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso, está em REIS, João José, “Escravo Coisa”. Jornal de Resenhas, Folha de São Paulo, 13 de setembro de 2003.

[4] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (1º vol.). São Paulo: Globo, 2008.

[5] SANTOS, Lucimar Felisberto dos. (2011). “Doses” de liberdade: mercado de trabalho, ocupações e escolarização no Rio de Janeiro (1870-1888). Politeia - História E Sociedade, 9(1).

Uma sociedade escravista com um reduzido número de escravizados. Qual seria o impacto de se descrever assim a sociedade brasileira dos anos finais do século XIX? Que tipo de reparo no mito que transformou a Princesa Isabel em uma monarca heroína, salvadora, libertadora e redentora seria possível?

Registra-se, ainda, que em 25 de março de 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, o médico e político Sátiro de Oliveira Dias, à frente do poder executivo provincial, extinguiu o regime de trabalho forçado no Ceará. Diante de novas narrativas da História do Brasil, parece fazer sentido o questionamento: como esses e outros fatos históricos fragilizam o entendimento da ação da Princesa Regente como um marco histórico fundamental na trajetória de vida da população negra no País?

A província do Ceará possuía um número muito reduzido de escravizados quando do ato político de Dias. O último Censo realizado no Império do Brasil, em 1872, apurou que apenas 4% da população daquela província era de escravizados.

Professora e historiadora Lucimar Felisberto afirma que luta dos escravizados por participação política começou antes da assinatura da Lei Áurea. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Havia 9.930.478 habitantes em todo território brasileiro, os dessa condição social eram da ordem de 15,2% da população, de acordo com os dados recenseados naquele ano. Ou seja, é um fato que levas de homens, mulheres e crianças reduzidos à condição de escravos após terem sido sequestrados em diferentes regiões do continente africano desembarcaram no Brasil ao longo de mais de 350 anos.

Contudo, precisamos fazer uso da produção historiográfica para destacar que, deste lado do Atlântico, eles protagonizaram situações sociais diversas que resultaram em mudanças de status; que tiveram na alforria o principal mecanismo de suas investidas para conquistar liberdades e autonomias.

A despeito da rigidez da estrutura escravista, e ainda que não tenhamos dados concretos, pode ser correto afirmar que o porcentual de escravizados no Brasil nos meses que antecederam a Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, fosse ainda mais reduzido. Fundamentalmente porque promover a emancipação dos escravizados de maneira “lenta e gradual” era o sentido da política abolicionista de D. Pedro II. Ainda que aquelas e aqueles que buscavam conquistar a liberdade fizessem outros cálculos!

Sabe-se que as alforrias – onerosa ou gratuita – deixaram de constituir um direito costumeiro e assumiram ares de legalidade com a Lei Rio Branco, assinada em 28 de setembro de 1871, um ano antes da divulgação dos dados recenseados aqui apresentados. Em minhas pesquisas, encontrei evidências de que africanos e seus descendentes – escravizados, libertos e livres – negociavam suas mãos de obra no mercado de trabalho assalariado que progressivamente ganhava corpo no Brasil dos anos finais do século XIX (1). Seguramente, ampliavam a possibilidade de depositar pecúlios para comprarem suas liberdades, ou de ajudar outros cativos a comprarem.

Com efeito, o pressuposto de que a mudança de condição social dos africanos e de seus descendentes que em nosso País experenciaram a escravidão tenha sido, em verdade, uma conquista dos próprios vem sendo propalado. E por muitos estudiosos das relações político-sociais brasileiras. Apontam para a possibilidade de uma outra interpretação da realidade que não guarda relação com a oferecida em meados do século passado por Gilberto Freyre; apresentam argumentos desenvolvidos a partir de uma mudança de paradigma que repensou os papéis sociais que tanto os africanos que chegaram aqui escravizados quanto os afrobrasileiros desempenharam na História do Brasil.

Não somente dados quantitativos, como o número de alforrias conquistadas pelos sujeitos escravizados, colaboram nas novas interpretações da História do Brasil. Ainda que não se possa chamar de uma “contranarrativa histórica”, desde os anos 1980, pesquisas refinadas – por reduzir a escala de observação do objeto; por levar em consideração novas fontes de pesquisas; por introduzir novos sujeitos nas análises - como as realizadas por historiadoras como Maria Helena Machado e Hebe Mattos ou por historiadores como Flávio dos Santos Gomes e Sidney Chalhoub[2] apresentaram evidências de que a violência do sistema escravista não transformou os escravizados em seres passivos e nem em receptores automáticos dos valores senhoriais.

Por um outro lado, também não os brutalizavam a ponto de serem “coisificados” ou de perderem a sua humanidade como proposto por Fernando Henrique Cardoso[3]. Eu venho buscando contribuir com os dados de minhas pesquisas que demonstram que também não foi retirada a capacidade de se integrarem ao moderno sistema capitalista e à sociedade de classes que o conformaria. Embora, mesmo após conquistarem a liberdade, tivessem de lidar com a prática de discriminação racial e a persistente submissão aos brancos que marcariam a relação da vida cotidiana[4].

Apesar do exposto, vale ressaltar que, ainda que pudessem ser negociadas, as conquistas escravas não evidenciavam relações harmônicas no interior de uma sociedade escravista. O que elas traziam à tona era a recusa dos escravizados de permanecerem enquanto tal. Para muitos que, mesmo na condição de escravizados, experimentavam “doses de liberdade”, conquistar a alforria era a principal etapa de projetos de vida, coletivos e individuais.

Ou seja, uma parcela significativa já compartilhavam experiências de trabalho com uma massa de trabalhadores, negros e não negros, que atuavam na formação de um mercado de trabalho que se constituía para atender as demandas de uma economia capitalista que ganhava uma forma específica diante da expansão econômica verificada à época no Brasil. o que projetavam era uma participação ativa na sociedade brasileira, com vista à mobilidade social ascendente[5]. E não apenas os que eram socialmente percebidos como “mulatos” – e ficaram na mira dos intérpretes tradicionais - tinham essas expectativas. Abundam exemplos nesse sentido nas produções acadêmicas atuais.

Não somente por força da obrigatoriedade da Lei 10.639/03, os educandos brasileiros de todos os níveis de escolaridade precisam aprender que, muito antes do deslizar da pena da Princesa Regente, um verdadeiro exército de homens e mulheres estava envolvido em vigorosas batalhas. Primeiro para reabilitar a humanidade de um povo, depois contra a “precariedade estrutural’' da liberdade conquistada.

Caso exemplar foi o do casal negro livre ou liberto Jerônimo da Motta Monteiro Lopes e Maria Egiphicíaca de Paula Lopes. Os novos intérpretes do Brasil vêm colocando em evidência o fato de um de seus filhos, Manoel da Motta Monteiro Lopes, ter sido o primeiro deputado federal autodeclarado negro do País. Antes de ser diplomado, o menino preto que nasceu na cidade do Recife, capital de Pernambuco, em 1867, seguindo o plano de mobilidade social entabulado pelos pais, formou-se pela Faculdade de Direito do Recife e atuou como Promotor Público no Amazonas.

Apesar do preciosismo desse resgate histórico, é importante destacar o projeto de uma família negra naquela sociedade escravista. No acesso dos filhos à educação superior foi depositada a expectativa do casal. Segundo Petrónio Domingues, Manoel da Motta Monteiro Lopes teve quatro irmãos: José Elias Monteiro Lopes, juiz de direito; João Clodoaldo Monteiro Lopes, advogado; Maria Júlia e Taciana Monteiro Lopes, professoras.

Mesmos aqueles trabalhadores africanos e afrodescendentes, contemporâneos da família Lopez, que não tiveram como acessar a educação formal, escravizados, libertos e livres; que no Império do Brasil compartilharam experiências de trabalho com sujeitos que possuíam outros marcadores raciais, levavam a cabo projetos de vida no sentido de formar famílias, adquirir moradia própria, qualificar sua mão de obra e aprender as “primeiras letras”.

O elevado números de manumissões deixa evidente que a liberdade estava no horizonte das expectativas dos escravizados e que eles buscavam colocar limite na escravidão. Para mais de um milhão e meio de libertos por força da Lei Áurea, certamente, o 13 de maio foi sim um marco. Mas vale destacar que as ações daquele exército de homens e mulheres que lutavam por sua liberdade e autonomia, e para resgatar sua humanidade, também colocavam em xeque a estrutura de uma sociedade escravista. Em uma outra possibilidade interpretativa, podemos sugerir que suas lutas tenham determinado o deslizar da pena histórica.

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[1] Santos, Lucimar Felisberto dos. (2011). “Doses” de liberdade: mercado de trabalho, ocupações e escolarização no Rio de Janeiro (1870-1888). Politeia - História E Sociedade, 9(1).

[2] CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. [1.ª ed. 1990]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 49.

[3] Uma crítica à teoria do “escravo coisa” conforme desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso, está em REIS, João José, “Escravo Coisa”. Jornal de Resenhas, Folha de São Paulo, 13 de setembro de 2003.

[4] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (1º vol.). São Paulo: Globo, 2008.

[5] SANTOS, Lucimar Felisberto dos. (2011). “Doses” de liberdade: mercado de trabalho, ocupações e escolarização no Rio de Janeiro (1870-1888). Politeia - História E Sociedade, 9(1).

Opinião por Lucimar Felisberto

Historiadora, membro da Rede de Historiadorxs Negrxs, professora, comunicadora social da Plataforma Educacional Afrodiálogos e coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNURJ)

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