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Opinião|Como equilibrar a ética, a competitividade tecnológica e a liberdade de expressão


Por Paulo Silvestre
Para Kant (esquerda), não se pode ser imoral, mesmo para um bom fim; já Maquiavel defendia que o fim justifica os meios - Foto: reproduções

Estamos chegando ao final de um ano em que o debate sobre o equilíbrio entre a ética, a competitividade tecnológica e a liberdade de expressão ganhou novos contornos com o avanço da inteligência artificial, de práticas questionáveis das big techs e com as discussões em torno do Marco Civil da Internet. Enfrentamos uma grande dificuldade para encontrar um caminho razoável para, ao mesmo tempo, proteger as pessoas da voracidade irresponsável das plataformas digitais, evitar a censura, fazer um uso seguro da tecnologia e garantir a competitividade pessoal, nos negócios e até de nações, em uma geopolítica cada vez mais determinada pela tecnologia.

Esse é um dos grandes desafios dessa geração, pois a sociedade não está conseguindo processar as mudanças na velocidade em que estão sendo impostas. Insistimos em medir essa transformação com réguas que foram criadas para um mundo que já não existe. Esse é um processo fadado ao fracasso!

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O exemplo mais claro é o impacto social das casas de aposta online, as infames "bets". Elas crescem exponencialmente no mundo todo, mas no Brasil se tornaram um problema de saúde pública, com pessoas perdendo economias de uma vida e indivíduos das camadas mais pobres gastando o dinheiro da comida na jogatina.

Alguns podem dizer que "aposta quem quiser". Só que atribuir toda a culpa ao livre arbítrio é um reducionismo de tudo que se discute aqui. A facilidade de se apostar pelo smartphone fica irresistível com a influência dos algoritmos dessas plataformas, com a promessa mentirosa de ganhos fáceis (ampliada por influenciadores pagos), com a interface gamificada e até com um senso de pertencimento no grupo de amigos apostadores.

Em outras palavras, nosso livre arbítrio é manipulado pelas mais diversas plataformas digitais, e engana-se quem acredita ser totalmente imune a isso. A sedução digital insidiosa vence mesmo mentes afiadas, em algum momento. É disso que temos que tratar, sem perder os inegáveis benefícios da tecnologia ou ferir direitos fundamentais.

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Agora o Supremo Tribunal Federal (STF) debate a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. "Inconstitucionalidade" é uma palavra forte, mas não me parece ser o caso do referido artigo. Ainda assim, os votos já dados por ministros do STF indicam que ele acabará sendo classificado dessa forma.

Historicamente, defendo o artigo 19. Ele determina que cada um seja responsável pelo que publica nas plataformas digitais, que elas não sejam corresponsáveis por isso, e que elas devem retirar do ar apenas conteúdos que a Justiça tenha julgado ofensivos. Já o artigo 21 abre uma exceção para conteúdo com nudez ou sexo não autorizados, quando basta uma notificação extrajudicial para que as redes sejam obrigadas a remover a publicação. Essa combinação de artigos valoriza a liberdade de expressão.

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Não há dúvida sobre qualquer um ser responsável, para o bem e para o mal, pelo que publica na Internet. Mas há uma simplificação muito grande sobre o papel das empresas. Elas já retiram sumariamente o que consideram inadequado seguindo seus critérios, muitas vezes questionáveis. O processo ocorre majoritariamente de forma automática, e seus algoritmos erram muito na sua decisão, tanto ao retirar conteúdos legítimos, quanto ao preservar outros, que ferem leis e seus próprios termos de uso.

As plataformas oferecem sistemas de denúncia contra conteúdos inadequados, mas eles são muito falhos. Eu mesmo já fui vítima de diversos delitos digitais, como discurso de ódio e roubo de conteúdo. Sempre utilizo essas ferramentas de denúncia, mas é muito raro que isso produza qualquer resultado.

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Pela redação do artigo 19, eu e pessoas vítimas de afrontas online muito mais graves precisamos entrar na Justiça para nos defender, um processo complexo, caro e muito longo. Enquanto isso, o problema continuará no ar, infligindo severos danos. Como as plataformas ficarão isentas, não farão nada, apesar de viabilizarem o crime.

Em sua defesa, elas argumentam que, se tomarem para si a decisão de o que pode ser publicado, correm o risco de promover censura. O argumento é verdadeiro, mas é cínico, pois as mesmas plataformas promovem ostensivamente conteúdos claramente nocivos, pois são os que lhes rendem maiores ganhos. E nada lhes acontece!

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Esse é o tipo de conflito que esses tempos digitalmente acelerados nos impõem.

 

A superinteligência digital

Esse debate também se aplica à inteligência artificial.

Na sexta (20), a OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou o OpenAI o3, seu novo modelo de IA, com capacidades cognitivas ainda mais impressionantes. A empresa não mede esforços em incensar seus novos produtos como passos em direção à Inteligência Artificial Geral, um estágio teórico em que o sistema deixaria de ser especializado em uma coisa e passaria a pensar como um ser humano, dispensando comandos e sendo capaz de resolver qualquer coisa sem ter sido criado para aquilo, de pintar um quadro a dirigir um carro. Algumas pessoas afirmam que o o3 seria algo ainda maior: o caminho para a superinteligência artificial, um conceito teórico ainda mais ousado, em que a máquina superaria largamente as capacidades humanas em qualquer área.

Todos esses holofotes são ótimos para os negócios da OpenAI, que lidera essa indústria, mas sofre forte concorrência de empresas como o Google e a Anthropic. Mas mostra também que essas empresas parecem dispostas a acelerar contra uma parede, se isso lhes garantir o protagonismo nessas tecnologias.

Alguns dos maiores especialistas do setor, como Geoffrey Hinton, considerado o "padrinho da IA", demonstram sérias preocupações com isso. Alguns afirmam que nunca chegaremos a esse estágio tecnológico, mas o maior temor é que percamos o controle desses sistemas, que passariam a se autoatualizar seguindo seus interesses, e não mais os da humanidade, algo conhecido no setor como "desalinhamento".

Caímos novamente na questão de regulações. Como de costume, a Europa saiu na frente, com sua Lei da Inteligência Artificial, focada em proteger os cidadãos de maus usos dessa tecnologia e de abusos de empresas e de governos.

Muita gente acredita que ela reduzirá a competitividade do continente cada vez mais, especialmente diante de nações que regulam pouco ou nada a IA, como a China. No caso dos EUA, há uma grande expectativa de como o país se comportará nisso com o início, em janeiro, do segundo mandato presidencial de Donald Trump, fortemente influenciado pelo libertário Elon Musk, publicamente contrário a regulamentações.

A verdade é que ninguém sabe como equilibrar a ética, a competitividade e os direitos individuais nessa corrida desenfreada e irresponsável da tecnologia. Ela naturalmente deve continuar sendo desenvolvida e precisamos aprender a fazer usos produtivos dela. Mas isso não pode passar por cima da segurança e do bem-estar das pessoas.

O mundo atual vem sendo guiado por princípios do filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527), que defendia que o sucesso e a manutenção do poder justificariam os métodos empregados, mesmo imorais, desde que fossem eficazes. Mas talvez devêssemos olhar mais para as ideias de outro filósofo, Immanuel Kant (1724-1804). Para ele, mentir ou agir imoralmente nunca é justificável, mesmo para alcançar um bom fim.

Temos que fazer isso logo, antes que a sociedade se esfacele irreversivelmente.

 

Para Kant (esquerda), não se pode ser imoral, mesmo para um bom fim; já Maquiavel defendia que o fim justifica os meios - Foto: reproduções

Estamos chegando ao final de um ano em que o debate sobre o equilíbrio entre a ética, a competitividade tecnológica e a liberdade de expressão ganhou novos contornos com o avanço da inteligência artificial, de práticas questionáveis das big techs e com as discussões em torno do Marco Civil da Internet. Enfrentamos uma grande dificuldade para encontrar um caminho razoável para, ao mesmo tempo, proteger as pessoas da voracidade irresponsável das plataformas digitais, evitar a censura, fazer um uso seguro da tecnologia e garantir a competitividade pessoal, nos negócios e até de nações, em uma geopolítica cada vez mais determinada pela tecnologia.

Esse é um dos grandes desafios dessa geração, pois a sociedade não está conseguindo processar as mudanças na velocidade em que estão sendo impostas. Insistimos em medir essa transformação com réguas que foram criadas para um mundo que já não existe. Esse é um processo fadado ao fracasso!

O exemplo mais claro é o impacto social das casas de aposta online, as infames "bets". Elas crescem exponencialmente no mundo todo, mas no Brasil se tornaram um problema de saúde pública, com pessoas perdendo economias de uma vida e indivíduos das camadas mais pobres gastando o dinheiro da comida na jogatina.

Alguns podem dizer que "aposta quem quiser". Só que atribuir toda a culpa ao livre arbítrio é um reducionismo de tudo que se discute aqui. A facilidade de se apostar pelo smartphone fica irresistível com a influência dos algoritmos dessas plataformas, com a promessa mentirosa de ganhos fáceis (ampliada por influenciadores pagos), com a interface gamificada e até com um senso de pertencimento no grupo de amigos apostadores.

Em outras palavras, nosso livre arbítrio é manipulado pelas mais diversas plataformas digitais, e engana-se quem acredita ser totalmente imune a isso. A sedução digital insidiosa vence mesmo mentes afiadas, em algum momento. É disso que temos que tratar, sem perder os inegáveis benefícios da tecnologia ou ferir direitos fundamentais.

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Agora o Supremo Tribunal Federal (STF) debate a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. "Inconstitucionalidade" é uma palavra forte, mas não me parece ser o caso do referido artigo. Ainda assim, os votos já dados por ministros do STF indicam que ele acabará sendo classificado dessa forma.

Historicamente, defendo o artigo 19. Ele determina que cada um seja responsável pelo que publica nas plataformas digitais, que elas não sejam corresponsáveis por isso, e que elas devem retirar do ar apenas conteúdos que a Justiça tenha julgado ofensivos. Já o artigo 21 abre uma exceção para conteúdo com nudez ou sexo não autorizados, quando basta uma notificação extrajudicial para que as redes sejam obrigadas a remover a publicação. Essa combinação de artigos valoriza a liberdade de expressão.

Não há dúvida sobre qualquer um ser responsável, para o bem e para o mal, pelo que publica na Internet. Mas há uma simplificação muito grande sobre o papel das empresas. Elas já retiram sumariamente o que consideram inadequado seguindo seus critérios, muitas vezes questionáveis. O processo ocorre majoritariamente de forma automática, e seus algoritmos erram muito na sua decisão, tanto ao retirar conteúdos legítimos, quanto ao preservar outros, que ferem leis e seus próprios termos de uso.

As plataformas oferecem sistemas de denúncia contra conteúdos inadequados, mas eles são muito falhos. Eu mesmo já fui vítima de diversos delitos digitais, como discurso de ódio e roubo de conteúdo. Sempre utilizo essas ferramentas de denúncia, mas é muito raro que isso produza qualquer resultado.

Pela redação do artigo 19, eu e pessoas vítimas de afrontas online muito mais graves precisamos entrar na Justiça para nos defender, um processo complexo, caro e muito longo. Enquanto isso, o problema continuará no ar, infligindo severos danos. Como as plataformas ficarão isentas, não farão nada, apesar de viabilizarem o crime.

Em sua defesa, elas argumentam que, se tomarem para si a decisão de o que pode ser publicado, correm o risco de promover censura. O argumento é verdadeiro, mas é cínico, pois as mesmas plataformas promovem ostensivamente conteúdos claramente nocivos, pois são os que lhes rendem maiores ganhos. E nada lhes acontece!

Esse é o tipo de conflito que esses tempos digitalmente acelerados nos impõem.

 

A superinteligência digital

Esse debate também se aplica à inteligência artificial.

Na sexta (20), a OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou o OpenAI o3, seu novo modelo de IA, com capacidades cognitivas ainda mais impressionantes. A empresa não mede esforços em incensar seus novos produtos como passos em direção à Inteligência Artificial Geral, um estágio teórico em que o sistema deixaria de ser especializado em uma coisa e passaria a pensar como um ser humano, dispensando comandos e sendo capaz de resolver qualquer coisa sem ter sido criado para aquilo, de pintar um quadro a dirigir um carro. Algumas pessoas afirmam que o o3 seria algo ainda maior: o caminho para a superinteligência artificial, um conceito teórico ainda mais ousado, em que a máquina superaria largamente as capacidades humanas em qualquer área.

Todos esses holofotes são ótimos para os negócios da OpenAI, que lidera essa indústria, mas sofre forte concorrência de empresas como o Google e a Anthropic. Mas mostra também que essas empresas parecem dispostas a acelerar contra uma parede, se isso lhes garantir o protagonismo nessas tecnologias.

Alguns dos maiores especialistas do setor, como Geoffrey Hinton, considerado o "padrinho da IA", demonstram sérias preocupações com isso. Alguns afirmam que nunca chegaremos a esse estágio tecnológico, mas o maior temor é que percamos o controle desses sistemas, que passariam a se autoatualizar seguindo seus interesses, e não mais os da humanidade, algo conhecido no setor como "desalinhamento".

Caímos novamente na questão de regulações. Como de costume, a Europa saiu na frente, com sua Lei da Inteligência Artificial, focada em proteger os cidadãos de maus usos dessa tecnologia e de abusos de empresas e de governos.

Muita gente acredita que ela reduzirá a competitividade do continente cada vez mais, especialmente diante de nações que regulam pouco ou nada a IA, como a China. No caso dos EUA, há uma grande expectativa de como o país se comportará nisso com o início, em janeiro, do segundo mandato presidencial de Donald Trump, fortemente influenciado pelo libertário Elon Musk, publicamente contrário a regulamentações.

A verdade é que ninguém sabe como equilibrar a ética, a competitividade e os direitos individuais nessa corrida desenfreada e irresponsável da tecnologia. Ela naturalmente deve continuar sendo desenvolvida e precisamos aprender a fazer usos produtivos dela. Mas isso não pode passar por cima da segurança e do bem-estar das pessoas.

O mundo atual vem sendo guiado por princípios do filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527), que defendia que o sucesso e a manutenção do poder justificariam os métodos empregados, mesmo imorais, desde que fossem eficazes. Mas talvez devêssemos olhar mais para as ideias de outro filósofo, Immanuel Kant (1724-1804). Para ele, mentir ou agir imoralmente nunca é justificável, mesmo para alcançar um bom fim.

Temos que fazer isso logo, antes que a sociedade se esfacele irreversivelmente.

 

Para Kant (esquerda), não se pode ser imoral, mesmo para um bom fim; já Maquiavel defendia que o fim justifica os meios - Foto: reproduções

Estamos chegando ao final de um ano em que o debate sobre o equilíbrio entre a ética, a competitividade tecnológica e a liberdade de expressão ganhou novos contornos com o avanço da inteligência artificial, de práticas questionáveis das big techs e com as discussões em torno do Marco Civil da Internet. Enfrentamos uma grande dificuldade para encontrar um caminho razoável para, ao mesmo tempo, proteger as pessoas da voracidade irresponsável das plataformas digitais, evitar a censura, fazer um uso seguro da tecnologia e garantir a competitividade pessoal, nos negócios e até de nações, em uma geopolítica cada vez mais determinada pela tecnologia.

Esse é um dos grandes desafios dessa geração, pois a sociedade não está conseguindo processar as mudanças na velocidade em que estão sendo impostas. Insistimos em medir essa transformação com réguas que foram criadas para um mundo que já não existe. Esse é um processo fadado ao fracasso!

O exemplo mais claro é o impacto social das casas de aposta online, as infames "bets". Elas crescem exponencialmente no mundo todo, mas no Brasil se tornaram um problema de saúde pública, com pessoas perdendo economias de uma vida e indivíduos das camadas mais pobres gastando o dinheiro da comida na jogatina.

Alguns podem dizer que "aposta quem quiser". Só que atribuir toda a culpa ao livre arbítrio é um reducionismo de tudo que se discute aqui. A facilidade de se apostar pelo smartphone fica irresistível com a influência dos algoritmos dessas plataformas, com a promessa mentirosa de ganhos fáceis (ampliada por influenciadores pagos), com a interface gamificada e até com um senso de pertencimento no grupo de amigos apostadores.

Em outras palavras, nosso livre arbítrio é manipulado pelas mais diversas plataformas digitais, e engana-se quem acredita ser totalmente imune a isso. A sedução digital insidiosa vence mesmo mentes afiadas, em algum momento. É disso que temos que tratar, sem perder os inegáveis benefícios da tecnologia ou ferir direitos fundamentais.

Veja esse artigo em vídeo:

Agora o Supremo Tribunal Federal (STF) debate a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. "Inconstitucionalidade" é uma palavra forte, mas não me parece ser o caso do referido artigo. Ainda assim, os votos já dados por ministros do STF indicam que ele acabará sendo classificado dessa forma.

Historicamente, defendo o artigo 19. Ele determina que cada um seja responsável pelo que publica nas plataformas digitais, que elas não sejam corresponsáveis por isso, e que elas devem retirar do ar apenas conteúdos que a Justiça tenha julgado ofensivos. Já o artigo 21 abre uma exceção para conteúdo com nudez ou sexo não autorizados, quando basta uma notificação extrajudicial para que as redes sejam obrigadas a remover a publicação. Essa combinação de artigos valoriza a liberdade de expressão.

Não há dúvida sobre qualquer um ser responsável, para o bem e para o mal, pelo que publica na Internet. Mas há uma simplificação muito grande sobre o papel das empresas. Elas já retiram sumariamente o que consideram inadequado seguindo seus critérios, muitas vezes questionáveis. O processo ocorre majoritariamente de forma automática, e seus algoritmos erram muito na sua decisão, tanto ao retirar conteúdos legítimos, quanto ao preservar outros, que ferem leis e seus próprios termos de uso.

As plataformas oferecem sistemas de denúncia contra conteúdos inadequados, mas eles são muito falhos. Eu mesmo já fui vítima de diversos delitos digitais, como discurso de ódio e roubo de conteúdo. Sempre utilizo essas ferramentas de denúncia, mas é muito raro que isso produza qualquer resultado.

Pela redação do artigo 19, eu e pessoas vítimas de afrontas online muito mais graves precisamos entrar na Justiça para nos defender, um processo complexo, caro e muito longo. Enquanto isso, o problema continuará no ar, infligindo severos danos. Como as plataformas ficarão isentas, não farão nada, apesar de viabilizarem o crime.

Em sua defesa, elas argumentam que, se tomarem para si a decisão de o que pode ser publicado, correm o risco de promover censura. O argumento é verdadeiro, mas é cínico, pois as mesmas plataformas promovem ostensivamente conteúdos claramente nocivos, pois são os que lhes rendem maiores ganhos. E nada lhes acontece!

Esse é o tipo de conflito que esses tempos digitalmente acelerados nos impõem.

 

A superinteligência digital

Esse debate também se aplica à inteligência artificial.

Na sexta (20), a OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou o OpenAI o3, seu novo modelo de IA, com capacidades cognitivas ainda mais impressionantes. A empresa não mede esforços em incensar seus novos produtos como passos em direção à Inteligência Artificial Geral, um estágio teórico em que o sistema deixaria de ser especializado em uma coisa e passaria a pensar como um ser humano, dispensando comandos e sendo capaz de resolver qualquer coisa sem ter sido criado para aquilo, de pintar um quadro a dirigir um carro. Algumas pessoas afirmam que o o3 seria algo ainda maior: o caminho para a superinteligência artificial, um conceito teórico ainda mais ousado, em que a máquina superaria largamente as capacidades humanas em qualquer área.

Todos esses holofotes são ótimos para os negócios da OpenAI, que lidera essa indústria, mas sofre forte concorrência de empresas como o Google e a Anthropic. Mas mostra também que essas empresas parecem dispostas a acelerar contra uma parede, se isso lhes garantir o protagonismo nessas tecnologias.

Alguns dos maiores especialistas do setor, como Geoffrey Hinton, considerado o "padrinho da IA", demonstram sérias preocupações com isso. Alguns afirmam que nunca chegaremos a esse estágio tecnológico, mas o maior temor é que percamos o controle desses sistemas, que passariam a se autoatualizar seguindo seus interesses, e não mais os da humanidade, algo conhecido no setor como "desalinhamento".

Caímos novamente na questão de regulações. Como de costume, a Europa saiu na frente, com sua Lei da Inteligência Artificial, focada em proteger os cidadãos de maus usos dessa tecnologia e de abusos de empresas e de governos.

Muita gente acredita que ela reduzirá a competitividade do continente cada vez mais, especialmente diante de nações que regulam pouco ou nada a IA, como a China. No caso dos EUA, há uma grande expectativa de como o país se comportará nisso com o início, em janeiro, do segundo mandato presidencial de Donald Trump, fortemente influenciado pelo libertário Elon Musk, publicamente contrário a regulamentações.

A verdade é que ninguém sabe como equilibrar a ética, a competitividade e os direitos individuais nessa corrida desenfreada e irresponsável da tecnologia. Ela naturalmente deve continuar sendo desenvolvida e precisamos aprender a fazer usos produtivos dela. Mas isso não pode passar por cima da segurança e do bem-estar das pessoas.

O mundo atual vem sendo guiado por princípios do filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527), que defendia que o sucesso e a manutenção do poder justificariam os métodos empregados, mesmo imorais, desde que fossem eficazes. Mas talvez devêssemos olhar mais para as ideias de outro filósofo, Immanuel Kant (1724-1804). Para ele, mentir ou agir imoralmente nunca é justificável, mesmo para alcançar um bom fim.

Temos que fazer isso logo, antes que a sociedade se esfacele irreversivelmente.

 

Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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