Mãe escolheu o nome Miguel Otávio porque queria o filho doutor


A história do menino de 5 anos que foi deixado sozinho no elevador de um prédio de luxo, no centro do Recife, e morreu ao cair de uma altura de 35 metros

Por Felipe Resk

RECIFE - Negra, de família pobre e com o currículo recheado de trabalhos braçais, Mirtes explica por qual motivo decidiu batizar o único filho de Miguel Otávio: “Queria um nome bonito e forte. A melhor opção era um dos arcanjos da Bíblia, mas aí já tinha um Gabriel na família”, conta ao Estadão. “O complemento é porque, na minha cabeça, tinha de combinar com ‘doutor’. Já imaginava ele como médico, advogado ou engenheiro: doutor Miguel Otávio.”

Miguel, a mãe (d) e avó (e) Foto: Mirtes Souza/arquivo pessoal

A dor da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, de 33 anos, é saber que, em vez do futuro de prosperidade, o filho se tornou uma espécie de símbolo do passado insistente do Brasil. Entregue aos cuidados da patroa Sarí Gaspar Corte Real, o menino teria tentado encontrar com a mãe e acabou sendo deixado sozinho no elevador de um prédio de luxo, no centro do Recife. A história termina com a criança despencando do nono andar, a uma altura de 35 metros, em circunstâncias que ainda precisam ser esclarecidas. Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu antes mesmo de aprender a escrever muita coisa além do próprio nome.

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A tragédia aconteceu no dia 2 de junho, curiosamente o aniversário de cinco anos da lei que regulamentou o trabalho doméstico no País, e gerou debates sobre racismo estrutural, patrimonialismo e impunidade. Com o mote #JustiçaParaMiguel, manifestantes também protestaram em frente ao condomínio, jocosamente conhecido no Recife como “Torres Gêmeas”.

Naquele dia, Mirtes não havia sido liberada do serviço mesmo em meio à pandemia do coronavírus. À tarde, precisou sair de uniforme para dar uma volta na praça com Mel, a buldogue da patroa, enquanto Sarí fazia as unhas com a manicure no apartamento. O passeio foi curto: não mais do que 15 minutos. O suficiente para que, ao voltar, encontrasse Miguel Otávio estatelado no chão.

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Extrovertido e de sorriso marcante, Miguel Otávio, de 5

“Ela confiava os filhos dela a mim de olhos fechados. Na primeira vez que ficou responsável por Miguel, entregou meu filho todo quebrado por dentro… Se fosse o contrário, ela estaria muito revoltada, ia fazer com que eu pagasse: eu estaria presa e apanhando todo dia na cadeia”, afirma a mãe. “Ela acabou com a minha vida, meus planos, meu futuro.”

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Silva

Com quadro de hipertensão gestacional, Mirtes sabia que o parto seria de risco. Por isso, pegou uma condução em Orobó, cidadezinha de 23 mil habitantes na divisa entre Pernambuco e a Paraíba, onde morava na ocasião, e viajou por 77 quilômetros para dar à luz em Vitória de Santo Antão, a meio caminho da capital, município com maternidades melhor equipadas.

Mãe de primeira viagem, a jovem resistiu ao bisturi o quanto pôde. Depois de horas de trabalho de parto, sentindo a dor das contrações e com a pressão subindo sem parar, foi convencida pelos médicos de que o perigo para o filho chegaria antes de ela ter dilatação suficiente.

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Miguel queria ser policial e gostava de abordar os agentes para tirar foto Foto: Mirtes Souza

Miguel Otávio veio ao mundo às 7h42 do dia 17 de novembro de 2014, com 52 centímetros e 4.350 gramas. Sem disfarçar uma pontada de orgulho, a mãe recorda que as medidas deixaram uma enfermeira boquiaberta: “Meu Deus do céu, olha o tamanho dessa criança! E tu ainda queria ter parto normal, mulher?!”.

O menino é fruto de uma relação de Mirtes com um ex-colega de trabalho. À época, ela havia sido contratada como carpinteira por uma empresa que dizia querer promover mulheres na construção civil, relata. “Conheci o pai de Miguel Otávio trabalhando nas obras. Eu engravidei oito meses depois de a gente começar a namorar.”

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Os dois chegaram a casar e foram morar no interior. Ao nascimento do filho, no entanto, a jovem já estava desempregada. Ela e outras colegas haviam sido demitidas de baciada após a construtora decidir encerrar a campanha de igualdade de gênero, segundo conta.

Na vida de Mirtes, “doutor” sempre foram os outros. Filha de uma faxineira com um vendedor de rua, ela nasceu no Alto José do Pinho, uma das maiores favelas do Recife, e morou ao longo da vida por casas da região metropolitana e do agreste. Todas na periferia. Com curso técnico de segurança do trabalho inacabado, só concluiu os estudos até o ensino médio.

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Hoje separada, Mirtes mora na casa da mãe, a Martinha, no bairro do Barro, na zona oeste da capital, onde, a depender da operadora, nem sinal de celular funciona direito. Começou a trabalhar para Sarí há mais de três anos, desde então a rotina de segunda a sábado era levantar da cama às 5h30, deixar o filho em um hotelzinho perto de casa e gastar mais de uma hora no transporte público para ir, e outra para voltar. 

Miguel e Sueli Caminho, dona do hotelzinho onde ele ficava Foto: Sueli Camilo/arquivo pessoal

Descanso aos domingos? Que nada, era o dia de ajudar o pai no parque aquático e tirar o extra que bancava presentes e festa de aniversário de Miguel Otávio. "Podia faltar as coisas para mim, mas para o meu filho nunca. Se precisasse comprar, eu passava no cartão com as parcelas a perder de vista."

Quem o conhece de recém-nascido diz que o menino era “cheio de energia, como toda criança.” “Não vê as fotos? Aquele sorriso era 24 horas por dia. Ele podia estar trelando como fosse, mas estava sorrindo. Eu nunca vou esquecer disso”, diz Sueli Camilo, a “Vovó Sueli”, de 50 anos, que é proprietária do Cantinho Feliz. Antes da pandemia, era no hotelzinho que o garoto ficava a partir das 6 horas até mãe buscá-lo no fim da tarde.

Sueli conta que fazia questão de separar as coxas de frango, a carne preferida de Miguel Otávio, na hora da refeição. “Ele não dava trabalho para almoçar. Feijão, verdurinha… Comia de tudo”, lembra. Também guarda lembranças do menino aprendendo a andar de bicicleta e de como ele não via problema em dividir os brinquedos com os amigos.

Mirtes ainda não conseguiu recolher os dois patinetes e a bicicleta de Miguel Otávio que ficaram espalhados pela casa. À noite, diz, é quando a saudade aperta mais. “Ele sempre vinha deitar comigo na cama, gostava da quenturinha de mainha, e me colocava para dormir. Sempre dormia depois de mim”, descreve. “Agora, eu olho para a rua, vejo um monte de menino jogando bola, mas o meu filho não está mais lá.”

Outra dificuldade, desabafa, tem sido manter o sorriso Miguel Otávio vivo na memória. “Só quando abro as fotos no celular é que, de fato, consigo me lembrar dos momentos felizes”, diz. “Se eu estiver parada, pensando na minha, a única imagem que fica vindo na cabeça é aquela cena do meu filho caído no chão.”

Em um vídeo gravado recentemente, Miguel Otávio aparece banguela aprendendo a rezar o pai-nosso. Aparentando timidez, ele vai engolindo algumas palavras da oração, soprada por um adulto, até que se empolga quando chega ao fim: “Um abraço a todos!” 

Corte Real

Foi só após a repercussão do caso Miguel Otávio que veio à tona a informação de que Mirtes, Martinha e uma funcionária da casa de praia da família Corte Real estavam registradas como servidoras municipais de Tamandaré, embora fossem, na prática, empregadas domésticas do casal. O caso é alvo de investigação do Tribunal de Contas e do Ministério Público Estadual, embora o prefeito diga que vai prestar contas aos órgãos competentes.

De acordo com funcionários, Sérgio Hacker costuma ficar de segunda a sexta em Tamandaré, mas volta na maior parte dos fins de semana para o Recife, a duas horas de distância do seu endereço eleitoral. Já Sarí e os dois filhos do casal, ambos crianças menores de 7 anos, ficam nas Torres Gêmeas, onde o aluguel de um apartamento de 247 m² chega a custar R$ 9 mil.

Erguidos em área de patrimônio histórico, os prédios foram contestados pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2005. Dez anos depois, também ficaram marcados pelo episódio da “chuva de dinheiro” - quando algum morador arremessou vários maços por uma janela durante uma operação da Polícia Federal.

Oficialmente, os espigões de 41 andares e com vista para o rio se chamam “Píer Duarte Coelho” e “Píer Maurício de Nassau”. O primeiro faz homenagem a um colonizador português e donatário da capitania de Pernambuco. Já o segundo é uma referência à figura mais famosa das invasões holandesas no Nordeste no século 17.

Até a morte do filho, contudo, a empregada diz que não havia do que reclamar. “Eles sempre trataram meu filho muito bem. Ela (Sarí) nunca se opôs a nada, mas eu só levava Miguel quando não tinha jeito”, afirma. Foram até os Corte Real que pagaram o velório do menino. “No dia que aconteceu, eu pensei que tivesse sido um acidente mesmo. Mas, quando eu vi o vídeo depois, chega tomei um choque.”

O vídeo a que Mirtes se refere é o que mostra Miguel Otávio dentro do elevador, aparentemente nervoso, e Sarí segurando a porta. Nas imagens, a patroa parece tentar chamá-lo para fora da cabine, mas o menino se recusa a sair. Em seguida, ela parece apertar o botão da cobertura e deixa a criança sozinha. Então o elevador para no 7º andar, mas Miguel Otávio não desce. Dois pavimentos acima, ele sai do equipamento e acessa um corredor. 

Não há câmeras a partir daí. A principal hipótese da polícia é que o menino saltou uma janela do corredor e acessou o hall de serviço, onde fica o ar-condicionado. Lá, teria subido em um gradil que, ao ceder com o peso, provocou a queda da criança. Em contrapartida, a mãe diz que o menino não sabia escalar e que nunca o viu subir nem em árvore.

Representante de Sarí no processo, o advogado Pedro Avelino diz que, na concepção dele, deixar o menino no elevador não foi crime: “A gente entende que inexiste a previsibilidade do resultado (a morte)”.Para sustentar a tese, a defesa deve explorar outros quatro vídeos do circuito de segurança que mostram a patroa conseguindo retirar a criança do elevador antes da tragédia.

Até o momento, a primeira-dama de Tamandaré não foi interrogada formalmente pela polícia e seu relato sobre a dinâmica dos fatos permanece um mistério. “Não vamos antecipar a versão sem que antes o depoimento seja colhido pela autoridade policial. Nem sequer existem laudos periciais ainda”, avalia o defensor.

O único posicionamento público de Sarí foi por meio de uma carta, dirigida a Mirtes e divulgada pelo advogado de defesa. Nela, a ex-patroa pede perdão e se diz “condenada pela opinião pública”. “Como mãe, sou absolutamente solidária ao seu sofrimento. Miguel é e sempre será um anjo na sua vida e na sua família. Não há palavras para descrever o sofrimento dessa perda irreparável", diz o texto. "Na nossa casa sempre sobrou carinho e amor por você, Miguel e Martinha. E assim permanecerá eternamente.”

RECIFE - Negra, de família pobre e com o currículo recheado de trabalhos braçais, Mirtes explica por qual motivo decidiu batizar o único filho de Miguel Otávio: “Queria um nome bonito e forte. A melhor opção era um dos arcanjos da Bíblia, mas aí já tinha um Gabriel na família”, conta ao Estadão. “O complemento é porque, na minha cabeça, tinha de combinar com ‘doutor’. Já imaginava ele como médico, advogado ou engenheiro: doutor Miguel Otávio.”

Miguel, a mãe (d) e avó (e) Foto: Mirtes Souza/arquivo pessoal

A dor da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, de 33 anos, é saber que, em vez do futuro de prosperidade, o filho se tornou uma espécie de símbolo do passado insistente do Brasil. Entregue aos cuidados da patroa Sarí Gaspar Corte Real, o menino teria tentado encontrar com a mãe e acabou sendo deixado sozinho no elevador de um prédio de luxo, no centro do Recife. A história termina com a criança despencando do nono andar, a uma altura de 35 metros, em circunstâncias que ainda precisam ser esclarecidas. Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu antes mesmo de aprender a escrever muita coisa além do próprio nome.

A tragédia aconteceu no dia 2 de junho, curiosamente o aniversário de cinco anos da lei que regulamentou o trabalho doméstico no País, e gerou debates sobre racismo estrutural, patrimonialismo e impunidade. Com o mote #JustiçaParaMiguel, manifestantes também protestaram em frente ao condomínio, jocosamente conhecido no Recife como “Torres Gêmeas”.

Naquele dia, Mirtes não havia sido liberada do serviço mesmo em meio à pandemia do coronavírus. À tarde, precisou sair de uniforme para dar uma volta na praça com Mel, a buldogue da patroa, enquanto Sarí fazia as unhas com a manicure no apartamento. O passeio foi curto: não mais do que 15 minutos. O suficiente para que, ao voltar, encontrasse Miguel Otávio estatelado no chão.

Seu navegador não suporta esse video.

Extrovertido e de sorriso marcante, Miguel Otávio, de 5

“Ela confiava os filhos dela a mim de olhos fechados. Na primeira vez que ficou responsável por Miguel, entregou meu filho todo quebrado por dentro… Se fosse o contrário, ela estaria muito revoltada, ia fazer com que eu pagasse: eu estaria presa e apanhando todo dia na cadeia”, afirma a mãe. “Ela acabou com a minha vida, meus planos, meu futuro.”

Silva

Com quadro de hipertensão gestacional, Mirtes sabia que o parto seria de risco. Por isso, pegou uma condução em Orobó, cidadezinha de 23 mil habitantes na divisa entre Pernambuco e a Paraíba, onde morava na ocasião, e viajou por 77 quilômetros para dar à luz em Vitória de Santo Antão, a meio caminho da capital, município com maternidades melhor equipadas.

Mãe de primeira viagem, a jovem resistiu ao bisturi o quanto pôde. Depois de horas de trabalho de parto, sentindo a dor das contrações e com a pressão subindo sem parar, foi convencida pelos médicos de que o perigo para o filho chegaria antes de ela ter dilatação suficiente.

Miguel queria ser policial e gostava de abordar os agentes para tirar foto Foto: Mirtes Souza

Miguel Otávio veio ao mundo às 7h42 do dia 17 de novembro de 2014, com 52 centímetros e 4.350 gramas. Sem disfarçar uma pontada de orgulho, a mãe recorda que as medidas deixaram uma enfermeira boquiaberta: “Meu Deus do céu, olha o tamanho dessa criança! E tu ainda queria ter parto normal, mulher?!”.

O menino é fruto de uma relação de Mirtes com um ex-colega de trabalho. À época, ela havia sido contratada como carpinteira por uma empresa que dizia querer promover mulheres na construção civil, relata. “Conheci o pai de Miguel Otávio trabalhando nas obras. Eu engravidei oito meses depois de a gente começar a namorar.”

Os dois chegaram a casar e foram morar no interior. Ao nascimento do filho, no entanto, a jovem já estava desempregada. Ela e outras colegas haviam sido demitidas de baciada após a construtora decidir encerrar a campanha de igualdade de gênero, segundo conta.

Na vida de Mirtes, “doutor” sempre foram os outros. Filha de uma faxineira com um vendedor de rua, ela nasceu no Alto José do Pinho, uma das maiores favelas do Recife, e morou ao longo da vida por casas da região metropolitana e do agreste. Todas na periferia. Com curso técnico de segurança do trabalho inacabado, só concluiu os estudos até o ensino médio.

Hoje separada, Mirtes mora na casa da mãe, a Martinha, no bairro do Barro, na zona oeste da capital, onde, a depender da operadora, nem sinal de celular funciona direito. Começou a trabalhar para Sarí há mais de três anos, desde então a rotina de segunda a sábado era levantar da cama às 5h30, deixar o filho em um hotelzinho perto de casa e gastar mais de uma hora no transporte público para ir, e outra para voltar. 

Miguel e Sueli Caminho, dona do hotelzinho onde ele ficava Foto: Sueli Camilo/arquivo pessoal

Descanso aos domingos? Que nada, era o dia de ajudar o pai no parque aquático e tirar o extra que bancava presentes e festa de aniversário de Miguel Otávio. "Podia faltar as coisas para mim, mas para o meu filho nunca. Se precisasse comprar, eu passava no cartão com as parcelas a perder de vista."

Quem o conhece de recém-nascido diz que o menino era “cheio de energia, como toda criança.” “Não vê as fotos? Aquele sorriso era 24 horas por dia. Ele podia estar trelando como fosse, mas estava sorrindo. Eu nunca vou esquecer disso”, diz Sueli Camilo, a “Vovó Sueli”, de 50 anos, que é proprietária do Cantinho Feliz. Antes da pandemia, era no hotelzinho que o garoto ficava a partir das 6 horas até mãe buscá-lo no fim da tarde.

Sueli conta que fazia questão de separar as coxas de frango, a carne preferida de Miguel Otávio, na hora da refeição. “Ele não dava trabalho para almoçar. Feijão, verdurinha… Comia de tudo”, lembra. Também guarda lembranças do menino aprendendo a andar de bicicleta e de como ele não via problema em dividir os brinquedos com os amigos.

Mirtes ainda não conseguiu recolher os dois patinetes e a bicicleta de Miguel Otávio que ficaram espalhados pela casa. À noite, diz, é quando a saudade aperta mais. “Ele sempre vinha deitar comigo na cama, gostava da quenturinha de mainha, e me colocava para dormir. Sempre dormia depois de mim”, descreve. “Agora, eu olho para a rua, vejo um monte de menino jogando bola, mas o meu filho não está mais lá.”

Outra dificuldade, desabafa, tem sido manter o sorriso Miguel Otávio vivo na memória. “Só quando abro as fotos no celular é que, de fato, consigo me lembrar dos momentos felizes”, diz. “Se eu estiver parada, pensando na minha, a única imagem que fica vindo na cabeça é aquela cena do meu filho caído no chão.”

Em um vídeo gravado recentemente, Miguel Otávio aparece banguela aprendendo a rezar o pai-nosso. Aparentando timidez, ele vai engolindo algumas palavras da oração, soprada por um adulto, até que se empolga quando chega ao fim: “Um abraço a todos!” 

Corte Real

Foi só após a repercussão do caso Miguel Otávio que veio à tona a informação de que Mirtes, Martinha e uma funcionária da casa de praia da família Corte Real estavam registradas como servidoras municipais de Tamandaré, embora fossem, na prática, empregadas domésticas do casal. O caso é alvo de investigação do Tribunal de Contas e do Ministério Público Estadual, embora o prefeito diga que vai prestar contas aos órgãos competentes.

De acordo com funcionários, Sérgio Hacker costuma ficar de segunda a sexta em Tamandaré, mas volta na maior parte dos fins de semana para o Recife, a duas horas de distância do seu endereço eleitoral. Já Sarí e os dois filhos do casal, ambos crianças menores de 7 anos, ficam nas Torres Gêmeas, onde o aluguel de um apartamento de 247 m² chega a custar R$ 9 mil.

Erguidos em área de patrimônio histórico, os prédios foram contestados pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2005. Dez anos depois, também ficaram marcados pelo episódio da “chuva de dinheiro” - quando algum morador arremessou vários maços por uma janela durante uma operação da Polícia Federal.

Oficialmente, os espigões de 41 andares e com vista para o rio se chamam “Píer Duarte Coelho” e “Píer Maurício de Nassau”. O primeiro faz homenagem a um colonizador português e donatário da capitania de Pernambuco. Já o segundo é uma referência à figura mais famosa das invasões holandesas no Nordeste no século 17.

Até a morte do filho, contudo, a empregada diz que não havia do que reclamar. “Eles sempre trataram meu filho muito bem. Ela (Sarí) nunca se opôs a nada, mas eu só levava Miguel quando não tinha jeito”, afirma. Foram até os Corte Real que pagaram o velório do menino. “No dia que aconteceu, eu pensei que tivesse sido um acidente mesmo. Mas, quando eu vi o vídeo depois, chega tomei um choque.”

O vídeo a que Mirtes se refere é o que mostra Miguel Otávio dentro do elevador, aparentemente nervoso, e Sarí segurando a porta. Nas imagens, a patroa parece tentar chamá-lo para fora da cabine, mas o menino se recusa a sair. Em seguida, ela parece apertar o botão da cobertura e deixa a criança sozinha. Então o elevador para no 7º andar, mas Miguel Otávio não desce. Dois pavimentos acima, ele sai do equipamento e acessa um corredor. 

Não há câmeras a partir daí. A principal hipótese da polícia é que o menino saltou uma janela do corredor e acessou o hall de serviço, onde fica o ar-condicionado. Lá, teria subido em um gradil que, ao ceder com o peso, provocou a queda da criança. Em contrapartida, a mãe diz que o menino não sabia escalar e que nunca o viu subir nem em árvore.

Representante de Sarí no processo, o advogado Pedro Avelino diz que, na concepção dele, deixar o menino no elevador não foi crime: “A gente entende que inexiste a previsibilidade do resultado (a morte)”.Para sustentar a tese, a defesa deve explorar outros quatro vídeos do circuito de segurança que mostram a patroa conseguindo retirar a criança do elevador antes da tragédia.

Até o momento, a primeira-dama de Tamandaré não foi interrogada formalmente pela polícia e seu relato sobre a dinâmica dos fatos permanece um mistério. “Não vamos antecipar a versão sem que antes o depoimento seja colhido pela autoridade policial. Nem sequer existem laudos periciais ainda”, avalia o defensor.

O único posicionamento público de Sarí foi por meio de uma carta, dirigida a Mirtes e divulgada pelo advogado de defesa. Nela, a ex-patroa pede perdão e se diz “condenada pela opinião pública”. “Como mãe, sou absolutamente solidária ao seu sofrimento. Miguel é e sempre será um anjo na sua vida e na sua família. Não há palavras para descrever o sofrimento dessa perda irreparável", diz o texto. "Na nossa casa sempre sobrou carinho e amor por você, Miguel e Martinha. E assim permanecerá eternamente.”

RECIFE - Negra, de família pobre e com o currículo recheado de trabalhos braçais, Mirtes explica por qual motivo decidiu batizar o único filho de Miguel Otávio: “Queria um nome bonito e forte. A melhor opção era um dos arcanjos da Bíblia, mas aí já tinha um Gabriel na família”, conta ao Estadão. “O complemento é porque, na minha cabeça, tinha de combinar com ‘doutor’. Já imaginava ele como médico, advogado ou engenheiro: doutor Miguel Otávio.”

Miguel, a mãe (d) e avó (e) Foto: Mirtes Souza/arquivo pessoal

A dor da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, de 33 anos, é saber que, em vez do futuro de prosperidade, o filho se tornou uma espécie de símbolo do passado insistente do Brasil. Entregue aos cuidados da patroa Sarí Gaspar Corte Real, o menino teria tentado encontrar com a mãe e acabou sendo deixado sozinho no elevador de um prédio de luxo, no centro do Recife. A história termina com a criança despencando do nono andar, a uma altura de 35 metros, em circunstâncias que ainda precisam ser esclarecidas. Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu antes mesmo de aprender a escrever muita coisa além do próprio nome.

A tragédia aconteceu no dia 2 de junho, curiosamente o aniversário de cinco anos da lei que regulamentou o trabalho doméstico no País, e gerou debates sobre racismo estrutural, patrimonialismo e impunidade. Com o mote #JustiçaParaMiguel, manifestantes também protestaram em frente ao condomínio, jocosamente conhecido no Recife como “Torres Gêmeas”.

Naquele dia, Mirtes não havia sido liberada do serviço mesmo em meio à pandemia do coronavírus. À tarde, precisou sair de uniforme para dar uma volta na praça com Mel, a buldogue da patroa, enquanto Sarí fazia as unhas com a manicure no apartamento. O passeio foi curto: não mais do que 15 minutos. O suficiente para que, ao voltar, encontrasse Miguel Otávio estatelado no chão.

Seu navegador não suporta esse video.

Extrovertido e de sorriso marcante, Miguel Otávio, de 5

“Ela confiava os filhos dela a mim de olhos fechados. Na primeira vez que ficou responsável por Miguel, entregou meu filho todo quebrado por dentro… Se fosse o contrário, ela estaria muito revoltada, ia fazer com que eu pagasse: eu estaria presa e apanhando todo dia na cadeia”, afirma a mãe. “Ela acabou com a minha vida, meus planos, meu futuro.”

Silva

Com quadro de hipertensão gestacional, Mirtes sabia que o parto seria de risco. Por isso, pegou uma condução em Orobó, cidadezinha de 23 mil habitantes na divisa entre Pernambuco e a Paraíba, onde morava na ocasião, e viajou por 77 quilômetros para dar à luz em Vitória de Santo Antão, a meio caminho da capital, município com maternidades melhor equipadas.

Mãe de primeira viagem, a jovem resistiu ao bisturi o quanto pôde. Depois de horas de trabalho de parto, sentindo a dor das contrações e com a pressão subindo sem parar, foi convencida pelos médicos de que o perigo para o filho chegaria antes de ela ter dilatação suficiente.

Miguel queria ser policial e gostava de abordar os agentes para tirar foto Foto: Mirtes Souza

Miguel Otávio veio ao mundo às 7h42 do dia 17 de novembro de 2014, com 52 centímetros e 4.350 gramas. Sem disfarçar uma pontada de orgulho, a mãe recorda que as medidas deixaram uma enfermeira boquiaberta: “Meu Deus do céu, olha o tamanho dessa criança! E tu ainda queria ter parto normal, mulher?!”.

O menino é fruto de uma relação de Mirtes com um ex-colega de trabalho. À época, ela havia sido contratada como carpinteira por uma empresa que dizia querer promover mulheres na construção civil, relata. “Conheci o pai de Miguel Otávio trabalhando nas obras. Eu engravidei oito meses depois de a gente começar a namorar.”

Os dois chegaram a casar e foram morar no interior. Ao nascimento do filho, no entanto, a jovem já estava desempregada. Ela e outras colegas haviam sido demitidas de baciada após a construtora decidir encerrar a campanha de igualdade de gênero, segundo conta.

Na vida de Mirtes, “doutor” sempre foram os outros. Filha de uma faxineira com um vendedor de rua, ela nasceu no Alto José do Pinho, uma das maiores favelas do Recife, e morou ao longo da vida por casas da região metropolitana e do agreste. Todas na periferia. Com curso técnico de segurança do trabalho inacabado, só concluiu os estudos até o ensino médio.

Hoje separada, Mirtes mora na casa da mãe, a Martinha, no bairro do Barro, na zona oeste da capital, onde, a depender da operadora, nem sinal de celular funciona direito. Começou a trabalhar para Sarí há mais de três anos, desde então a rotina de segunda a sábado era levantar da cama às 5h30, deixar o filho em um hotelzinho perto de casa e gastar mais de uma hora no transporte público para ir, e outra para voltar. 

Miguel e Sueli Caminho, dona do hotelzinho onde ele ficava Foto: Sueli Camilo/arquivo pessoal

Descanso aos domingos? Que nada, era o dia de ajudar o pai no parque aquático e tirar o extra que bancava presentes e festa de aniversário de Miguel Otávio. "Podia faltar as coisas para mim, mas para o meu filho nunca. Se precisasse comprar, eu passava no cartão com as parcelas a perder de vista."

Quem o conhece de recém-nascido diz que o menino era “cheio de energia, como toda criança.” “Não vê as fotos? Aquele sorriso era 24 horas por dia. Ele podia estar trelando como fosse, mas estava sorrindo. Eu nunca vou esquecer disso”, diz Sueli Camilo, a “Vovó Sueli”, de 50 anos, que é proprietária do Cantinho Feliz. Antes da pandemia, era no hotelzinho que o garoto ficava a partir das 6 horas até mãe buscá-lo no fim da tarde.

Sueli conta que fazia questão de separar as coxas de frango, a carne preferida de Miguel Otávio, na hora da refeição. “Ele não dava trabalho para almoçar. Feijão, verdurinha… Comia de tudo”, lembra. Também guarda lembranças do menino aprendendo a andar de bicicleta e de como ele não via problema em dividir os brinquedos com os amigos.

Mirtes ainda não conseguiu recolher os dois patinetes e a bicicleta de Miguel Otávio que ficaram espalhados pela casa. À noite, diz, é quando a saudade aperta mais. “Ele sempre vinha deitar comigo na cama, gostava da quenturinha de mainha, e me colocava para dormir. Sempre dormia depois de mim”, descreve. “Agora, eu olho para a rua, vejo um monte de menino jogando bola, mas o meu filho não está mais lá.”

Outra dificuldade, desabafa, tem sido manter o sorriso Miguel Otávio vivo na memória. “Só quando abro as fotos no celular é que, de fato, consigo me lembrar dos momentos felizes”, diz. “Se eu estiver parada, pensando na minha, a única imagem que fica vindo na cabeça é aquela cena do meu filho caído no chão.”

Em um vídeo gravado recentemente, Miguel Otávio aparece banguela aprendendo a rezar o pai-nosso. Aparentando timidez, ele vai engolindo algumas palavras da oração, soprada por um adulto, até que se empolga quando chega ao fim: “Um abraço a todos!” 

Corte Real

Foi só após a repercussão do caso Miguel Otávio que veio à tona a informação de que Mirtes, Martinha e uma funcionária da casa de praia da família Corte Real estavam registradas como servidoras municipais de Tamandaré, embora fossem, na prática, empregadas domésticas do casal. O caso é alvo de investigação do Tribunal de Contas e do Ministério Público Estadual, embora o prefeito diga que vai prestar contas aos órgãos competentes.

De acordo com funcionários, Sérgio Hacker costuma ficar de segunda a sexta em Tamandaré, mas volta na maior parte dos fins de semana para o Recife, a duas horas de distância do seu endereço eleitoral. Já Sarí e os dois filhos do casal, ambos crianças menores de 7 anos, ficam nas Torres Gêmeas, onde o aluguel de um apartamento de 247 m² chega a custar R$ 9 mil.

Erguidos em área de patrimônio histórico, os prédios foram contestados pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2005. Dez anos depois, também ficaram marcados pelo episódio da “chuva de dinheiro” - quando algum morador arremessou vários maços por uma janela durante uma operação da Polícia Federal.

Oficialmente, os espigões de 41 andares e com vista para o rio se chamam “Píer Duarte Coelho” e “Píer Maurício de Nassau”. O primeiro faz homenagem a um colonizador português e donatário da capitania de Pernambuco. Já o segundo é uma referência à figura mais famosa das invasões holandesas no Nordeste no século 17.

Até a morte do filho, contudo, a empregada diz que não havia do que reclamar. “Eles sempre trataram meu filho muito bem. Ela (Sarí) nunca se opôs a nada, mas eu só levava Miguel quando não tinha jeito”, afirma. Foram até os Corte Real que pagaram o velório do menino. “No dia que aconteceu, eu pensei que tivesse sido um acidente mesmo. Mas, quando eu vi o vídeo depois, chega tomei um choque.”

O vídeo a que Mirtes se refere é o que mostra Miguel Otávio dentro do elevador, aparentemente nervoso, e Sarí segurando a porta. Nas imagens, a patroa parece tentar chamá-lo para fora da cabine, mas o menino se recusa a sair. Em seguida, ela parece apertar o botão da cobertura e deixa a criança sozinha. Então o elevador para no 7º andar, mas Miguel Otávio não desce. Dois pavimentos acima, ele sai do equipamento e acessa um corredor. 

Não há câmeras a partir daí. A principal hipótese da polícia é que o menino saltou uma janela do corredor e acessou o hall de serviço, onde fica o ar-condicionado. Lá, teria subido em um gradil que, ao ceder com o peso, provocou a queda da criança. Em contrapartida, a mãe diz que o menino não sabia escalar e que nunca o viu subir nem em árvore.

Representante de Sarí no processo, o advogado Pedro Avelino diz que, na concepção dele, deixar o menino no elevador não foi crime: “A gente entende que inexiste a previsibilidade do resultado (a morte)”.Para sustentar a tese, a defesa deve explorar outros quatro vídeos do circuito de segurança que mostram a patroa conseguindo retirar a criança do elevador antes da tragédia.

Até o momento, a primeira-dama de Tamandaré não foi interrogada formalmente pela polícia e seu relato sobre a dinâmica dos fatos permanece um mistério. “Não vamos antecipar a versão sem que antes o depoimento seja colhido pela autoridade policial. Nem sequer existem laudos periciais ainda”, avalia o defensor.

O único posicionamento público de Sarí foi por meio de uma carta, dirigida a Mirtes e divulgada pelo advogado de defesa. Nela, a ex-patroa pede perdão e se diz “condenada pela opinião pública”. “Como mãe, sou absolutamente solidária ao seu sofrimento. Miguel é e sempre será um anjo na sua vida e na sua família. Não há palavras para descrever o sofrimento dessa perda irreparável", diz o texto. "Na nossa casa sempre sobrou carinho e amor por você, Miguel e Martinha. E assim permanecerá eternamente.”

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