Ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), sociólogo e escritor, Rodrigo Pimentel avalia que na segunda-feira, 23, o crime organizado ultrapassou um ponto a partir do qual não há mais volta para a escalada da violência no Rio. Depois da morte de um líder da milícia em uma operação da Polícia Civil, milicianos botaram fogo em 35 ônibus, bloqueando as principais vias de acesso e circulação da zona oeste, onde vivem 2,7 milhões de pessoas.
“A milícia sinalizou que, a partir de agora, se houver qualquer prisão, ela vai estabelecer o caos no Rio de Janeiro”, disse, em entrevista ao Estadão.
Segundo Pimentel, o problema não é a falta de inteligência, como muitos governantes e analistas de segurança pública costumam propagar, mas sim de operações bem organizadas e coordenadas. Ele afirmou que houve desorganização por parte do governo do Estado e criticou a Justiça, que soltou recentemente alguns dos mais perigosos traficantes.
Uma parte da milícia está em confronto por controle territorial e outra parte se aliou ao Comando Vermelho. Como o senhor analisa a situação do Rio de Janeiro hoje?
A milícia está com o Comando Vermelho. O CV comprou vários territórios da milícia, várias favelas. Isso começou antes da pandemia, mas pouca gente prestou atenção. O que estamos vendo é uma junção dos dois grupos. O Abelha, o líder do CV que saiu de Bangu pela porta da frente e ainda apertou a mão do então secretário de administração penitenciária (Raphael Montenegro, que foi preso depois), é hoje o líder das favelas das milícias. Isso é puro suco de Rio de Janeiro.
Então senhor acha que não há distinção entre milícia e tráfico?
Acho que não há distinção nenhuma, nem para a polícia, nem para a sociedade. Ambos exploram as mesmas atividades econômicas: transporte coletivo alternativo, TV a cabo ilegal, gás, roubo de carga, venda de cocaína e maconha. Ambos recebem a polícia a tiros em operações. O roubo de carga hoje é o principal negócio do CV, não o tráfico. Então acho que não existe distinção. Na pandemia, um jornal do Rio começou a usar o termo narcomilícias para se referir aos grupos, achei apropriado.
Como o senhor analisa a resposta do governo do Estado aos acontecimentos de segunda-feira?
Tivemos um apagão. Durante toda a tarde, o governador (Cláudio Castro) fingiu que nada estava acontecendo, exceto por uma postagem em rede social. Tínhamos 2,7 milhões de pessoas (a população total da zona oeste) em 35 bairros sem saber o que fazer. Sem saber se podiam ir pegar o filho na escola, se tinham que sair mais cedo do trabalho, se podiam pegar um ônibus. Foi uma omissão covarde. Vários bairros ficaram fechados, toda a linha do BRT e toda a transoeste estavam fechadas.
Faltou coordenação entre as polícias Civil e Militar? O senhor acha que a falta de um secretário de Segurança agrava o problema?
Se você faz uma operação para prender um dos cabeças da milícia no Rio, você sabe que isso pode resultar em mortes e você sabe que pode haver manifestações. Por que a Civil não fez uma reunião com a PM? Por que não foram mobilizados? Eu conversei com diversos comandantes de batalhões da PM da região e ninguém sabia da operação da civil. Você pode ter mil secretarias de polícia, desde que elas troquem informações. Na segunda-feira, ficou claro que não existe coordenação nenhuma; foi uma desorganização tremenda.
A que o senhor atribui essa desorganização?
O governador não consegue nomear o próprio secretário de Polícia Civil. Ele foi eleito no primeiro turno, mas é a Assembleia Legislativa que determina o cabeça da secretaria mais estratégica do governo. O problema começa aí. Outra coisa: o Abelha está foragido há mais de dois anos; só na segunda-feira à noite que ele virou o inimigo público número um. Até então nunca tinha ouvido ninguém dizer que a missão da Polícia Civil era capturá-lo. Os caras que mataram os médicos, o Rian e o BMW, também estavam presos, bem como o líder do CV, e foram soltos. A gente nem consegue manter os caras presos. Se eles estivessem presos, o Rio não estaria pegando fogo.
O governo federal e muitos analistas de segurança pública ouvidos pela imprensa atribuem parte do problema à falta de inteligência. O senhor concorda?
Estou acompanhando as declarações e, inclusive, tenho muita simpatia pelo Cappelli (o secretário nacional de segurança pública, Ricardo Cappelli). Todo mundo fala que falta inteligência, que precisamos investir em inteligência. Eu discordo.
O senhor acha que temos inteligência suficiente?
Existem dois tipos de inteligência: a inteligência humana, quando a gente infiltra um agente ou paga um informante; e a inteligência de dados, feita com imagens de drones, áudio, interceptações de mensagens. Não dá para infiltrar ninguém na Maré porque essa pessoa seria identificada em muito pouco tempo. A inteligência que temos hoje é de imagem. E os bandidos da Maré foram todos filmados e identificados. O Dino (ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino) e o Cappelli sabem disso, eles sabem o número de pessoas (são mil aproximadamente) que participaram do treinamento, sabem que eles saíram do Jacarezinho, de Manguinhos, da Rocinha. Sabem que muitos têm passagem pela polícia; 76 deles, inclusive, usam tornozeleira eletrônica. Eles têm a imagem de alta definição do rosto de cada um.
Se não falta inteligência, o que falta então?
Tenho certeza de que não falta inteligência. Falta montar uma operação para prender esses bandidos. Tem uma hora em que é preciso transformar a inteligência em operação de força. Só que vai morrer gente inocente. Aí alguém vai dizer que faltou inteligência. Deixa eu explicar uma coisa: a inteligência não vai te dizer a casa em que o bandido está, não vai te dizer que tem um fuzil na casa 9, no beco 6. E a Justiça não aceita mais o mandado de busca e apreensão coletivo, o que eu até acho prudente. A polícia invadia centenas de casas de moradores de forma truculenta, era um constrangimento. Mas o fato é que a polícia chega lá e não consegue revistar as casas, prender, trazer os fuzis. Então, precisamos oferecer uma ferramenta nova e eu não estou sugerindo estado de exceção. Mas o governo precisa oferecer algum tipo de ferramenta que permita vasculhar mais casas ou não vai conseguir tirar os fuzis da Maré (estima-se que haja mil fuzis na comunidade). Sem isso, estamos chovendo no molhado, repetindo tudo o que já fizemos e não deu certo.
Mas, então, na sua opinião, a solução é invadir a casa de todo mundo?
Tem uma cena no Tropa de Elite em que uma família está sentada à mesa, fazendo uma oração antes do jantar, quando o Bope invade a sua casa. Família nenhuma merece passar por isso, eu concordo. Entretanto, não existe outra solução. Vamos conversar sobre isso? Podemos usar alguma ferramenta nova? Se for um consenso para a sociedade que não dá para invadir as casas, então ok, mas temos que aceitar que não há solução, que a gente decidiu que não tem como prender, que a gente decidiu viver dessa forma e que os moradores das comunidades vão viver atrás das barricadas, subjugados pelo tráfico pelos próximos cem anos.
O senhor acha que cruzamos uma linha a partir da qual não há mais retorno na escalada da violência no Rio?
Sim. Na segunda-feira, a milícia sinalizou que, a partir de agora, se houver qualquer prisão, ela vai estabelecer o caos no Rio de Janeiro. Ela disse para o governo: se vocês prenderem alguém, a gente fecha a supervia, a transolímpica, o BRT, a gente deixa 35 bairros sem transporte público. Já houve outros episódios de queima de ônibus no Rio, mas os ônibus queimados eram escolhidos aleatoriamente. Na segunda-feira, foram interditadas vias estratégicas.