Um dos capítulos mais atípicos da história da Igreja Católica moderna começou em 13 de março de 2013, quando o recém-eleito papa Francisco, aparecendo na varanda da Basílica de São Pedro ofereceu uma oração por seu antecessor ainda vivo, o pontífice emérito Bento XVI. Por quase dez anos, os dois conviveram no Vaticano, até que Joseph Ratzinger, o papa aposentado, morreu no dia 31, aos 95 anos.
Pela primeira vez em seu pontificado, Francisco é a única figura do Vaticano vestida de branco. Nas orações de sábado à noite e domingo, o papa falou de Bento como “nobre” e “bondoso”. Fora isso, o argentino seguiu normalmente com as festividades do ano-novo do Vaticano. No sábado, numa cadeira de rodas, acenou para fiéis em passagem pela Praça São Pedro.
Marco Politi, um biógrafo de Francisco, previu que o papa administraria esta semana com “diplomacia” e buscaria maneiras de mostrar o terreno comum entre ele e Bento. “Esta é uma maneira para ele de neutralizar os inimigos de seu papado”, disse Politi ao jornal americano The Washington Post.
Bento XVI rompeu com séculos de tradição, em que papas lideraram a Igreja até a morte. A necessidade de coexistir com o antecessor tem sido um ponto determinante do mandato de Francisco e coincide com a fase de crescente polarização dentro da fé.
Na visão dos tradicionalistas, Bento se tornou um símbolo de oposição. Figuras conservadoras na Igreja Católica buscavam audiências com ele. Os políticos de extrema-direita o citavam - ou João Paulo II, o antecessor de Ratzinger, morto em 2005 - em vez de Francisco.
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Milhares de pessoas continuam comparecendo ao Vaticano para se despedir de Bento XVI. Os fiéis relembram com carinho a trajetória do pontífice
Convergências e ruídos
A curiosidade e as especulações sobre o relacionamento dos dois pontífices motivou até um filme, Os Dois Papas, que imaginou diálogos da dupla. Na prática, Bento mostrou respeito a Francisco e disse que havia apenas uma figura de autoridade no topo.
Francisco, por sua vez, abordou regularmente o espírito e a “percepção intelectual” de Bento XVI. Após cerimônias para a integração de novos cardeais, Francisco os levava rotineiramente para cumprimentar o antecessor, que vivia em um mosteiro escondido atrás da Basílica de São Pedro.
Isso não significa, porém, que não houvesse divergências e ruídos. Francisco disse a padres e bispos para acolher católicos divorciados e os que se casaram de novo e restringiu as missas em latim - bastante apreciadas pelos tradicionalistas. Francisco também defendeu uniões civis de casais.
Em 2019, Bento escreveu uma carta sobre abusos sexuais cometidos por clérigos, ligando alguns dos problemas da Igreja à revolução sexual dos anos 1960. Este diagnóstico entrava em conflito com teorias de Francisco sobre o assunto. Escândalos dessa natureza foram umas das principais turbulências enfrentadas por Ratzinger ao longo do seu pontificado.
Um ano depois, Bento fez uma defesa do celibato clerical, enquanto Francisco estava pesando um movimento para permitir a ordenação de homens casados na Amazônia para compensar uma escassez de sacerdotes na região. Bento afirmou mais tarde que houve um “mal-entendido” com o co-autor do livro onde suas observações haviam aparecido. Alguns observadores apontaram que havia o risco de que o papa emérito fosse manipulado na medida em que a saúde do religioso ficava mais frágil.
Por outro lado, nem sempre os dois tinham visões tão distantes. Ambos reconheceram a importância do ensino da Igreja sobre sexualidade, mas com diferenças significativas. Bento, como papa, concentrou-se em defender os ensinamentos eternos da fé, mesmo que isso significasse uma igreja menor de crentes fervorosos. Já Francisco viajou para países com pouca presença católica, enfatizou o diálogo com o Islã, e aproveitou questões como as crises climática e migratória - temáticas que os tradicionalistas dizem ter pouco a ver com a fé.
Uma nova referência conservadora
Nos últimos anos, muitos tradicionalistas da Igreja - e políticos de direita - evocam o nome de Bento como a verdadeira autoridade moral da Igreja, e não o de Francisco. Agora, os conservadores buscam uma referência quanto Ratzinger foi ao longo de décadas.
“Ele era o Sol que iluminava a todos nós”, afirmou o cardeal italiano Angelo Amato, que foi prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, ao jornal americano The New York Times. Ele se referiu a Bento como um “santo” e disse que “quando não há sol, há apenas névoa”.
“Existe um movimento conservador vibrante no catolicismo antes de Ratzinger e haverá um agora que ele se foi”, avaliou para o The New York Times John Allen, um experiente especialista em Vaticano e o fundador do Crux, um site sobre notícias católicas.
Para Allen, o colaborador mais próximo de Ratzinger, o arcebispo Georg Gänswein, que é visto com restrições por aliados de Francisco, terá a responsabilidade de conservar a memória de Bento. E, aponta o especialista, lideranças conservadoras regionais irão despontar.
Já na avaliação de Paul Badde, alemão autor do livro Benedict Up Close, a “a era Constantina ou era europeia” da Igreja Católica acabou.
Saiba mais
Regras para aposentados?
Com a morte de Bento, parte dos observadores da Igreja Católica espera que Francisco crie regras que orientem a aposentadoria de qualquer futuro pontífice - potencialmente exigindo que ele viva fora do Vaticano e volte ao seu nome original. Há a leitura de que seria incômodo criar normas desse tipo enquanto Bento XVI ainda estivesse vivo.
Francisco, em entrevistas passadas, disse que vê a renúncia de Bento como um precedente - algo que ele consideraria fazer também, caso sua saúde vacile. Por enquanto, Francisco, de 86 anos, tem dores no joelho e luta para andar - muitas vezes se locomove com ajuda de uma cadeira de rodas. Mas ele mantém uma agenda bastante ocupada, com viagens e cerimônias.
Caso Francisco se afaste do cargo, ele afirmou que seria conhecido como o bispo emérito de Roma. E disse que “certamente não” permaneceria no Vaticano. Em entrevista no ano passado à imprensa mexicana, Francisco disse que a primeira experiência com um papa e um pontífice aposentado “correu muito bem”, porque Bento era “um homem santo e discreto”.
“Mas para o futuro”, disse Francisco, “é apropriado explicar melhor as coisas”. / COM INFORMAÇÕES DE THE NEW YORK TIMES E THE WASHINGTON POST