O traque serve para animar festas juninas, aniversários. É uma brincadeira. O pequeno embrulho de papel é atirado ao chão, explode com um ruído seco e em seguida vêm as risadas ou os gritos de susto. A casa de Maria costuma estar cheia deles, mas após os estralos esparsos, nada se ouve, continua o silêncio. Em dois pequenos sofás e com os olhos na TV, ela e as filhas, de 13 e 17 anos, embrulham até 70 mil traques por semana, em uma seqüência frenética sobre um tabuleiro de madeira: molham os dedos em pasta de dente, seguram um quadrado pequeno de papel e colhem com a pequena folha um pouco de uma massa acinzentada. Em seguida, torcem as pontas do embrulho para não deixar o conteúdo explosivo escapar. "A conversa aqui, quando alguém levanta, é ?meu Deus, que dor nas costas?", diz ela, que ouviu dizer que a produção irá divertir consumidores de fora do País neste fim de ano. Há alguns dias, alguém deixou blocos de papel já cortado no tamanho certo e cerca de 4 quilos da massa no casebre da família, no bairro do Mutum, um dos mais pobres de Santo Antônio de Jesus, cidade de pouco mais de 75 mil habitantes a 200 quilômetros de Salvador. Depois do trabalho pronto, o enviado retira os sacos plásticos ou Maria mesmo vai levá-los para a pesagem e o pagamento: R$ 0,60 o milheiro - mais nada. Maria e as filhas fazem parte de uma rede de produtores de fogos com base em trabalho infantil, informal e sem nenhum tipo de segurança, mantida no município que se autodenomina "o comércio mais barato da Bahia". Não bastou o triste acidente de 11 de dezembro de 1998, quando 64 pessoas morreram em uma explosão da fábrica da família Prazeres Bastos, onde trabalhavam mulheres e crianças, para que os governos estadual, municipal e o Exército, responsável pelo controle da produção de pólvora, resolvessem o problema. Tudo continua igual. Entre o acidente, Maria, as filhas e os misteriosos produtores de fogos que se escondem em áreas rurais da cidade, há um vácuo de alternativas de renda e desenvolvimento - e a precária fiscalização sobre as matérias-primas para os fogos, que entram livremente, em diferentes quantidades, pelos quintais dos casebres da região. O Exército, que controla a produção de explosivos no País, recusa-se a agir contra a produção clandestina, alegando que não teria autonomia para entrar nos locais de fabricação ilegal - seria uma atribuição da Polícia Civil. "O Exército não tem jurisdição sobre os clandestinos, cabe à Secretaria da Segurança Pública fazer essa fiscalização", afirma o tenente José Laércio Poli, da 6ª Delegacia do Exército em Santo Antônio. O delegado Élvio Brandão afirma que apenas 15% da produção de fogos do município é legal e faz uma comparação com o tráfico de drogas. "Ou se pega o fornecedor da matéria-prima ou não adianta." A polícia não localizou nenhum. O município tem hoje três fábricas de fogos legalizadas, uma delas a da família Prazeres Bastos, e outras nove, de outros produtos, em seu distrito industrial. Isso ante pelo menos 35 produtores clandestinos de fogos, segundo estimativa da associação dos pequenos produtores da cidade, um eufemismo para a entidade que reúne os ilegais. Mas autoridades do município acreditam que também as empresas legais de fogos têm um esquema paralelo de fabricação, sem nenhum tipo de controle. As esparsas fiscalizações que têm ocorrido na cidade só têm servido para trazer pânico aos trabalhadores que dependem dos clandestinos - um senhor morreu de enfarte ao correr de uma blitz, lembra um dos promotores instalados na cidade, Julimar Barreto Ferreira. Dias depois , todos retornam às condições insalubres de trabalho. A única tentativa de ampliar o trabalho legalizado na região fracassou. Trata-se de um condomínio com terreno e subsídios do Estado da Bahia, instalado logo após a tragédia de 1998 para estimular a produção legal - daí o curioso nome de Condomínio Fênix. A falta de experiência e a concorrência desleal dos clandestinos fizeram o projeto naufragar. Hoje, duas empresas ainda atuam no local, mas com uma produção insignificante perto da ilegal. Já o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), iniciativa conjunta da União, Estado e municípios, funciona de maneira capenga na região. A reportagem encontrou unidades do Peti fechadas desde o início do mês de dezembro, apesar da orientação para o programa não parar, além de ausência de material e atividades para as crianças. As três esferas de governo ainda discutem como sair do emaranhado de irregularidades na região, até por conta da pressão da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em outubro de 2006, o Estado brasileiro assumiu a culpa pela tragédia de 1998 e comprometeu-se com uma série de ações na região para retirar o caso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da organização. Pesquisa com 116 trabalhadores da indústria ilegal de fogos, realizada pelo Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus, mostrou que a maioria trocaria de emprego sem pestanejar, se tivesse alternativa para garantir o sustento de suas famílias e crianças. "Ainda por cima, por serem da periferia, eles são discriminados quando tentam outras ocupações", afirma Ana Maria Santos, presidente do fórum. GOVERNO A secretária da Assistência Social de Santo Antônio de Jesus, Dalva Barreto, diz que o trabalho infantil só ocorre à noite, em casa, e quer saber onde a reportagem viu a atividade de dia. Afirma que quer trazer cursos de capacitação em pirotecnia para o município. Também estuda incentivos para ampliar o setor de artesanatos e confecções. Por causa do medo de represália das pessoas que estão no mercado ilegal de fogos, a reportagem trocou seus nomes. Para conversar com os trabalhadores, os repórteres do Estado apresentaram-se como pesquisadores e comprometeram-se a não revelar sua identidade.
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