O prefeito Sebastião Melo (MDB) vive em um hotel desde que sua casa na zona sul de Porto Alegre foi invadida pela água do Guaíba. Como a prefeitura também foi alagada no centro da cidade, decidiu chefiar a reação à maior cheia da capital em centros de comando esparsos. Os locais também acabaram inundados.
Seus críticos veem nessa série de imprevistos a face mais pitoresca da falha no sistema que deveria impedir o avanço do rio e no que deveria bombear a água da chuva na capital gaúcha. Seus defensores apontam o episódio como prova de que o fenômeno foi tão avassalador que pegou pobres, ricos e até o prefeito.
Levantamento preliminar da prefeitura aponta que 160 mil pessoas foram atingidas pela cheia histórica que devastou quase 30% da cidade. Foram 94 mil domicílios. Há 25 mil famílias vulneráveis registradas no Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal no município.
Dos 160 mil atingidos, 14,7 mil chegaram a ser acolhidos em 162 abrigos cadastrados ou gerenciados pela prefeitura em maio. Hoje, são 98 estruturas ativas e menos de 5 mil cidadãos abrigados.
A prefeitura estima a necessidade emergencial de 21 mil unidades habitacionais, seja para abrigar famílias diretamente atingidas ou realocar outras em situação de iminente risco de desalojamento em áreas alagadiças e de risco (142).
Melo deu essa entrevista na sexta-feira, 7, num dos centros de comando que chegaram a ficar isolados pela inundação - a água baixou, mas o monitoramento da cidade por câmeras não havia sido restabelecido. Não quis falar do impacto da tragédia em sua tentativa de se reeleger, mas admitiu um cenário “embaralhado” e previu uma campanha curta. Em 2020, foi eleito no embalo da onda conservadora e era considerado favorito.
Ele admite falhas na gestão da crise, divide a responsabilidade com antecessores e vê dificuldade na transferência definitiva da população de áreas insalubres.
Pouco mais de um mês após a enchente, chama a atenção a quantidade de gente limpando casas, lojas e fábricas em Porto Alegre. Há montanhas de entulho a cada quadra. Quando a cidade estará limpa?
A cidade foi atingida em 30% pela enchente. Fizemos contratações extras de pessoas e de maquinário. Estamos trabalhando com quase 300 máquinas extras nos bairros em que a água baixou primeiro. Em dois dias, foram em torno de 4 mil toneladas de lixo do “bota-fora”. São a mesa, a cadeira, o sofá jogados fora. Criamos terrenos para “bota-fora” em vários bairros. Caminhões menores levam material para esses terrenos. Depois, caminhões maiores levam para aterros.
Quanto tempo para resolver isso?
Nos três primeiros bairros fomos bem esta semana. Não gosto de trabalhar com um dia e hora para terminar a limpeza. É muita sujeira.
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Um mês após pico da enchente, capital gaúcha tenta se livrar do aspecto e cheiro de pós-guerra. Em dois dias, foram recolhidas 4 mil toneladas de lixo.
Setembro é um mês historicamente chuvoso no Rio Grande do Sul e estaremos a um mês da eleição, em que o senhor busca a reeleição. Se voltar a chover o que choveu, o senhor garante que a cidade não voltará a inundar?
O que dá para dizer, sem ficar buscando culpado, é que o sistema concebido mostrou falha em várias coisas. As manutenções foram feitas, tanto que quando veio a chuvarada as 23 casas de bombas pluviais estavam funcionando. Há um sistema para tirar água de chuva de Porto Alegre e um sistema de proteção feito para não deixar entrar água do Guaíba na cidade. Quando falhou o sistema de proteção, vazou água para todos os lados. Quando a água invadiu a cidade, invadiu as casas de bomba, molhou os painéis elétricos e eles deixaram de funcionar. Sem eles, não se liga o motor nem a bomba. Então, essas casas de bomba colapsaram. O muro (que separa o cais da cidade) resistiu, mas os portões dele tiveram problemas.
Então faltou manutenção no portão?
Fizemos muita manutenção de casas de bomba, mas na nossa gestão não houve manutenção dos portões. Os portões tinham passado pelas cheias de 2023. Desta vez, um portão envergou. Ele não foi concebido agora e também não foi testado com esse volume de água. Mas o sistema mostrou falhas, sim, e precisa ser revisitado. As primeiras obras são refazer os portões. Uma opção seria acabar com os portões, ampliar o muro no local e fazer um viaduto para dar mobilidade ao cais. A segunda questão é que quatro diques tiveram problema, de extravasar ou romper. Todos eles foram feitos nas cotas de 1960 e nunca tinha havido uma cheia desse tamanho.
Quanto tempo para uma solução definitiva?
Água não tem fronteira, né? O Rio Grande do Sul precisa liderar um processo de proteção cheias. Nas ilhas, algumas ruas têm dois metros de areia acumulada. É uma demonstração de que o rio há muitos anos não é desassoreado. Essa lição tem de nos servir também como oportunidade de criar um sistema. Vamos fazer as obras, mas alguém tem de fazer a manutenção. Quem vai fazer? Recebi agora uma comitiva pequena da Holanda e perguntei quando começou a prevenção de cheia no seu país. Há mil anos.
O senhor considera injusto que o cidadão e eleitor que paga IPTU em Porto Alegre culpe o prefeito de Porto Alegre pela enchente?
Não vou fazer julgamento da nossa administração. Esse é um tipo do fenômeno climático de uma envergadura que a gente precisa analisar o conjunto da enchente, não apenas Porto Alegre. Se o sistema foi concebido há 50 anos, têm de ser analisados 50 anos e não os últimos dois anos ou três anos.
O sr. já mencionou que a sociedade, quando decide onde investir, - e Porto Alegre tem o orçamento participativo -, às vezes prefere asfalto a uma obra de saneamento. Como evitar esse tipo de distorção?
Os orçamentos municipais do Brasil são diminutos. O prefeito senta na pontinha da cadeira. A saúde tem verba vinculada, a educação tem os fundos vinculados. Para enfrentar macrodrenagem, se não lançar mão de financiamento a longuíssimo prazo ou fizer parceria da União, não tem como fazer essas obras. Se você vai a um bairro popular onde o asfalto nunca chegou, a população se reúne e diz “prefeito, na minha rua não tem asfalto, no vizinho tem”. Muitas vezes se fez asfalto nas cidades brasileiras sem micro ou macrodrenagem. Essas mudanças climáticas, que muitos achavam que fossem ser para o filho, chegaram. A única certeza é que isso vai continuar acontecendo.
Parte da sociedade não está convencida de que esses fenômenos frequentes são consequência da ação humana. Alguns o consideram negacionista. Como o sr. se posiciona?
Eu acredito na ciência. Na pandemia, talvez Porto Alegre tenha sido a cidade que mais vacinou em todas as capitais. Mas eu defendia a abertura do comércio, com vacinação. Não sou negacionista em nada, muito menos na questão climática. Isso não se resolve com ideologia, nem de direita nem de esquerda. O que resolve é foco, decisão, planejamento e dinheiro. Vejo muita gente de esquerda que discursa sobre a questão climática, mas quando está no governo não bota o dinheiro. Tenho uma aliança de centro-direita. Sou um prefeito defensor do empreendedorismo, das parcerias.
Tem se falado em reconstrução, mas reconstruir um lugar errado com o material errado pode levar ao mesmo problema. Existe plano de retirar a população de áreas onde ela não pode ter moradia digna?
O pertencimento de uma pessoa com a sua região é o que há de mais lindo. Por mais que tenha esse processo doloroso, o que mais escuto é “quero voltar para o meu bairro”. E a democracia não é só o voto, né? Tenho conversado muito com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Temos de criar um consenso. Em determinadas regiões, as pessoas não devem voltar mesmo. Não vou lá botar uma cerca sem dialogar. Não vou fazer isso. Para você dizer para essas pessoas não voltarem, precisa dar a elas uma opção segura. Não sei ainda se são 6 mil, 10 mil ou 20 mil famílias, pois os cadastros estão ainda em andamento. Estamos vendo quantas casas vão ser reconstruídas.
Mesmo que o presidente Lula determinasse agora que a Caixa comprasse casas para todos, não tem para todo mundo neste momento. Além disso, para fazer reassentamento tem de levar em conta a condição social, a renda. Alguém que ganha R$ 109 do Bolsa Família tem condições de pagar condomínio? Ou conta de luz? Claro que não.
Há estimativa de que um gasto de R$ 500 milhões nos diques teria evitado prejuízo superior a R$ 8 bi. Por que isso não foi feito?
Não há esta estimativa. A infraestrutura de macrodrenagem de Porto Alegre exige investimentos de mais de R$ 5 bilhões em obras de grande complexidade em todas as regiões da cidade para se fazer o enfrentamento dos alagamentos. Deste valor, conforme levantamento do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), são necessários inicialmente R$ 500 milhões (ou seja, 10% do montante previsto para a macrodrenagem) somente para a recuperação do sistema de contenção de enchentes, composto por 23 casas de bombas, comportas e diques.
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Qual seria o seu modelo de urbanização?
Na minha visão urbanística, a solução é adensar a cidade. É colocar pessoas onde já há infraestrutura, evitando a ocupação de solo urbano da periferia. Tem outra questão. Se há 10 mil pessoas na lista de espera por casa, quais serão as primeiras escolhidas? Mulheres com mais filhos? Mães solteiras? Não vou fazer sorteio. Já aprovamos uma estadia solidária, que é dar um valor para que nesse momento de transição os desabrigados ajudem a pagar as contas de onde eles estão.
Onde entram as cidades provisórias?
Talvez o melhor termo seja cidade solidária. Assinei convênio com o governo estadual para uma área em Porto Alegre. Já estamos fazendo drenagem e assinamos ofício para iniciar a instalação elétrica. O Sistema S vai bancar as estruturas, o governo municipal está fazendo a infraestrutura de água, aterramento, drenagem urbana, e depois a prefeitura vai entrar com serviço do lixo, segurança. Por enquanto, é só um local em Porto Alegre.
Começamos com 15 mil desabrigados em abrigos e estamos com 4,5 mil. Achamos que vai ter um residual de pessoas sem ter para onde voltar. Se não tem para onde voltar e se o voucher do aluguel solidário não é suficiente, ela precisa de um processo transitório.
O sr. mesmo morava numa casa que foi inundada. Quando se deu conta de que tinha que sair de casa?
Moro no Guarujá, um bairro que tem um calçadão lindo perto do Guaíba. Nas enchentes anteriores, tínhamos tido problemas. Na última, eu tinha comprado correndo 50 sacos de areia. Os vizinhos até pegaram alguns. A água veio até a porta e acabou não entrando naquele momento. Agora entrou. A Valéria (mulher de Melo) estava hoje (sexta-feira) fazendo a limpeza lá, com todos os meus vizinhos.
Que lições ficam para outras metrópoles?
As regiões metropolitanas vivem o mesmo drama que a gente em Porto Alegre, o crescimento desordenado. Não só nós, a América Latina. É preciso integrar os planos diretores da região metropolitana. A ocupação do solo urbano precisa ser revista. Precisa ter um grande plano nacional. Tem de ter um ‘SUS das enchentes’. O SUS está cheio de falhas, mas é um sistema que funciona. É tripartite, com funções do município, Estado e União.
O investimento pesado tem de vir da União, mas o gerenciamento pode ser compartilhado entre município e Estado. Talvez criar um grande instituto, que é a experiência da Holanda. Pode ser um modelo local e servir para outros Estados. Isso poderá, a qualquer momento, acontecer em qualquer canto.