Coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV), Joana Monteiro acredita que o Brasil começa a passar por um processo similar ao que aconteceu recentemente nos Estados Unidos, onde a divulgação de imagens de violência policial alimentou um importante debate. O caso mais emblemático foi o assassinato de George Floyd em Mineápolis, em 2020, embrião do movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam), por trás de megaprotestos nas ruas.
Na semana passada, circularam pelas redes sociais o vídeo de um policial militar de São Paulo jogando um homem do alto de uma ponte. Em outra gravação, um PM mata com tiros nas costas um rapaz que tentava roubar sabão em um mercado. A repercussão das imagens aumentou a pressão sobre o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que já registrava os números mais altos de letalidade policial desde 2020.
O governador reconheceu a necessidade de ajustes na corporação e admitiu ter “errado” ao questionar a eficácia do uso de câmeras nas fardas dos agentes de segurança. Apesar da crise, disse que vai manter Guilherme Derrite à frente da Secretaria da Segurança Pública.
Para Joana, a sucessão de denúncias contra abusos policiais mostra a capacidade de as câmeras aumentarem a vigilância da sociedade e do próprio governo sobre a ação policial. “A tecnologia vira o jogo ao mostrar imagens de total arbitrariedade”, disse ao Estadão.
Veja os principais trechos da entrevista:
Como a tecnologia muda a vigilância sobre a ação policial?
Vivemos em uma sociedade partida. Parte da população acha que a atuação policial é absurda, muitas vezes porque é vítima dessa atuação. Outra parte não vê problema, acha que a violência faz parte da ação policial, que o PM usou a força porque era necessário, que bandido bom é bandido morto. Muitas vezes é a palavra de um contra a do outro e a polícia costuma alegar que houve resistência, que foi atacada. Vale lembrar que a polícia só pode usar força em caso de resistência. Quando levantamos algumas questões, somos logo acusados de inimigos da polícia, o que não é verdade. Eu acredito na boa polícia. Mas quando esse tipo de ação é fomentada, você valoriza o mau policial e prejudica o bom. A tecnologia vira o jogo porque mostra cenas de total arbitrariedade. A câmera é uma prova objetiva. As cenas que vimos esta semana são muito impressionantes, do sujeito jogado da ponte sem oferecer nenhuma resistência, do segurança que nem foi atacado e atirou para matar o rapaz que roubou sabão em pó.
O que a senhora quer dizer exatamente com “vira o jogo”?
Estamos vivenciando um processo semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos. O que virou o jogo foi a divulgação de imagens de câmeras de vigilância, que mostravam a arbitrariedade e a violência policial. É importante lembrar que a vítima da violência tem dificuldade de sensibilizar a opinião pública, tem pouca credibilidade. A maioria sempre acha que essa vítima é um bandido, que a violência é um mal menor. Mas quando começam a aparecer imagens chocantes, quando há crianças envolvidas, a sensibilização é maior.
Essas imagens divulgadas esta semana que a senhora lembrou foram feitas por câmeras de segurança ou celulares de terceiros. Não são imagens das câmeras policiais. Qual a importância das imagens dos equipamentos nos uniformes?
A câmera corporal da polícia é extremamente importante até para que o bom policial tenha a sua imagem para responder a acusações. Porque as imagens externas podem ser cortadas, editadas. É bom para a proteção do policial ter a sua imagem (nos Estados Unidos, 62% dos departamentos locais de polícia usavam câmeras corporais em 2020, segundo dados do Departamento de Justiça americano).
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Outro aspecto importante a respeito das imagens divulgadas esta semana é que, agora, temos câmeras por todos os lados, registrando cenas de violência. Além disso, as imagens circulam rapidamente por conta das redes sociais. A percepção da população em relação à violência também muda?
Afeta a percepção sim. Na verdade, o número crescente de câmeras e a circulação cada vez mais rápida das imagens faz com que chegue ao nosso conhecimento uma quantidade muito maior de eventos e de forma impactante. Não é um relato, não é alguém te contando. É uma imagem. Com isso, a sensação de insegurança explode. Imagino que os eventos recentes tenham mudado um pouco a percepção sim, mas só saberemos com certeza quando fizermos uma pesquisa. Mas, quando a pessoa vê uma ação totalmente arbitrária contra uma pessoa que sequer estava reagindo, ela se coloca no lugar da vítima e começa a se sensibilizar.
O governador tinha um posicionamento contra as câmeras corporais dos policiais e voltou atrás. Como vê essa mudança?
Eu diria que a pressão pública aumentou muito. O projeto da câmera corporal é um projeto sério, planejado ao longo de cinco anos, e que foi suspenso por uma decisão política, houve uma mudança de visão da liderança política. Quando a liderança diz que não precisa usar a câmera, que a violência não é um problema, isso tem um impacto moral, porque o policial se sente autorizado a agir arbitrariamente.
O aumento do número de imagens é importante por todos os motivos apontados, mas também não é preciso ir além? Ou seja, essas imagens precisam efetivamente ser usadas como provas, as ações precisam ter desdobramentos.
Sim, esse é um segundo impacto do posicionamento da liderança política. As imagens das câmeras corporais são para serem usadas nos processos. Isso simplesmente não vai acontecer se a liderança optar por não usar. Então, voltando à pergunta anterior, só a mudança de posicionamento da liderança é algo positivo.
Uma polícia sem controle é a semente do surgimento das milícias?
É preciso deixar uma coisa muito clara: não acho que a polícia de São Paulo esteja totalmente sem controle. Pelo contrário, é uma polícia que tem muitos instrumentos internos de controle, uma das melhores do Brasil. O que estamos observando é justamente um processo de desmonte de algumas dessas estruturas de controle. Mas, sim, temos evidência no Rio de Janeiro, por exemplo, de que uma polícia com baixo controle é porta de entrada para práticas criminosas. O policial é um sujeito autorizado pelo Estado a usar a força em seu nome. Se o Estado não diz muito claramente em que momento ele pode usar a força, sob que condições, ele acaba tendo incentivos muito claros de usar a força como bem entender, inclusive nas horas vagas, em seus negócios ilícitos. Os policiais precisam desses mecanismos de controle porque eles têm nas mãos o poder de negociar o nosso bem maior, que é a nossa vida. Por isso os policiais atuam com um nível de escrutínio maior que qualquer outro funcionário público.
E como a senhora vê a política de segurança de outros Estados? É um problema generalizado?
Não, não é. Cinco Estados detêm 50% do problema (Bahia, Rio de Janeiro, Pará, Goiás e São Paulo, em números absolutos). A melhor forma de medir isso é pelo número de mortes por intervenções policiais. A Polícia costuma dizer que isso está relacionado aos níveis de criminalidade. Mas não é verdade. Gosto de citar os exemplos de Bahia e Ceará, que têm vários grupos criminosos armados atuantes. Na Bahia, o número anual de mortes por ação policial é 1.800, enquanto no Ceará são 200.
Que práticas policiais acabam fomentando a violência? O que pode ser mudado?
A principal abordagem hoje é militarizada, com armas pesadas, grandes grupos. Ao mesmo tempo, deixamos de lado o patrulhamento das ruas, o policiamento a pé dos centros comerciais. Está comprovado que a simples presença da polícia faz muita diferença. Mas a maior parte das vezes se passa o tempo todo pensando em mega operações. Essa estratégia muda a perspectiva, por exemplo, de que tipo de policial deve ser valorizado, joga a luz em cima dos batalhões especiais e deixa de lado os locais. É como se déssemos atenção apenas a grandes hospitais de alta especialização e deixássemos de lado os postos de saúde que são onde a maioria dos problemas é resolvido.