Ao Saul GalvãoHá um restaurante na Rua Lisboa muito peculiar, o Genova. Nasceu de um grupo de amigos, João e Luiz Giannesi, Mario e Eduardo, que gostavam de cozinhar, inventar e experimentar receitas das regiões da origem de suas famílias. Vê-se que são italianos. Anos atrás, desciam para Boiçucanga, punham-se a jogar cartas, na madrugada preparavam um espaguete ao gorgonzola, cujo aroma chegava até Maresias. Depois, começaram a fazer jantares ou almoços semanais em São Paulo. Cozinhavam para eles, convidavam amigos, amigos levavam amigos, um dia decidiram abrir um restaurante diferente. Conseguiram uma sala íntima na Rua Lisboa e com três toques montaram um cenário acolhedor, janelas com cortinas de renda, um jeito europeu em Pinheiros. Parece a casa da gente, ou melhor, a casa de um amigo que se esmera para nos receber.Passou o tempo, os sócios se separaram, restaram João e Terezinha, sua mulher. Ele pensou em fechar, ainda que tivesse clientela fiel. Ela bateu o pé: "Fechamos e ficamos em casa vendo televisão? Por Deus, nem pensar!" João continuou, pelo bem dos que conhecem o Genova. Há sessões de degustações de vinho e a tradição dos rituais de sexta-feira com explicações de cada prato oferecido. São os recantos secretos de São Paulo, lugares aos quais voltamos, estabelecemos o hábito de comer sempre ali.Dia desses, ao entrar no Genova, vi uma enorme mesa preparada para 17 pessoas. Naquele momento havia apenas duas mulheres de meia-idade sentadas bebericando um vinho e comendo crostinis, polenta com funghi ou linguiça calabresa, antepastos. Comecei a almoçar e elas foram chegando até ocuparem as 17 cadeiras. Perfumadas, em vestidos de verão, sorriam, falavam alto, se abraçavam, felizes. Cada uma trazendo um pequeno pacote, via-se que era um presente. Portanto, um aniversário. Então, uma coisa me chamou a atenção. Elas eram feias. Nenhuma daquelas mulheres faria um homem voltar o olhar na rua. Uma tinha os olhos baixos, a outra o nariz enorme, a terceira uma boca tão fina que mal se via o risco dos lábios, e havia orelhas grandes, pescoços compridos, ou curtos demais, queixos saliente, uma pinta debaixo dos olhos, ombros curvados, tiques nervosos. Desajeitadas, desengonçadas, sem graça. Ocorreu-me um pensamento maldoso: seria a convenção das feias do bairro?Em dez minutos, falavam, riam, uma cantou uma canção que levou todas a aplaudirem, outra comentou: "Com essa voz e esse jeito, você conseguiu o Amaury, que ninguém até hoje tinha conquistado, o Raj do escritório." Diga-se que o Raj do Caminho das Índias é a bola da vez entre as mulheres. Casos começaram a vir à tona, e nós, das outras mesas, ouvíamos, mas não nos incomodavam, eram histórias bem-humoradas, sarcásticas, irônicas, pitorescas. À certa altura, descobri que todas eram aniversariantes e estavam trocando presentes. Como era número ímpar, uma ia sobrar. Não sobrou, uma pensou e levou dois presentes. Dois deles, por serem mais volumosos, vi o que eram. Um, Os Miseráveis, de Victor Hugo, edição de luxo da Cosac Naif. Outro, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, edição da Agir, com as gravuras de século e meio atrás. Tenho os dois. Ainda se leem os bons romanções.Terminei meu almoço, fuzili com molico, torradinhas preparadas com azeite e um cheiro de aliche, tomei meu sauvignon blanc Flor de Pulenta, pedi um café, dois, uma grapa (se Ophir, meu médico ler isto!), fui ficando. Sorte a minha, uma das mulheres se levantou e foi ouvida em silêncio. "Estamos aqui, porque é o primeiro dia da nossa decisão de jogar fora. Atirar ao lixo coisas e lembranças inúteis que ocupam espaço em nossas casas e cabeça. Cada uma tem um objeto, um momento. Viemos dispostas a abrir espaços, construir vazios para abrigar coisas novas, boas, que não nos amarrem, nem nos deixem patinando na vida. Liberar a mente do freio de mão."Passamos a ouvir trechos de histórias, anedotas, aventuras, sonhos frustrados, conquistas bem-sucedidas, micos, elas tinham uma incrível noção do ridículo do mundo, e ríamos também, e nos admirávamos com tanta sinceridade e coragem, elas não estavam nem aí para os outros, partilhavam momentos especiais bons e ruins, amargos, trágicos. Não havia lamento, frustração, ressentimento, mágoas. De repente, percebi que elas não eram feias, aqueles pequenos defeitos que anotei iam desaparecendo, como no trabalho de fotoshop do computador, apagados por qualidades raras, difíceis hoje em dia, as do desprendimento, do humor, da brincadeira, do não levar a sério a vida e as confusões da vida, riam dos enganos, insucessos, erros, sabiam da pouca importância de tudo isso. Aquela lição me envolveu, o importante não era feiura ou beleza, e sim a capacidade de ser, estar aberto, gostar da vida, se alegrar, mostrar prazer e empenho na possibilidade de mudar, avançar, cancelar amarras, grilhões.Rápidos, sutis, os jogos de palavras se sucederam intensos e elas se transformaram como a gata borralheira dos contos de fadas. Quando me levantei e passei pela mesa, elas erguiam um brinde a alguma coisa. Belas, como se tornaram belas aquelas 17 mulheres. Ao sair, carregava uma dúvida. Feiura? Não está na nossa maneira de olhar, em nossos preconceitos, mesquinhezas? Afinal, o que é um rosto? Como desvendá-lo?