Os Estados Unidos vão intervir na Líbia? Marines alcançarão a costa de Trípoli ou Benghazi e uma nova frente de batalha se abrirá, juntamente com os bolsos dos contribuintes americanos? Por incrível que pareça, depois de todo o criticismo gerado pela invasão ao Iraque e ao Afeganistão, não falta torcida para que Washington aja mais uma vez como justiceiro do planeta. Se por um lado o presidente mudou, e do atual se espera um governo mais pacifista e diplomático que o anterior, por outro o país é o mesmo - e continua cheio de businessmen que veem a guerra como... como business, oras.
Em muitos casos, o interesse por trás de incursões bélicas é notório, como faz lembrar o vice de George W. Bush, Dick Cheney, ligado à indústria petrolífera. Mas há causas mais discretas, em que empresários se tornem "heróis" e não vilões. Um exemplo disso é New Orleans, conhecida pelo jazz, pelo carnaval, pela arquitetura colonial e pelos furacões. Uma coisa de que se fala menos, porém, é que a cidade de Louis Armstrong teve papel crucial na maior das invasões americanas, a que ajudou a derrubar Adolf Hitler na 2ª Guerra Mundial. Mas precisamente um de seus moradores: Andrew Jackson Higgins, um eloquente homem de 1,80 m, do tipo que se fazia facilmente notar quando entrava em qualquer salão.
Nascido em Nebraska, mas baseado em New Orleans, Higgins foi o inventor do tipo de barco usados aos milhares no desembarque das tropas aliadas na Normandia, em 6 de julho de 1944, e também na invasão da Sicília, de Iwo Jima e de outros pontos inimigos no Mediterrâneo e no Pacífico. Sua história, típica de um empreendedor americano que juntou o faro por oportunidade com o cheiro do dinheiro grande e, meio sem querer, alterou o curso da história, está brilhantemente contada no Museu Nacional da 2ª Guerra Mundial de New Orleans.
Higgins perdeu o pai aos 7 anos e começou a trabalhar aos 9, cortando grama. Em pouco tempo, coordenava uma equipe de cortadores, juntando dinheiro suficiente para construir seu primeiro barco, uma paixão. Não gostava de ir à escola, mas adorava história militar. Em 1910, enxergou na exportação de madeira um negócio lucrativo, mudou-se para New Orleans aos 26 anos e tomou US$ 5 mil dólares emprestados para abrir o próprio negócio. Faturou alto, mas percebeu que poderia lucrar mais se melhorasse o sistema de transporte da madeira. Foi fazer um curso de arquitetura naval para construir os próprios barcos, em vez de alugar os dos outros. O fundamental: entendeu que o calado dos barcos precisaria ser o menor possível, porque a região de New Orleans é cheia de pântanos. Quanto mais rasa a embarcação, melhor. Para desembarcar rapidamente levas de soldados numa praia, vale o mesmo raciocínio, como os nazistas sentiriam na pele anos depois, no litoral norte da França.
Higgins precisou de perseverança e uma dose de QI ("quem indica") para convencer as autoridades militares dos EUA a levar os botes dele para o teatro de guerra. Fez o primeiro contato em 1928, sem sucesso. Continuou tentando, e nada. "Um pequeno empresário do sul, sem lobista, jamais passaria pela burocracia da Marinha", conta Alan Raphael, gerente de marketing do museu. Até que um dia, por meio de um amigo, Higgins conseguiu que o presidente Franklin Roosevelt conhecesse o barco de baixo calado. Entrou no páreo e venceu a concorrência para se tornar fornecedor da Marinha (nas sessões de exibição dos produtos ao governo, Higgins ainda salvou tripulantes de embarcações concorrentes que foram parar na água).
Só que, para uso militar, seu lanchão ainda tinha um defeito. Do jeito que tinha sido projetado, o desembarque dos soldados precisaria ser feito pelas laterais, deixando-os mais tempo na água e, portanto, mais vulneráveis. Uma ligação direta e mais rápida com a terra firme seria mais segura. A solução veio do inimigo. Os japoneses, então em guerra com os chineses, usavam embarcações em que os combatentes desembarcavam pela frente, por uma rampa. Espiões americanos fotografaram, Higgins copiou. Estava criado o LCVP (Landing Craft Vehicle Personnel), mais conhecido como "Higgins boat". Ele tinha uma rampa de aço adaptada a um casco de madeira e era capaz de transportar e desembarcar pessoas e jipes. Com a rampa, o tempo de desembarque caiu de 57 para 32 segundos.
Cada um desses botes com jeito de balsa transportava 39 militares, incluindo 3 ou 4 tripulantes. Um deles trabalha há 11 anos no museu de New Orleans, explicando aos visitantes a operação do barco e relembrando, orgulhoso, suas histórias. Bill Cassidy, 19 anos na época e 86 hoje, participou das campanhas na Itália e no Pacífico. Era responsável por operar a rampa e também as armas de fogo situadas na popa. Tiro, não deu nenhum. Mas trabalhou duro desembarcando soldados. Eram cerca de 2 mil em cada leva de ataque. "Eu ficava indo e voltando do navio à praia. Foram três dias para levar todo mundo", contou ao Aliás.
A grande vantagem dos Higgins boats, explica Cassidy, era permitir que as tropas desembarcassem em qualquer ponto do litoral, não dependendo de portos ou atracadouros e dificultando a estratégia de defesa inimiga. E então, quando o führer se deu conta, os militares trazidos pelos lanchões de Higgins batiam em sua porta e a Europa já não era mais parte do seu pretenso império.
Segundo um jornal alemão, o próprio Hitler teria se referido a Higgins como um "novo Noé". Na mente doente do líder alemão, os americanos também usariam os barcos inovadores para transportar material a ser usado na transformação da América do Sul em "um continente de sinagogas". O tal jornal era um veículo de propaganda nazista, evidentemente. Em resposta, um colunista americano chamado Gladstone Williams escreveu que os barcos não seriam usados para uma "colonização sionista", e sim para transformar a Alemanha no bíblico Monte Ararat, "onde o desembarque da invasão final será um prelúdio para a paz".
Dwight Eisenhower, um dos generais encarregados da invasão da Normandia, que depois foi presidente dos EUA, chamou Higgins de "o homem que venceu a guerra para nós". Poderia ter sido algum engenheiro naval japonês, afinal eles inventaram a tal rampa. Mas relevemos esse detalhe. Quem conta a história, afinal, é sempre o vencedor.
O ídolo de Eisenhower morreu em 1952, aos 65 anos, após construir mais de 20 mil barcos para a 2ª Guerra, entre LCVPs e outros modelos, todos nas instalações das Indústrias Higgins, em New Orleans. Não estava pobre, mas também não ficou rico como um Dick Cheney. Certa vez foi acusado de usar métodos ilícitos para obter o aço usado nos barcos. Ainda que nada tenha sido provado, o assunto repercutiu e virou pauta no Congresso.
Contrariado, Higgins escreveu uma carta em tom duro, dizendo-se bode expiatório e anunciando a devolução de uma bolada aos cofres públicos. Reduziu o preço de muitos dos seus barcos de US$ 40 mil para US$ 25 mil, abrindo mão de quase meio milhão de dólares em apenas um dos contratos vigentes à época. Escreveu ainda que não precisava mais ganhar dinheiro, que àquela altura só queria era ajudar a vencer a guerra, viver decentemente e morrer em paz. E mais: que construíra suas fábricas sem um único tostão do governo, pagava uma fortuna em impostos e conhecia bem os métodos de Washington, "que não buscavam outra coisa na vida a não ser um cabide para pendurarem seus chapéus". O pai do LCVP adorava se apresentar como empreendedor, em antítese ao típico burocrata palaciano.
Motor econômico local. Depois da guerra, uma série de problemas afetou os negócios de Higgins, como greves, disputas judiciais, questões mercadológicas e um devastador furacão ocorrido em 1947, que acabou com uma de suas fábricas. No final de 1948, a empresa que chegou a ter 20 mil funcionários e contratos milionários, tinha 75 empregados e não conseguia crédito para construir sequer um caiaque. Ainda assim, ao morrer (ele era diabético e sofria de úlcera), deixou para os herdeiros contratos comerciais e militares que totalizavam US$ 61 milhões. Mas os herdeiros não seguraram a peteca: levaram as Indústrias Higgins à bancarrota depois de uma série de investimentos que deram errado - destaque para a fabricação de trailers e canoas. As fábricas de New Orleans que não foram demolidas viraram centros de treinamento da polícia, restaurantes e centros de produção de tanques de combustível da Nasa. E embora os americanos adorem celebrar seus heróis de guerra, o feito de Higgins não se tornou muito conhecido nem nos Estados Unidos. A rua do museu de New Orleans leva seu nome, mas poucos sabem quem é o homenageado. "A população em geral não conhece essa história", lamenta Alan Raphael. "Lutamos para mudar isso o tempo todo." Mas os folhetos turísticos da cidade e guias de viagem continuam colocando Higgins como nota de pé de página.
Com o Museu da 2ª Guerra é um pouco diferente porque ele tem dois padrinhos fortes: Steven Spielberg e Tom Hanks, que retrataram o Dia D no filme O Resgate do Soldado Ryan e na série de TV Band of Brothers. Os dois ajudam financeiramente a entidade. Um exemplar do Higgins boat fica no saguão de entrada, com uma aeronave C-47, que transportava até 38 militares. Ela é enorme e fica presa ao teto. Dá certa aflição passar por baixo. O museu recebeu 326 mil visitantes em 2010, ou seja, quase mil por dia, segundo o gerente de marketing Raphael. Ele diz que 20% declaram ter ido à cidade especificamente para isso. "Por isso, tentamos mostrar que somos um motor econômico local." Nada comparado à guerra em si, que movimentou praticamente toda a economia de New Orleans na época. "A população era de 90 mil pessoas, das quais 30 mil trabalhavam na construção dos botes e outras 20 mil nos fornecedores de peças", lembra Raphael. "Brancos e negros, mulheres e homens, todos trabalhavam juntos, ganhando o mesmo salário. E não tivemos nenhum problema. Era uma situação incomum." Bill Cassidy vai além: "Tenho orgulho do que fizemos, todos no meu bote tinham". A memória de Andrew Jackson Higgins agradece.