"Eu achava normal quando era um beliscão. Depois, quando começou a puxar meu cabelo, pensei: ‘Se eu casar com ele, me mata’." Aos 14 anos, Cláudia (o nome é fictício) começara a namorar um rapaz mais velho, extremamente ciumento. Um dia, quando a viu conversando com um surfista na praia, o namorado agarrou sua cabeça e a enfiou na água, num "caldo" de intermináveis segundos, enquanto ela esperneava, submersa, acreditando que ia morrer.
Vítima de violência do pai desde a infância, Cláudia ficava impotente diante das agressões e tendia a acreditar que "faziam parte do amor". "O fato é que o meu pai me batia, então, até que ponto eu poderia interpretar um tapa, um aperto forte no braço, um beliscão, um puxão de cabelo como um "não gostar"?", questiona.
O primeiro ato de libertação ocorreu aos 18 anos, quando já desenvolvida fisicamente, respondeu aos insultos do pai e o agrediu. O segundo, anos depois, quando, ao bater no filho de 3 anos, percebeu que estava repetindo o ciclo trágico de sua família também levado adiante por seu irmão - que espancava mulher e filhos. "Prometi neste dia que nunca mais bateria e que só o colocaria de castigo", lembra-se. No entanto, ainda hoje, uma pergunta a atormenta: "Qual a fronteira entre amar uma pessoa e querer matá-la?"
O caso acima é uma das oito histórias verídicas envolvendo amor e violência relatadas no filme Amor?, do cineasta João Jardim, em cartaz em São Paulo. O filme lança luz sobre o tema da violência doméstica, especialmente contra a mulher, uma realidade presente em milhões de lares brasileiros e considerada uma preocupação para 56% das mulheres brasileiras, segundo pesquisa do Ibope e do Instituto Avon, realizada em 2009.
Dependência - Calcula-se que, no País, metade das mulheres agredidas sofra sem pedir ajuda. Os agressores são maridos, companheiros ou ex-companheiros. Entre as que não denunciam, as razões são: dependência financeira (24%), medo de serem mortas caso rompam a relação (17%) ou vergonha de admitir a agressão (8%).
Com base na experiência de 20 anos à frente da 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, em São Paulo, a delegada Celi Paulino Carlota identificou uma trajetória comum entre os casos que chegam à polícia. A primeira fase da violência é falar alto e perder o respeito. Depois vêm as ofensas morais e o empurrão. Daí, para o pior. Muitos agressores se arrependem, prometem mudar, dão presentes e, assim, convencem a mulher de que tudo ficará bem. Ledo engano. O ciclo se repete e a violência volta com mais intensidade. "O erro é dar mais uma oportunidade, mas a ameaça pode ser concretizada e isso pode levar à morte", avalia a delegada.
Legislação - Graças à Lei Maria da Penha (leia texto ao lado), a violência doméstica contra a mulher deixou de ser um crime de menor poder ofensivo. E, com a maior divulgação do tema, as denúncias estão crescendo. Houve aumento de 123% no número de queixas à Central de Atendimento a Mulher - Ligue 180, da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), na comparação entre 2009 e 2010.
Além de penas mais rigorosas, houve ganhos de agilidade. O processo, que antes passava por dois juízes, atualmente é resolvido por um só. "A delegacia tem 48 horas para enviar o processo para o juizado e, este, 48 horas para responder. O mesmo juiz que vai julgar a lesão também vai afastar o agressor do lar", explica a delegada Celi. A lei prevê a saída do agressor de casa, proteção dos filhos, distância mínima entre eles e, em casos extremos, abrigo para a mulher.
Não bastasse todo o trauma, a violência doméstica também tem um custo social. Segundo dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, um em cada cinco dias de falta ao trabalho no mundo é causado pela violência sofrida pelas mulheres dentro de suas casas. A instituição estima que o custo total da violência doméstica varia de 1,6% a 2% do PIB de um país.
Passado um ano do seu segundo casamento, o músico carioca Walter (nome fictício), de 51 anos, foi parar na delegacia por agredir seriamente sua mulher. Como trabalham juntos, as pessoas mais próximas ficaram sabendo. Na delegacia, reparou num cartaz anunciando o Noos - uma ONG que trabalha para a prevenção e interrupção da violência intrafamiliar e de gênero, entre outras coisas -, e foi procurá-los. Hoje, diz que aprendeu a controlar a pressão. "Aprendi a me proteger das emoções externas, a não chegar mais àquele estado."
Para além das estatísticas, é difícil enxergar a presença de razão nos relatos de violência. "Impressionante como se chega ao ponto em que matar ou não matar depende de um segundo, literalmente de uma fagulha, um barulho qualquer que desvie a atenção, tire a concentração, afaste a pessoa da vertigem", afirma a jornalista Renée Castelo Branco, responsável pela coleta e análise de mais de 60 depoimentos para o filme Amor? em delegacias de polícia, juizados e organizações de proteção e apoio, tanto a mulheres vítimas de agressão quanto a homens agressores.
Após a experiência de ouvir tantos relatos, Renée não afirma categoricamente que amor e violência são indissociáveis, mas acredita que praticamente todas as relações de amor resvalam, em algum momento, para algum tipo de violência. "Basta olhar em volta e ver como as pessoas se comportam, com relação aos filhos, aos namorados e namoradas, aos pais."
Ninguém precisa esperar ser espancada para procurar a delegacia. A ajuda pode começar a partir daquela briga em que a agressão, mesmo no âmbito verbal, passa dos limites, podendo ser enquadrada como violência psicológica. É a partir desse ponto que se deve procurar ajuda psicológica e social numa ONG especializada ou no Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
Unidades de apoio - Há também serviços que funcionam em hospitais e universidades e que oferecem atendimento médico, assistência psicossocial e até orientação jurídica. Outro caminho são as Defensorias Públicas e Juizados Especiais, nos Conselhos Estaduais dos Direitos das Mulheres e em organizações de mulheres. E se achar que a própria vida ou a dos filhos e familiares está em risco, a vítima pode ter ajuda de casas-abrigo, que são moradias em local secreto em que fica afastada do agressor.
O exemplo de Maria da Penha
A farmacêutica cearense que deu nome à Lei Maria da Penha e voz a tantas mulheres sofreu uma série de violências. Um dia, acordou com um tiro nas costas que a condenou a viver numa cadeira de rodas. Maria da Penha lutou durante 19 anos e 5 meses, mas só quando faltavam seis meses para o crime prescrever é que o agressor foi julgado. Isso porque ela buscou ajuda em órgãos internacionais. Ele foi condenado, mas saiu do fórum em liberdade. Ela escreveu o livro Sobrevivi e Posso Contar, de 1994, em que relatou o processo e as histórias de agressões que ela e as filha sofreram.
O julgamento foi anulado. No segundo, em 1996, ele voltou a ser condenado e, mais uma vez, saiu em liberdade. Duas ONGs internacionais denunciaram o Brasil no Comitê Interamericano dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Condenado, o País foi obrigado a mudar as leis para que os autores de violência contra suas mulheres fossem punidos.
Fim do silêncio
Uma campanha para quebrar o silêncio, informando a sociedade sobre a dimensão e a gravidade do problema no Brasil. Com esse objetivo, o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) criou a Campanha Bem Querer Mulher. A ideia é financiar projetos de prevenção e apoio à mulher vítima de violência física, sexual e moral. Em março, um leilão beneficente de obras de arte ajudou a arrecadar fundos para a causa.
SERVIÇO:
SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA MULHERES: 180
1ª. DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER: 3241-3328
CENTRO MARIA MIGUEL PARA O ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA: 6581-3135
CENTRO DE REFERÊNCIA ÀS VÍTIMAS
DE VIOLÊNCIA: 3866-2756
CRAVI - CENTRO DE REF. E APOIO À VÍTIMA: 3666-7778
INSTITUTO NOOS: (21) 2197-1500 - WWW.NOOS.ORG.BR