Se as lives da cantora sertaneja Marília Mendonça normalmente chamam atenção pela quantidade de público, a última delas, realizada no dia 8, virou assunto por outro motivo, que levou ao ‘cancelamento’ da artista nas redes sociais. Entre uma música e outra, a cantora disse que um colega teria beijado “a mulher mais bonita da vida dele” em uma boate gay de Goiânia e riu com membros da banda, comentário que rendeu acusações de transfobia e se tornou um dos temas mais comentados no Twitter. O episódio foi tido como mais um da chamada cultura do cancelamento, que, sobretudo a partir do ano passado, tem sido comentada a exaustão.
Não à toa, o comitê do dicionário australiano Macquarie elegeu o termo como a expressão que sintetiza 2019 — e essa tendência não parece estar desacelerando. Atualmente, a proporção do fenômeno é tamanha que coloca na mesma lista nomes como Marília Mendonça, a chef Paola Carosella e até J. K. Rowling — a autora de Harry Potter coleciona polêmicas na internet.
O que é cancelamento?
O cancelamento é a ação de deslegitimar a presença de pessoas ou organizações no debate público. Desse modo, seja por conta de um erro cometido ou de um acontecimento que tenha gerado reação negativa, subentende-se que não é aceitável que determinada parte reivindique espaço para se posicionar. Ainda que não ocorra exclusivamente com celebridades, é por meio delas (como ‘canceladoras’ ou ‘canceladas’) que o fenômeno ganha maior proporção. E tudo isso é validado por um movimento em massa, um efeito manada, explica o coordenador do mestrado em Gestão e Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Eaesp), Cláudio Couto.
“O cancelamento é inócuo e extremamente problemático. Ainda que o termo tenha ganhado mais força de uns anos para cá, é possível até fazer paralelos com o ostracismo”, complementa. O fenômeno mencionado foi um tipo de punição aplicado na Grécia, em meados do século V a.C., para banir ou exilar cidadãos por um período de dez anos.
Mas o cancelamento tem data de expiração? De acordo com Carolina Terra, doutora em interfaces sociais e professora da Faculdade Cásper Líbero, os tensionamentos da prática são vários e perduram de formas distintas pelo tempo — tanto é que há as mais distintas ‘listas de cancelados’, que rememoram quem já foi alvo e deve continuar sendo ignorado. “Mesmo que o fenômeno esteja localizado no ambiente digital, há cancelamentos que também culminam em perseguições no offline e até em demissões”, destaca.
Dessa forma, não há bem um período em que o cancelamento ‘prescreve’. Para Lilian Carvalho, coordenadora do núcleo de Comunicação, Marketing e Redes Sociais Digitais da FGV/Eaesp, a expressão tomou o lugar de um termo um tanto mais antigo, o linchamento virtual, e ganhou outra proporção — inclusive para responsabilizar figuras ou acontecimentos do passado. “Quando falamos de cultura do cancelamento, estamos falando também do tribunal da internet, que processa e julga”, completa.
No que consiste a ideia de cultura do cancelamento?
A partir do momento em que os cancelamentos se consolidam como algo sistemático, inclusive gerando a expectativa de quem será o próximo ‘cancelado’, vem à tona a ideia de cultura do cancelamento. Ainda que seja difícil precisar uma linha do tempo, o termo ganhou mais notoriedade com o movimento #MeToo, de 2017, que surgiu com o objetivo de encorajar denúncias de assédio e de agressão sexual. A repercussão foi decisiva para impulsionar o julgamento do ex-produtor de cinema Harvey Weinstein, o que também gerou algumas distorções.
Segundo Isabela Reis, apresentadora do podcast Angu de Grilo e criadora de conteúdo digital, muita coisa passou a ser “colocada no mesmo balaio”. Para ela, crimes nem sequer entram no debate da cultura do cancelamento, pois são julgados pela lei. “Não é um tweet que tem o poder de moderar aquilo. Podemos tentar falar sobre isso nas redes na tentativa de explicar o que está por trás, mas crimes são respondidos judicialmente”, ressalta.
Em uma das edições de julho do programa da TV Cultura Roda Viva, apresentado por Vera Magalhães, o artista Emicida destacou as diferenças entre a responsabilização de pessoas sobre seus atos, que seria algo natural, e o cancelamento em si, que seria mais sistêmico. Segundo ele, é "problemático desconsiderar as nuances e complexidades de tudo”. Por conta de grande parte das pessoas se opor à cultura do cancelamento, quando alguém se vê pressionado a se posicionar sobre alguma crítica, pode se dizer vítima do fenômeno em uma tentativa de gerar comoção.
De modo geral, os pesquisadores ainda encontram dificuldades na tentativa de delimitar o cancelamento enquanto ele ainda ocorre. Para os doutores em comunicação Maria Cristina Ferraz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Ericson Saint Clair, da Universidade Federal Fluminense (UFF), “a cultura do cancelamento não é mera atualização dos antigos linchamentos, assim como as fake news não são uma reedição dos boatos. Operar com analogias tende a empobrecer a reflexão, que deve procurar enfatizar a especificidade histórica dos fenômenos”.
Quais são os argumentos favoráveis e contrários à cultura do cancelamento?
O principal argumento citado a favor da cultura do cancelamento é de que ela incentiva o debate, lança luz sobre questões relevantes e, por vezes, faz com que pessoas que cometeram atos ofensivos reflitam e/ou sejam penalizadas. Assim, por ser um movimento coletivo que se dá nas redes sociais, a cultura do cancelamento teria o potencial de conscientizar e enriquecer o debate público.
Mas isso se sustenta? Para Cláudio Couto, pensar dessa forma gera uma discussão até mais extensa. “Se, para levantar uma pauta importante, é preciso destruir alguém até de maneira desproporcional, como ocorre nos cancelamentos, o custo disso é muito grande inclusive do ponto de vista moral. Não se pode instrumentalizar o indivíduo”, ressalta.
Em meio a isso, alguns dos principais argumentos contrários são de que a cultura do cancelamento expõe controvérsias com informações insuficientes, causa danos aos envolvidos, polariza ainda mais as discussões e acaba minando os debates — mesmo que o fenômeno seja motivado por um objetivo totalmente oposto.
Para Isabela Reis, as pessoas podem agir como ‘canceladores’ até quando não têm intenção. “Acho que eu também já tive essa posição de indignação e inflamação para pontuar as coisas. E quando você tem mais visibilidade, acaba amplificando aquilo, mesmo sem querer”, ressalta a criadora de conteúdo, que afirma ter parado de compartilhar posts que propagavam opiniões com as quais não concordava. “Funciona como uma espécie de bola de neve. Quando alguém quer reclamar de algo, pode acabar sendo machista, LGBTfóbico, racista e aquilo vira uma onda”, complementa.
Além disso, Isabela também destaca a importância de enxergar o racismo não só na fala, mas nas consequências geradas pelos casos de cancelamento. “Por mais absurdos que façam, pessoas brancas continuam com seus cargos, cativam mais seguidores fanáticos e até se elegem. Essa cultura tem um peso muito diferente para pessoas negras”, ressalta. Já a cantora Pabllo Vittar, em entrevista ao Estadão, questionou outro ponto: a influência dos gêneros na escolha dos ‘cancelados’. “A gente vê muitos homens fazendo ou falando as mesmas coisas supostamente erradas e por que ninguém os cancela?”, diz.
Impactos na saúde mental
E se engana quem pensa que essa atitude causa danos somente aos ‘cancelados’. De acordo com o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) Fábio Iglesias, o cancelamento é uma espécie de boicote que ganhou uma “nova roupagem”. “Além de causar danos psicológicos, fisiológicos e até neuroquímicos aos ‘cancelados’, essa cultura também pode minar a livre expressão. Isso porque as pessoas se sentem pressionadas a postar o que creem que as outras querem ler, e não necessariamente o que elas próprias pensam”, destaca o pesquisador ao tratar dos impactos da cultura do cancelamento na saúde mental.
Para Fábio, quando novas tecnologias surgem, elas parecem prometer algo que remete a empoderamento, mas acabam apenas dando espaço para comportamentos patológicos organizados em outros contextos. Com isso, as consequências podem ser as mesmas de uma humilhação offline, por exemplo. “E na internet isso é até mais encorajado por um conceito da psicologia chamado deindividualização, que possibilita uma maior agressividade por conta das pessoas não estarem cara a cara umas com as outras”, complementa.
Os algoritmos das redes sociais impulsionam a cultura do cancelamento?
Para a pesquisadora Carolina Terra, o fenômeno das ‘bolhas’ em redes como Twitter, YouTube, Instagram e Facebook é decisivo para aumentar os embates, já que essas pequenas comunidades pessoais são alimentadas pelos algoritmos e acostumam os usuários a se depararem apenas com opiniões alinhadas às suas. Quando aparecem as contrárias, ocorrem cisões mais bruscas.
Por outro lado, Lilian Carvalho destaca que os algoritmos das redes dão preferência para posts que façam os usuários passarem mais tempo nos aplicativos. E, para ela, não há publicação que faça isso melhor do que as polêmicas, já que elas têm grande potencial de “fazer com que as pessoas se indignem e fiquem presas em discussões, entrando no aplicativo a toda hora para verificar quem comentou, quem curtiu, quem discordou”.
Para Isabela Reis, o Twitter é a rede central da cultura do cancelamento. E ele ganhou mais relevância não só por passar a ser mais utilizado por uma maior quantidade de pessoas públicas, mas também por permitir a replicação de posts acrescentando comentários — o que abriu mais possibilidades. “Eu não sei se a forma com que os debates se desenrolam no Twitter é propícia para que as pessoas aprendam algo. Muitas vezes, só gera mais conflito”, explica. Para a criadora de conteúdo, a busca dos usuários pelos hits — posts que, por vezes polêmicos, atingem um alto nível de replicação — também acentua brigas e estresses, que estão até mais "à flor da pele" na quarentena.
Mas há alguma solução? De acordo com Carolina, pensar em possíveis intervenções no conteúdo é "extremamente polêmico", já que, dependendo do caso, pode configurar até censura. “Por outro lado, as plataformas têm obrigação de apresentar alternativas de resolução dos problemas. Além disso, alguns mecanismos de denúncia que até já existem poderiam até ser mais bem utilizados. Tem que partir também dos membros das plataformas”, destaca.
Em julho, uma carta assinada por mais de 150 artistas e intelectuais — entre os quais, J. K. Rowling, Margareth Atwood e Noam Chomsky — condenou a intolerância presente na cultura do cancelamento e firmou posição contra a “moda da humilhação pública”. Já a filósofa Djamila Ribeiro, após apresentar representação contra o Twitter no Ministério Público Federal (MPF), disse ao Estadão que “a gente está num momento em que as pessoas não sabem discordar sem atacar”.