O que é filantropia negra? Conheça o fundo de R$ 118 milhões


Fundos patrimoniais recebem doações e aportes para multiplicar recursos e investir em projetos e entidades que combatem o racismo estrutural

Por Gonçalo Junior
Atualização:

Durante o período de escravização de negros no Brasil, grupos filantrópicos se organizavam para comprar cartas de alforria, documento formal em que o proprietário concedia a liberdade a uma pessoa escravizada, oferecer médicos e advogados e realizar enterros dignos com “vaquinhas” e financiamentos coletivos. Esses grupos tinham uma relação direta com o sagrado e, por isso, eram irmandades e se reuniam nas igrejas – o único local onde os negros podiam se reunir. Era uma estratégia de solidariedade, fé, mas também de sobrevivência e resistência.

A atuação das irmandades se modificou com a abolição da escravatura, outras entidades surgiram com novas formas de articulação, mas foram mantidos os objetivos de combate ao racismo estrutural e a busca da autonomia das comunidades negras. Na filantropia negra, as doações são vistas como investimento social capaz de impulsionar comunidades e grupos em situação de vulnerabilidade ou discriminação.

Hoje, a luta das antigas irmandades foi atualizada a partir de fundos de investimento que captam doações no Brasil e no exterior, atuam para multiplicar esses recursos e continuam a combater o racismo.

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O empresário Giovanni Harvey, diretor-executivo do Fundo Baobá. Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Um deles é o Fundo Baobá para Equidade Racial, primeiro fundo brasileiro exclusivo para a promoção da equidade racial. O Baobá organiza editais públicos para projetos alinhados com suas diretrizes e ações e investe diretamente em projetos e comunidades. Desde sua criação, em 2011, a entidade já lançou 19 editais e apoiou 861 iniciativas nas áreas de educação, direitos humanos, enfrentamento ao racismo, desenvolvimento econômico e comunicação e memória. O número de pessoas impactadas já supera os 800 mil, principalmente no Nordeste.

Mas, de onde vem o dinheiro para essas iniciativas? A história do Fundo Baobá começa em 2006 após a articulação entre o movimento negro e a Fundação Kellogg, uma das maiores entidades filantrópicas do mundo e responsável pelo aporte inicial de R$ 25 milhões. No ano passado, o Baobá foi uma das entidades beneficiadas pelas doações da bilionária americana Mackenzie Scott, que ajudou Jeff Bezos a fundar a Amazon. De acordo com a própria doadora, o fundo que trabalha pela equidade racial recebeu US$ 3,5 milhões (cerca de R$ 18 milhões).

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Hoje, o Baobá constituiu um fundo patrimonial de R$ 118 milhões. A pretensão é dobrar essa reserva até 2026 e chegar aos R$ 250 milhões. Mas esse montante não pode ser totalmente investido. Os gestores podem resgatar e investir até 5% da média dos rendimentos dos últimos três anos. Ao longo dos 12 anos, o diretor executivo Giovanni Harvey conta que o fundo doou R$ 20 milhões.

No ano passado, o fundo alcançou a sustentabilidade operacional, ou seja, consegue caminhar com as próprias pernas sem a necessidade de doações para pagar o IPTU ou a folha de pagamento dos funcionários, por exemplo. “Queremos captar 130 milhões para preservar o que já temos, nossa sustentabilidade operacional, e ganhar mais musculatura. Não discutimos nossa subsistência com nossos parceiros. Nós discutimos os investimentos na causa do enfrentamento ao racismo”, diz Harvey.

Um fundo só de mulheres negras

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A trajetória do Agbara (potência, na língua ioruba) também é pioneira. Trata-se do primeiro fundo filantrópico de mulheres negras na América Latina. Por meio de jornadas de formação que abrangem formação técnica, política e étnico-racial, a organização já impactou 2.500 mulheres negras no Brasil. Desse total, 215 mulheres conquistaram aportes para seus negócios que variam de R$ 1.250 a R$ 5.000. Ao todo, 197 iniciativas já foram apoiadas financeiramente pelo fundo.

A ideia nasceu com a criação de uma rede de doadores em setembro de 2020, durante a pandemia de covid-19 em Campinas (SP). Uma amiga da pedagoga e cientista social Aline Odara, fundadora do Agbara, queria sua máquina de costura emprestada. Aline decidiu fazer uma vaquinha para comprar uma nova e envolveu amigos, conhecidos do grêmio estudantil do curso de Pedagogia, do movimento de mulheres, conhecidos de conhecidos.

Inicialmente eram 20 doadores doando R$ 20 por mês. Em três meses, a rede já tinha 300 doadores regulares doando R$ 30 mensais. Aline convidou a educadora Fabiana Aguiar para cofundar o fundo. Entre 2021 e 2022, o Agbara atraiu três investidores institucionais. E 250 pessoas físicas continuam doando.

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Fabiana Aguiar, cofundadora do Fundo Agbara, durante o lançamento do livro sobre iniciativas de filantropia negra Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Um dos projetos apoiados é o Instituto Rainhas do Mar, que luta contra as vulnerabilidades sociais no Recôncavo Baiano, priorizando a comunidade pesqueira e quilombola de Acupe. A organização, concebida por pessoas que vivem nas próprias comunidades, cuida do meio ambiente, fortalece o desenvolvimento socioeconômico e estimula a autonomia comunitária.

Unindo as duas pontas da história

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Além dos investimentos diretos, os fundos promovem editais para selecionar projetos alinhados às suas diretrizes. Aí, financiam essas iniciativas. No Baobá, as ações devem promover o enfrentamento ao racismo necessariamente; já o Agbara privilegia a cultura afro-brasileira, o impacto socioambiental positivo de ações desenvolvidas por mulheres negras, trans e lésbicas, mães solo, egressas do sistema prisional, idosas acima de 50 anos, migrantes e refugiadas.

As duas pontas da história, o passado colonial das irmandades e a aplicação financeira dos fundos patrimoniais, acabam se tocando. Em novembro, o Baobá vai doar R$ 500 mil para a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), entidade fundada em Salvador (BA), em 1832. A Protetora, como era conhecida, foi um marco na luta contra a discriminação racial. Fundada por trabalhadores negros, a organização auxilia e ampara historicamente pessoas em situação de vulnerabilidade. É a primeira doação substancial com recursos próprios, doação fora do edital, por decisão política da governança. “A intenção é fortalecer uma entidade de referência do movimento negro e evidenciar que a filantropia não é recente”, diz Giovanni.

O Agbara, por sua vez, resgata a equidade de gênero e a valorização da liderança das mulheres, características já estimuladas pelas irmandades, que tinham participação ativa de mulheres negras. Hoje, só mulher trabalha no Agbara, são 14 ao todo. “Precisávamos dar continuidade ao que fizeram nossos ancestrais. O que fazemos não é novo. São apenas novas formas de fazer. Acessamos a universidade, acessamos o letramento racial e compreensão da operação do racismo. Mas as pessoas não estão acostumadas a ver mulheres negras em posição de liderança”.

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Também existem outras formas de captação. A Pretahub, plataforma de formação e aceleração do empreendedorismo negro, adota duas formas de gerar recursos. Como empresa, a entidade oferece consultoria, prestação de serviços em cultura organizacional com foco em equidade racial. Sem fins lucrativos, atuando como ONG, a Pretahub capta recursos com editais públicos e privados, leis de incentivo à cultura e investimento social privado e filantropia. Mais de 80% dos negócios são liderados por mulheres negras, nas áreas de gastronomia, moda, beleza, games, turismo, educação entre outras.

Falta cultura de doação no Brasil, dizem especialistas

Em setembro, o Estadão acompanhou o lançamento do e-book “Histórias da Filantropia Negra que Transformam Comunidades”, que apresenta cases de instituições que já receberam aporte do fundo Agbara. O lançamento fez parte de eventos e atividades idealizadas pela Rede Comuá, da qual o fundo faz parte, em comemoração ao mês da filantropia no País. O encontro apontou alguns desafios da filantropia negra, como as dificuldades na captação de recursos e a dependência de editais nacionais. Em alguns casos, os editais estão distantes da realidade dos projetos, sem conhecer suas particularidades e necessidades reais.

Adriana Barbosa, CEO da PretaHub, avalia a filantropia negra como “defasada” do ponto de vista de investimento das grandes empresas e ou filantropos. “Vejo que faltam aportes nas questões raciais no Brasil, lideradas por pessoas negras”.

A própria expressão “filantropia negra” parece desfocada, pois ainda remete à imagem clássica de empresários e personalidades negras americanas fazendo doações para quem está começando. O ator Chadwick Boseman, morto em 2020 depois de ficar imortalizado no papel principal do filme Pantera Negra, teve os estudos de atuação pagos pelo veterano Denzel Washington.

De acordo com o Instituto Identidades do Brasil, US$ 185 milhões foram doados para causas de equidade racial nos Estados Unidos entre 2011 e 2019. Em 2020, após o assassinato de homem negro George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin e os protestos que tomaram conta do país, esse número cresceu para US$ 3,3 bilhões.

“Nos EUA, eles têm uma cultura de doação, das empresas e organizações; no Brasil, a gente vê a filantropia negra sofrendo com apagamento histórico. Nós não temos estudo sobre filantropia negra no Brasil”, diz Fabiana. Para modificar esse cenário, outra iniciativa do Agbara é a criação de um núcleo de pesquisa, documentação e memória.

No Brasil, o contexto é diferente, não é apenas “cortar e colar” do modelo americano. Um dos principais desafios é motivar as doações em organizações e fundos não apenas em projetos e iniciativas pontuais. Nesse contexto, o investimento na SPB ajuda a combater o apagamento histórico das organizações negras na filantropia, na opinião de Giovanni.

“Nos Estados Unidos, existe um estímulo tributário para a doação. Temos outro ambiente, outro arcabouço legal. A desproporção da representatividade é o ponto central na comparação entre Brasil e Estados Unidos. Lá, a população é minoritária, mas alcançou uma representatividade que não temos aqui. O primeiro passo é reconhecer aquilo que já vem sendo feito pela filantropia negra no Brasil”, completa Giovanni.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fundo Baobá de Equidade Racial, o Fundo Agbara e a plataforma Pretahub

Durante o período de escravização de negros no Brasil, grupos filantrópicos se organizavam para comprar cartas de alforria, documento formal em que o proprietário concedia a liberdade a uma pessoa escravizada, oferecer médicos e advogados e realizar enterros dignos com “vaquinhas” e financiamentos coletivos. Esses grupos tinham uma relação direta com o sagrado e, por isso, eram irmandades e se reuniam nas igrejas – o único local onde os negros podiam se reunir. Era uma estratégia de solidariedade, fé, mas também de sobrevivência e resistência.

A atuação das irmandades se modificou com a abolição da escravatura, outras entidades surgiram com novas formas de articulação, mas foram mantidos os objetivos de combate ao racismo estrutural e a busca da autonomia das comunidades negras. Na filantropia negra, as doações são vistas como investimento social capaz de impulsionar comunidades e grupos em situação de vulnerabilidade ou discriminação.

Hoje, a luta das antigas irmandades foi atualizada a partir de fundos de investimento que captam doações no Brasil e no exterior, atuam para multiplicar esses recursos e continuam a combater o racismo.

O empresário Giovanni Harvey, diretor-executivo do Fundo Baobá. Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Um deles é o Fundo Baobá para Equidade Racial, primeiro fundo brasileiro exclusivo para a promoção da equidade racial. O Baobá organiza editais públicos para projetos alinhados com suas diretrizes e ações e investe diretamente em projetos e comunidades. Desde sua criação, em 2011, a entidade já lançou 19 editais e apoiou 861 iniciativas nas áreas de educação, direitos humanos, enfrentamento ao racismo, desenvolvimento econômico e comunicação e memória. O número de pessoas impactadas já supera os 800 mil, principalmente no Nordeste.

Mas, de onde vem o dinheiro para essas iniciativas? A história do Fundo Baobá começa em 2006 após a articulação entre o movimento negro e a Fundação Kellogg, uma das maiores entidades filantrópicas do mundo e responsável pelo aporte inicial de R$ 25 milhões. No ano passado, o Baobá foi uma das entidades beneficiadas pelas doações da bilionária americana Mackenzie Scott, que ajudou Jeff Bezos a fundar a Amazon. De acordo com a própria doadora, o fundo que trabalha pela equidade racial recebeu US$ 3,5 milhões (cerca de R$ 18 milhões).

Hoje, o Baobá constituiu um fundo patrimonial de R$ 118 milhões. A pretensão é dobrar essa reserva até 2026 e chegar aos R$ 250 milhões. Mas esse montante não pode ser totalmente investido. Os gestores podem resgatar e investir até 5% da média dos rendimentos dos últimos três anos. Ao longo dos 12 anos, o diretor executivo Giovanni Harvey conta que o fundo doou R$ 20 milhões.

No ano passado, o fundo alcançou a sustentabilidade operacional, ou seja, consegue caminhar com as próprias pernas sem a necessidade de doações para pagar o IPTU ou a folha de pagamento dos funcionários, por exemplo. “Queremos captar 130 milhões para preservar o que já temos, nossa sustentabilidade operacional, e ganhar mais musculatura. Não discutimos nossa subsistência com nossos parceiros. Nós discutimos os investimentos na causa do enfrentamento ao racismo”, diz Harvey.

Um fundo só de mulheres negras

A trajetória do Agbara (potência, na língua ioruba) também é pioneira. Trata-se do primeiro fundo filantrópico de mulheres negras na América Latina. Por meio de jornadas de formação que abrangem formação técnica, política e étnico-racial, a organização já impactou 2.500 mulheres negras no Brasil. Desse total, 215 mulheres conquistaram aportes para seus negócios que variam de R$ 1.250 a R$ 5.000. Ao todo, 197 iniciativas já foram apoiadas financeiramente pelo fundo.

A ideia nasceu com a criação de uma rede de doadores em setembro de 2020, durante a pandemia de covid-19 em Campinas (SP). Uma amiga da pedagoga e cientista social Aline Odara, fundadora do Agbara, queria sua máquina de costura emprestada. Aline decidiu fazer uma vaquinha para comprar uma nova e envolveu amigos, conhecidos do grêmio estudantil do curso de Pedagogia, do movimento de mulheres, conhecidos de conhecidos.

Inicialmente eram 20 doadores doando R$ 20 por mês. Em três meses, a rede já tinha 300 doadores regulares doando R$ 30 mensais. Aline convidou a educadora Fabiana Aguiar para cofundar o fundo. Entre 2021 e 2022, o Agbara atraiu três investidores institucionais. E 250 pessoas físicas continuam doando.

Fabiana Aguiar, cofundadora do Fundo Agbara, durante o lançamento do livro sobre iniciativas de filantropia negra Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Um dos projetos apoiados é o Instituto Rainhas do Mar, que luta contra as vulnerabilidades sociais no Recôncavo Baiano, priorizando a comunidade pesqueira e quilombola de Acupe. A organização, concebida por pessoas que vivem nas próprias comunidades, cuida do meio ambiente, fortalece o desenvolvimento socioeconômico e estimula a autonomia comunitária.

Unindo as duas pontas da história

Além dos investimentos diretos, os fundos promovem editais para selecionar projetos alinhados às suas diretrizes. Aí, financiam essas iniciativas. No Baobá, as ações devem promover o enfrentamento ao racismo necessariamente; já o Agbara privilegia a cultura afro-brasileira, o impacto socioambiental positivo de ações desenvolvidas por mulheres negras, trans e lésbicas, mães solo, egressas do sistema prisional, idosas acima de 50 anos, migrantes e refugiadas.

As duas pontas da história, o passado colonial das irmandades e a aplicação financeira dos fundos patrimoniais, acabam se tocando. Em novembro, o Baobá vai doar R$ 500 mil para a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), entidade fundada em Salvador (BA), em 1832. A Protetora, como era conhecida, foi um marco na luta contra a discriminação racial. Fundada por trabalhadores negros, a organização auxilia e ampara historicamente pessoas em situação de vulnerabilidade. É a primeira doação substancial com recursos próprios, doação fora do edital, por decisão política da governança. “A intenção é fortalecer uma entidade de referência do movimento negro e evidenciar que a filantropia não é recente”, diz Giovanni.

O Agbara, por sua vez, resgata a equidade de gênero e a valorização da liderança das mulheres, características já estimuladas pelas irmandades, que tinham participação ativa de mulheres negras. Hoje, só mulher trabalha no Agbara, são 14 ao todo. “Precisávamos dar continuidade ao que fizeram nossos ancestrais. O que fazemos não é novo. São apenas novas formas de fazer. Acessamos a universidade, acessamos o letramento racial e compreensão da operação do racismo. Mas as pessoas não estão acostumadas a ver mulheres negras em posição de liderança”.

Também existem outras formas de captação. A Pretahub, plataforma de formação e aceleração do empreendedorismo negro, adota duas formas de gerar recursos. Como empresa, a entidade oferece consultoria, prestação de serviços em cultura organizacional com foco em equidade racial. Sem fins lucrativos, atuando como ONG, a Pretahub capta recursos com editais públicos e privados, leis de incentivo à cultura e investimento social privado e filantropia. Mais de 80% dos negócios são liderados por mulheres negras, nas áreas de gastronomia, moda, beleza, games, turismo, educação entre outras.

Falta cultura de doação no Brasil, dizem especialistas

Em setembro, o Estadão acompanhou o lançamento do e-book “Histórias da Filantropia Negra que Transformam Comunidades”, que apresenta cases de instituições que já receberam aporte do fundo Agbara. O lançamento fez parte de eventos e atividades idealizadas pela Rede Comuá, da qual o fundo faz parte, em comemoração ao mês da filantropia no País. O encontro apontou alguns desafios da filantropia negra, como as dificuldades na captação de recursos e a dependência de editais nacionais. Em alguns casos, os editais estão distantes da realidade dos projetos, sem conhecer suas particularidades e necessidades reais.

Adriana Barbosa, CEO da PretaHub, avalia a filantropia negra como “defasada” do ponto de vista de investimento das grandes empresas e ou filantropos. “Vejo que faltam aportes nas questões raciais no Brasil, lideradas por pessoas negras”.

A própria expressão “filantropia negra” parece desfocada, pois ainda remete à imagem clássica de empresários e personalidades negras americanas fazendo doações para quem está começando. O ator Chadwick Boseman, morto em 2020 depois de ficar imortalizado no papel principal do filme Pantera Negra, teve os estudos de atuação pagos pelo veterano Denzel Washington.

De acordo com o Instituto Identidades do Brasil, US$ 185 milhões foram doados para causas de equidade racial nos Estados Unidos entre 2011 e 2019. Em 2020, após o assassinato de homem negro George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin e os protestos que tomaram conta do país, esse número cresceu para US$ 3,3 bilhões.

“Nos EUA, eles têm uma cultura de doação, das empresas e organizações; no Brasil, a gente vê a filantropia negra sofrendo com apagamento histórico. Nós não temos estudo sobre filantropia negra no Brasil”, diz Fabiana. Para modificar esse cenário, outra iniciativa do Agbara é a criação de um núcleo de pesquisa, documentação e memória.

No Brasil, o contexto é diferente, não é apenas “cortar e colar” do modelo americano. Um dos principais desafios é motivar as doações em organizações e fundos não apenas em projetos e iniciativas pontuais. Nesse contexto, o investimento na SPB ajuda a combater o apagamento histórico das organizações negras na filantropia, na opinião de Giovanni.

“Nos Estados Unidos, existe um estímulo tributário para a doação. Temos outro ambiente, outro arcabouço legal. A desproporção da representatividade é o ponto central na comparação entre Brasil e Estados Unidos. Lá, a população é minoritária, mas alcançou uma representatividade que não temos aqui. O primeiro passo é reconhecer aquilo que já vem sendo feito pela filantropia negra no Brasil”, completa Giovanni.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fundo Baobá de Equidade Racial, o Fundo Agbara e a plataforma Pretahub

Durante o período de escravização de negros no Brasil, grupos filantrópicos se organizavam para comprar cartas de alforria, documento formal em que o proprietário concedia a liberdade a uma pessoa escravizada, oferecer médicos e advogados e realizar enterros dignos com “vaquinhas” e financiamentos coletivos. Esses grupos tinham uma relação direta com o sagrado e, por isso, eram irmandades e se reuniam nas igrejas – o único local onde os negros podiam se reunir. Era uma estratégia de solidariedade, fé, mas também de sobrevivência e resistência.

A atuação das irmandades se modificou com a abolição da escravatura, outras entidades surgiram com novas formas de articulação, mas foram mantidos os objetivos de combate ao racismo estrutural e a busca da autonomia das comunidades negras. Na filantropia negra, as doações são vistas como investimento social capaz de impulsionar comunidades e grupos em situação de vulnerabilidade ou discriminação.

Hoje, a luta das antigas irmandades foi atualizada a partir de fundos de investimento que captam doações no Brasil e no exterior, atuam para multiplicar esses recursos e continuam a combater o racismo.

O empresário Giovanni Harvey, diretor-executivo do Fundo Baobá. Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Um deles é o Fundo Baobá para Equidade Racial, primeiro fundo brasileiro exclusivo para a promoção da equidade racial. O Baobá organiza editais públicos para projetos alinhados com suas diretrizes e ações e investe diretamente em projetos e comunidades. Desde sua criação, em 2011, a entidade já lançou 19 editais e apoiou 861 iniciativas nas áreas de educação, direitos humanos, enfrentamento ao racismo, desenvolvimento econômico e comunicação e memória. O número de pessoas impactadas já supera os 800 mil, principalmente no Nordeste.

Mas, de onde vem o dinheiro para essas iniciativas? A história do Fundo Baobá começa em 2006 após a articulação entre o movimento negro e a Fundação Kellogg, uma das maiores entidades filantrópicas do mundo e responsável pelo aporte inicial de R$ 25 milhões. No ano passado, o Baobá foi uma das entidades beneficiadas pelas doações da bilionária americana Mackenzie Scott, que ajudou Jeff Bezos a fundar a Amazon. De acordo com a própria doadora, o fundo que trabalha pela equidade racial recebeu US$ 3,5 milhões (cerca de R$ 18 milhões).

Hoje, o Baobá constituiu um fundo patrimonial de R$ 118 milhões. A pretensão é dobrar essa reserva até 2026 e chegar aos R$ 250 milhões. Mas esse montante não pode ser totalmente investido. Os gestores podem resgatar e investir até 5% da média dos rendimentos dos últimos três anos. Ao longo dos 12 anos, o diretor executivo Giovanni Harvey conta que o fundo doou R$ 20 milhões.

No ano passado, o fundo alcançou a sustentabilidade operacional, ou seja, consegue caminhar com as próprias pernas sem a necessidade de doações para pagar o IPTU ou a folha de pagamento dos funcionários, por exemplo. “Queremos captar 130 milhões para preservar o que já temos, nossa sustentabilidade operacional, e ganhar mais musculatura. Não discutimos nossa subsistência com nossos parceiros. Nós discutimos os investimentos na causa do enfrentamento ao racismo”, diz Harvey.

Um fundo só de mulheres negras

A trajetória do Agbara (potência, na língua ioruba) também é pioneira. Trata-se do primeiro fundo filantrópico de mulheres negras na América Latina. Por meio de jornadas de formação que abrangem formação técnica, política e étnico-racial, a organização já impactou 2.500 mulheres negras no Brasil. Desse total, 215 mulheres conquistaram aportes para seus negócios que variam de R$ 1.250 a R$ 5.000. Ao todo, 197 iniciativas já foram apoiadas financeiramente pelo fundo.

A ideia nasceu com a criação de uma rede de doadores em setembro de 2020, durante a pandemia de covid-19 em Campinas (SP). Uma amiga da pedagoga e cientista social Aline Odara, fundadora do Agbara, queria sua máquina de costura emprestada. Aline decidiu fazer uma vaquinha para comprar uma nova e envolveu amigos, conhecidos do grêmio estudantil do curso de Pedagogia, do movimento de mulheres, conhecidos de conhecidos.

Inicialmente eram 20 doadores doando R$ 20 por mês. Em três meses, a rede já tinha 300 doadores regulares doando R$ 30 mensais. Aline convidou a educadora Fabiana Aguiar para cofundar o fundo. Entre 2021 e 2022, o Agbara atraiu três investidores institucionais. E 250 pessoas físicas continuam doando.

Fabiana Aguiar, cofundadora do Fundo Agbara, durante o lançamento do livro sobre iniciativas de filantropia negra Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Um dos projetos apoiados é o Instituto Rainhas do Mar, que luta contra as vulnerabilidades sociais no Recôncavo Baiano, priorizando a comunidade pesqueira e quilombola de Acupe. A organização, concebida por pessoas que vivem nas próprias comunidades, cuida do meio ambiente, fortalece o desenvolvimento socioeconômico e estimula a autonomia comunitária.

Unindo as duas pontas da história

Além dos investimentos diretos, os fundos promovem editais para selecionar projetos alinhados às suas diretrizes. Aí, financiam essas iniciativas. No Baobá, as ações devem promover o enfrentamento ao racismo necessariamente; já o Agbara privilegia a cultura afro-brasileira, o impacto socioambiental positivo de ações desenvolvidas por mulheres negras, trans e lésbicas, mães solo, egressas do sistema prisional, idosas acima de 50 anos, migrantes e refugiadas.

As duas pontas da história, o passado colonial das irmandades e a aplicação financeira dos fundos patrimoniais, acabam se tocando. Em novembro, o Baobá vai doar R$ 500 mil para a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), entidade fundada em Salvador (BA), em 1832. A Protetora, como era conhecida, foi um marco na luta contra a discriminação racial. Fundada por trabalhadores negros, a organização auxilia e ampara historicamente pessoas em situação de vulnerabilidade. É a primeira doação substancial com recursos próprios, doação fora do edital, por decisão política da governança. “A intenção é fortalecer uma entidade de referência do movimento negro e evidenciar que a filantropia não é recente”, diz Giovanni.

O Agbara, por sua vez, resgata a equidade de gênero e a valorização da liderança das mulheres, características já estimuladas pelas irmandades, que tinham participação ativa de mulheres negras. Hoje, só mulher trabalha no Agbara, são 14 ao todo. “Precisávamos dar continuidade ao que fizeram nossos ancestrais. O que fazemos não é novo. São apenas novas formas de fazer. Acessamos a universidade, acessamos o letramento racial e compreensão da operação do racismo. Mas as pessoas não estão acostumadas a ver mulheres negras em posição de liderança”.

Também existem outras formas de captação. A Pretahub, plataforma de formação e aceleração do empreendedorismo negro, adota duas formas de gerar recursos. Como empresa, a entidade oferece consultoria, prestação de serviços em cultura organizacional com foco em equidade racial. Sem fins lucrativos, atuando como ONG, a Pretahub capta recursos com editais públicos e privados, leis de incentivo à cultura e investimento social privado e filantropia. Mais de 80% dos negócios são liderados por mulheres negras, nas áreas de gastronomia, moda, beleza, games, turismo, educação entre outras.

Falta cultura de doação no Brasil, dizem especialistas

Em setembro, o Estadão acompanhou o lançamento do e-book “Histórias da Filantropia Negra que Transformam Comunidades”, que apresenta cases de instituições que já receberam aporte do fundo Agbara. O lançamento fez parte de eventos e atividades idealizadas pela Rede Comuá, da qual o fundo faz parte, em comemoração ao mês da filantropia no País. O encontro apontou alguns desafios da filantropia negra, como as dificuldades na captação de recursos e a dependência de editais nacionais. Em alguns casos, os editais estão distantes da realidade dos projetos, sem conhecer suas particularidades e necessidades reais.

Adriana Barbosa, CEO da PretaHub, avalia a filantropia negra como “defasada” do ponto de vista de investimento das grandes empresas e ou filantropos. “Vejo que faltam aportes nas questões raciais no Brasil, lideradas por pessoas negras”.

A própria expressão “filantropia negra” parece desfocada, pois ainda remete à imagem clássica de empresários e personalidades negras americanas fazendo doações para quem está começando. O ator Chadwick Boseman, morto em 2020 depois de ficar imortalizado no papel principal do filme Pantera Negra, teve os estudos de atuação pagos pelo veterano Denzel Washington.

De acordo com o Instituto Identidades do Brasil, US$ 185 milhões foram doados para causas de equidade racial nos Estados Unidos entre 2011 e 2019. Em 2020, após o assassinato de homem negro George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin e os protestos que tomaram conta do país, esse número cresceu para US$ 3,3 bilhões.

“Nos EUA, eles têm uma cultura de doação, das empresas e organizações; no Brasil, a gente vê a filantropia negra sofrendo com apagamento histórico. Nós não temos estudo sobre filantropia negra no Brasil”, diz Fabiana. Para modificar esse cenário, outra iniciativa do Agbara é a criação de um núcleo de pesquisa, documentação e memória.

No Brasil, o contexto é diferente, não é apenas “cortar e colar” do modelo americano. Um dos principais desafios é motivar as doações em organizações e fundos não apenas em projetos e iniciativas pontuais. Nesse contexto, o investimento na SPB ajuda a combater o apagamento histórico das organizações negras na filantropia, na opinião de Giovanni.

“Nos Estados Unidos, existe um estímulo tributário para a doação. Temos outro ambiente, outro arcabouço legal. A desproporção da representatividade é o ponto central na comparação entre Brasil e Estados Unidos. Lá, a população é minoritária, mas alcançou uma representatividade que não temos aqui. O primeiro passo é reconhecer aquilo que já vem sendo feito pela filantropia negra no Brasil”, completa Giovanni.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fundo Baobá de Equidade Racial, o Fundo Agbara e a plataforma Pretahub

Durante o período de escravização de negros no Brasil, grupos filantrópicos se organizavam para comprar cartas de alforria, documento formal em que o proprietário concedia a liberdade a uma pessoa escravizada, oferecer médicos e advogados e realizar enterros dignos com “vaquinhas” e financiamentos coletivos. Esses grupos tinham uma relação direta com o sagrado e, por isso, eram irmandades e se reuniam nas igrejas – o único local onde os negros podiam se reunir. Era uma estratégia de solidariedade, fé, mas também de sobrevivência e resistência.

A atuação das irmandades se modificou com a abolição da escravatura, outras entidades surgiram com novas formas de articulação, mas foram mantidos os objetivos de combate ao racismo estrutural e a busca da autonomia das comunidades negras. Na filantropia negra, as doações são vistas como investimento social capaz de impulsionar comunidades e grupos em situação de vulnerabilidade ou discriminação.

Hoje, a luta das antigas irmandades foi atualizada a partir de fundos de investimento que captam doações no Brasil e no exterior, atuam para multiplicar esses recursos e continuam a combater o racismo.

O empresário Giovanni Harvey, diretor-executivo do Fundo Baobá. Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Um deles é o Fundo Baobá para Equidade Racial, primeiro fundo brasileiro exclusivo para a promoção da equidade racial. O Baobá organiza editais públicos para projetos alinhados com suas diretrizes e ações e investe diretamente em projetos e comunidades. Desde sua criação, em 2011, a entidade já lançou 19 editais e apoiou 861 iniciativas nas áreas de educação, direitos humanos, enfrentamento ao racismo, desenvolvimento econômico e comunicação e memória. O número de pessoas impactadas já supera os 800 mil, principalmente no Nordeste.

Mas, de onde vem o dinheiro para essas iniciativas? A história do Fundo Baobá começa em 2006 após a articulação entre o movimento negro e a Fundação Kellogg, uma das maiores entidades filantrópicas do mundo e responsável pelo aporte inicial de R$ 25 milhões. No ano passado, o Baobá foi uma das entidades beneficiadas pelas doações da bilionária americana Mackenzie Scott, que ajudou Jeff Bezos a fundar a Amazon. De acordo com a própria doadora, o fundo que trabalha pela equidade racial recebeu US$ 3,5 milhões (cerca de R$ 18 milhões).

Hoje, o Baobá constituiu um fundo patrimonial de R$ 118 milhões. A pretensão é dobrar essa reserva até 2026 e chegar aos R$ 250 milhões. Mas esse montante não pode ser totalmente investido. Os gestores podem resgatar e investir até 5% da média dos rendimentos dos últimos três anos. Ao longo dos 12 anos, o diretor executivo Giovanni Harvey conta que o fundo doou R$ 20 milhões.

No ano passado, o fundo alcançou a sustentabilidade operacional, ou seja, consegue caminhar com as próprias pernas sem a necessidade de doações para pagar o IPTU ou a folha de pagamento dos funcionários, por exemplo. “Queremos captar 130 milhões para preservar o que já temos, nossa sustentabilidade operacional, e ganhar mais musculatura. Não discutimos nossa subsistência com nossos parceiros. Nós discutimos os investimentos na causa do enfrentamento ao racismo”, diz Harvey.

Um fundo só de mulheres negras

A trajetória do Agbara (potência, na língua ioruba) também é pioneira. Trata-se do primeiro fundo filantrópico de mulheres negras na América Latina. Por meio de jornadas de formação que abrangem formação técnica, política e étnico-racial, a organização já impactou 2.500 mulheres negras no Brasil. Desse total, 215 mulheres conquistaram aportes para seus negócios que variam de R$ 1.250 a R$ 5.000. Ao todo, 197 iniciativas já foram apoiadas financeiramente pelo fundo.

A ideia nasceu com a criação de uma rede de doadores em setembro de 2020, durante a pandemia de covid-19 em Campinas (SP). Uma amiga da pedagoga e cientista social Aline Odara, fundadora do Agbara, queria sua máquina de costura emprestada. Aline decidiu fazer uma vaquinha para comprar uma nova e envolveu amigos, conhecidos do grêmio estudantil do curso de Pedagogia, do movimento de mulheres, conhecidos de conhecidos.

Inicialmente eram 20 doadores doando R$ 20 por mês. Em três meses, a rede já tinha 300 doadores regulares doando R$ 30 mensais. Aline convidou a educadora Fabiana Aguiar para cofundar o fundo. Entre 2021 e 2022, o Agbara atraiu três investidores institucionais. E 250 pessoas físicas continuam doando.

Fabiana Aguiar, cofundadora do Fundo Agbara, durante o lançamento do livro sobre iniciativas de filantropia negra Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Um dos projetos apoiados é o Instituto Rainhas do Mar, que luta contra as vulnerabilidades sociais no Recôncavo Baiano, priorizando a comunidade pesqueira e quilombola de Acupe. A organização, concebida por pessoas que vivem nas próprias comunidades, cuida do meio ambiente, fortalece o desenvolvimento socioeconômico e estimula a autonomia comunitária.

Unindo as duas pontas da história

Além dos investimentos diretos, os fundos promovem editais para selecionar projetos alinhados às suas diretrizes. Aí, financiam essas iniciativas. No Baobá, as ações devem promover o enfrentamento ao racismo necessariamente; já o Agbara privilegia a cultura afro-brasileira, o impacto socioambiental positivo de ações desenvolvidas por mulheres negras, trans e lésbicas, mães solo, egressas do sistema prisional, idosas acima de 50 anos, migrantes e refugiadas.

As duas pontas da história, o passado colonial das irmandades e a aplicação financeira dos fundos patrimoniais, acabam se tocando. Em novembro, o Baobá vai doar R$ 500 mil para a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), entidade fundada em Salvador (BA), em 1832. A Protetora, como era conhecida, foi um marco na luta contra a discriminação racial. Fundada por trabalhadores negros, a organização auxilia e ampara historicamente pessoas em situação de vulnerabilidade. É a primeira doação substancial com recursos próprios, doação fora do edital, por decisão política da governança. “A intenção é fortalecer uma entidade de referência do movimento negro e evidenciar que a filantropia não é recente”, diz Giovanni.

O Agbara, por sua vez, resgata a equidade de gênero e a valorização da liderança das mulheres, características já estimuladas pelas irmandades, que tinham participação ativa de mulheres negras. Hoje, só mulher trabalha no Agbara, são 14 ao todo. “Precisávamos dar continuidade ao que fizeram nossos ancestrais. O que fazemos não é novo. São apenas novas formas de fazer. Acessamos a universidade, acessamos o letramento racial e compreensão da operação do racismo. Mas as pessoas não estão acostumadas a ver mulheres negras em posição de liderança”.

Também existem outras formas de captação. A Pretahub, plataforma de formação e aceleração do empreendedorismo negro, adota duas formas de gerar recursos. Como empresa, a entidade oferece consultoria, prestação de serviços em cultura organizacional com foco em equidade racial. Sem fins lucrativos, atuando como ONG, a Pretahub capta recursos com editais públicos e privados, leis de incentivo à cultura e investimento social privado e filantropia. Mais de 80% dos negócios são liderados por mulheres negras, nas áreas de gastronomia, moda, beleza, games, turismo, educação entre outras.

Falta cultura de doação no Brasil, dizem especialistas

Em setembro, o Estadão acompanhou o lançamento do e-book “Histórias da Filantropia Negra que Transformam Comunidades”, que apresenta cases de instituições que já receberam aporte do fundo Agbara. O lançamento fez parte de eventos e atividades idealizadas pela Rede Comuá, da qual o fundo faz parte, em comemoração ao mês da filantropia no País. O encontro apontou alguns desafios da filantropia negra, como as dificuldades na captação de recursos e a dependência de editais nacionais. Em alguns casos, os editais estão distantes da realidade dos projetos, sem conhecer suas particularidades e necessidades reais.

Adriana Barbosa, CEO da PretaHub, avalia a filantropia negra como “defasada” do ponto de vista de investimento das grandes empresas e ou filantropos. “Vejo que faltam aportes nas questões raciais no Brasil, lideradas por pessoas negras”.

A própria expressão “filantropia negra” parece desfocada, pois ainda remete à imagem clássica de empresários e personalidades negras americanas fazendo doações para quem está começando. O ator Chadwick Boseman, morto em 2020 depois de ficar imortalizado no papel principal do filme Pantera Negra, teve os estudos de atuação pagos pelo veterano Denzel Washington.

De acordo com o Instituto Identidades do Brasil, US$ 185 milhões foram doados para causas de equidade racial nos Estados Unidos entre 2011 e 2019. Em 2020, após o assassinato de homem negro George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin e os protestos que tomaram conta do país, esse número cresceu para US$ 3,3 bilhões.

“Nos EUA, eles têm uma cultura de doação, das empresas e organizações; no Brasil, a gente vê a filantropia negra sofrendo com apagamento histórico. Nós não temos estudo sobre filantropia negra no Brasil”, diz Fabiana. Para modificar esse cenário, outra iniciativa do Agbara é a criação de um núcleo de pesquisa, documentação e memória.

No Brasil, o contexto é diferente, não é apenas “cortar e colar” do modelo americano. Um dos principais desafios é motivar as doações em organizações e fundos não apenas em projetos e iniciativas pontuais. Nesse contexto, o investimento na SPB ajuda a combater o apagamento histórico das organizações negras na filantropia, na opinião de Giovanni.

“Nos Estados Unidos, existe um estímulo tributário para a doação. Temos outro ambiente, outro arcabouço legal. A desproporção da representatividade é o ponto central na comparação entre Brasil e Estados Unidos. Lá, a população é minoritária, mas alcançou uma representatividade que não temos aqui. O primeiro passo é reconhecer aquilo que já vem sendo feito pela filantropia negra no Brasil”, completa Giovanni.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fundo Baobá de Equidade Racial, o Fundo Agbara e a plataforma Pretahub

Durante o período de escravização de negros no Brasil, grupos filantrópicos se organizavam para comprar cartas de alforria, documento formal em que o proprietário concedia a liberdade a uma pessoa escravizada, oferecer médicos e advogados e realizar enterros dignos com “vaquinhas” e financiamentos coletivos. Esses grupos tinham uma relação direta com o sagrado e, por isso, eram irmandades e se reuniam nas igrejas – o único local onde os negros podiam se reunir. Era uma estratégia de solidariedade, fé, mas também de sobrevivência e resistência.

A atuação das irmandades se modificou com a abolição da escravatura, outras entidades surgiram com novas formas de articulação, mas foram mantidos os objetivos de combate ao racismo estrutural e a busca da autonomia das comunidades negras. Na filantropia negra, as doações são vistas como investimento social capaz de impulsionar comunidades e grupos em situação de vulnerabilidade ou discriminação.

Hoje, a luta das antigas irmandades foi atualizada a partir de fundos de investimento que captam doações no Brasil e no exterior, atuam para multiplicar esses recursos e continuam a combater o racismo.

O empresário Giovanni Harvey, diretor-executivo do Fundo Baobá. Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Um deles é o Fundo Baobá para Equidade Racial, primeiro fundo brasileiro exclusivo para a promoção da equidade racial. O Baobá organiza editais públicos para projetos alinhados com suas diretrizes e ações e investe diretamente em projetos e comunidades. Desde sua criação, em 2011, a entidade já lançou 19 editais e apoiou 861 iniciativas nas áreas de educação, direitos humanos, enfrentamento ao racismo, desenvolvimento econômico e comunicação e memória. O número de pessoas impactadas já supera os 800 mil, principalmente no Nordeste.

Mas, de onde vem o dinheiro para essas iniciativas? A história do Fundo Baobá começa em 2006 após a articulação entre o movimento negro e a Fundação Kellogg, uma das maiores entidades filantrópicas do mundo e responsável pelo aporte inicial de R$ 25 milhões. No ano passado, o Baobá foi uma das entidades beneficiadas pelas doações da bilionária americana Mackenzie Scott, que ajudou Jeff Bezos a fundar a Amazon. De acordo com a própria doadora, o fundo que trabalha pela equidade racial recebeu US$ 3,5 milhões (cerca de R$ 18 milhões).

Hoje, o Baobá constituiu um fundo patrimonial de R$ 118 milhões. A pretensão é dobrar essa reserva até 2026 e chegar aos R$ 250 milhões. Mas esse montante não pode ser totalmente investido. Os gestores podem resgatar e investir até 5% da média dos rendimentos dos últimos três anos. Ao longo dos 12 anos, o diretor executivo Giovanni Harvey conta que o fundo doou R$ 20 milhões.

No ano passado, o fundo alcançou a sustentabilidade operacional, ou seja, consegue caminhar com as próprias pernas sem a necessidade de doações para pagar o IPTU ou a folha de pagamento dos funcionários, por exemplo. “Queremos captar 130 milhões para preservar o que já temos, nossa sustentabilidade operacional, e ganhar mais musculatura. Não discutimos nossa subsistência com nossos parceiros. Nós discutimos os investimentos na causa do enfrentamento ao racismo”, diz Harvey.

Um fundo só de mulheres negras

A trajetória do Agbara (potência, na língua ioruba) também é pioneira. Trata-se do primeiro fundo filantrópico de mulheres negras na América Latina. Por meio de jornadas de formação que abrangem formação técnica, política e étnico-racial, a organização já impactou 2.500 mulheres negras no Brasil. Desse total, 215 mulheres conquistaram aportes para seus negócios que variam de R$ 1.250 a R$ 5.000. Ao todo, 197 iniciativas já foram apoiadas financeiramente pelo fundo.

A ideia nasceu com a criação de uma rede de doadores em setembro de 2020, durante a pandemia de covid-19 em Campinas (SP). Uma amiga da pedagoga e cientista social Aline Odara, fundadora do Agbara, queria sua máquina de costura emprestada. Aline decidiu fazer uma vaquinha para comprar uma nova e envolveu amigos, conhecidos do grêmio estudantil do curso de Pedagogia, do movimento de mulheres, conhecidos de conhecidos.

Inicialmente eram 20 doadores doando R$ 20 por mês. Em três meses, a rede já tinha 300 doadores regulares doando R$ 30 mensais. Aline convidou a educadora Fabiana Aguiar para cofundar o fundo. Entre 2021 e 2022, o Agbara atraiu três investidores institucionais. E 250 pessoas físicas continuam doando.

Fabiana Aguiar, cofundadora do Fundo Agbara, durante o lançamento do livro sobre iniciativas de filantropia negra Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Um dos projetos apoiados é o Instituto Rainhas do Mar, que luta contra as vulnerabilidades sociais no Recôncavo Baiano, priorizando a comunidade pesqueira e quilombola de Acupe. A organização, concebida por pessoas que vivem nas próprias comunidades, cuida do meio ambiente, fortalece o desenvolvimento socioeconômico e estimula a autonomia comunitária.

Unindo as duas pontas da história

Além dos investimentos diretos, os fundos promovem editais para selecionar projetos alinhados às suas diretrizes. Aí, financiam essas iniciativas. No Baobá, as ações devem promover o enfrentamento ao racismo necessariamente; já o Agbara privilegia a cultura afro-brasileira, o impacto socioambiental positivo de ações desenvolvidas por mulheres negras, trans e lésbicas, mães solo, egressas do sistema prisional, idosas acima de 50 anos, migrantes e refugiadas.

As duas pontas da história, o passado colonial das irmandades e a aplicação financeira dos fundos patrimoniais, acabam se tocando. Em novembro, o Baobá vai doar R$ 500 mil para a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), entidade fundada em Salvador (BA), em 1832. A Protetora, como era conhecida, foi um marco na luta contra a discriminação racial. Fundada por trabalhadores negros, a organização auxilia e ampara historicamente pessoas em situação de vulnerabilidade. É a primeira doação substancial com recursos próprios, doação fora do edital, por decisão política da governança. “A intenção é fortalecer uma entidade de referência do movimento negro e evidenciar que a filantropia não é recente”, diz Giovanni.

O Agbara, por sua vez, resgata a equidade de gênero e a valorização da liderança das mulheres, características já estimuladas pelas irmandades, que tinham participação ativa de mulheres negras. Hoje, só mulher trabalha no Agbara, são 14 ao todo. “Precisávamos dar continuidade ao que fizeram nossos ancestrais. O que fazemos não é novo. São apenas novas formas de fazer. Acessamos a universidade, acessamos o letramento racial e compreensão da operação do racismo. Mas as pessoas não estão acostumadas a ver mulheres negras em posição de liderança”.

Também existem outras formas de captação. A Pretahub, plataforma de formação e aceleração do empreendedorismo negro, adota duas formas de gerar recursos. Como empresa, a entidade oferece consultoria, prestação de serviços em cultura organizacional com foco em equidade racial. Sem fins lucrativos, atuando como ONG, a Pretahub capta recursos com editais públicos e privados, leis de incentivo à cultura e investimento social privado e filantropia. Mais de 80% dos negócios são liderados por mulheres negras, nas áreas de gastronomia, moda, beleza, games, turismo, educação entre outras.

Falta cultura de doação no Brasil, dizem especialistas

Em setembro, o Estadão acompanhou o lançamento do e-book “Histórias da Filantropia Negra que Transformam Comunidades”, que apresenta cases de instituições que já receberam aporte do fundo Agbara. O lançamento fez parte de eventos e atividades idealizadas pela Rede Comuá, da qual o fundo faz parte, em comemoração ao mês da filantropia no País. O encontro apontou alguns desafios da filantropia negra, como as dificuldades na captação de recursos e a dependência de editais nacionais. Em alguns casos, os editais estão distantes da realidade dos projetos, sem conhecer suas particularidades e necessidades reais.

Adriana Barbosa, CEO da PretaHub, avalia a filantropia negra como “defasada” do ponto de vista de investimento das grandes empresas e ou filantropos. “Vejo que faltam aportes nas questões raciais no Brasil, lideradas por pessoas negras”.

A própria expressão “filantropia negra” parece desfocada, pois ainda remete à imagem clássica de empresários e personalidades negras americanas fazendo doações para quem está começando. O ator Chadwick Boseman, morto em 2020 depois de ficar imortalizado no papel principal do filme Pantera Negra, teve os estudos de atuação pagos pelo veterano Denzel Washington.

De acordo com o Instituto Identidades do Brasil, US$ 185 milhões foram doados para causas de equidade racial nos Estados Unidos entre 2011 e 2019. Em 2020, após o assassinato de homem negro George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin e os protestos que tomaram conta do país, esse número cresceu para US$ 3,3 bilhões.

“Nos EUA, eles têm uma cultura de doação, das empresas e organizações; no Brasil, a gente vê a filantropia negra sofrendo com apagamento histórico. Nós não temos estudo sobre filantropia negra no Brasil”, diz Fabiana. Para modificar esse cenário, outra iniciativa do Agbara é a criação de um núcleo de pesquisa, documentação e memória.

No Brasil, o contexto é diferente, não é apenas “cortar e colar” do modelo americano. Um dos principais desafios é motivar as doações em organizações e fundos não apenas em projetos e iniciativas pontuais. Nesse contexto, o investimento na SPB ajuda a combater o apagamento histórico das organizações negras na filantropia, na opinião de Giovanni.

“Nos Estados Unidos, existe um estímulo tributário para a doação. Temos outro ambiente, outro arcabouço legal. A desproporção da representatividade é o ponto central na comparação entre Brasil e Estados Unidos. Lá, a população é minoritária, mas alcançou uma representatividade que não temos aqui. O primeiro passo é reconhecer aquilo que já vem sendo feito pela filantropia negra no Brasil”, completa Giovanni.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fundo Baobá de Equidade Racial, o Fundo Agbara e a plataforma Pretahub

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