O que é preciso para ter uma cidade inteligente? ‘É muito mais que tecnologia’, diz especialista


Especialista em administração pública e professora da Universidade Federal do Sergipe, Kelly Paz falou sobre uso de tecnologia criativa em cidades durante evento da Associação Nacional das Cidades Inteligentes, Tecnológicas e Inovadoras

Por Giovanna Castro
Atualização:
Foto: Lara Araújo/Arquivo pessoal de Kelly Paz
Entrevista comKelly PazEspecialista em Administração Pública e cidades inteligentes

ARACAJU - O conceito de smart cities (em português, cidades inteligentes) tem ganhado cada vez mais espaço no debate público brasileiro e mundial. O isolamento social causado pela pandemia de covid-19 acelerou a implementação de tecnologia em serviços públicos e privados e mostrou a necessidade de conectar a população à internet e plataformas digitais. Hoje, já parece impensável ter que fazer matrículas presencialmente em escolas ou comparecer a um posto de saúde para agendar uma consulta médica, mas nem sempre foi assim.

O processo de implementação de tecnologia na interlocução entre gestão pública e cidadãos, assim como o uso de recursos de inteligência artificial em projetos de secretarias municipais, têm caminhado no Brasil. “Mas ainda precisa melhorar muito”, diz a especialista em Administração Pública Kelly Paz. “Cidade inteligente não é só sobre tecnologia. É sobre estar conectado às reais necessidades dos cidadãos.”

Doutora em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade Federal do Sergipe (UFS), onde lidera o grupo de pesquisa “Cidade Inteligente e Criativa: Reflexões e aplicações em contextos urbano”, Kelly palestrou na última quarta-feira, 10, no Smart Gov Nordeste 2024. O evento, promovido em Aracaju pela Associação Nacional das Cidades Inteligentes, Tecnológicas e Inovadoras (ANCITI), discutiu soluções tecnológicas para cidades.

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Especialista em administração pública Kelly Paz palestrou sobre o conceito de cidades inteligentes e criativas em evento da ANCITI em Aracaju. Ao longo dos dias 10 e 11, evento debateu soluções tecnológicas para gestões municipais. Foto: Natália Fontes/ANCITI

Em seu discurso, a professora disse que é preciso descentralizar as decisões públicas, garantindo maior participação popular por meio da tecnologia e conexão entre sistemas e setores – tanto entre os públicos, quanto com privados, acadêmicos e da sociedade civil. Utilizar coleta de dados a favor de uma gestão mais eficiente e engajada também é visto com bons olhos.

“O setor público está começando a entender a necessidade de se conectar com outros setores, mas ainda há muita burocracia nesse processo e muita dificuldade em saber lidar com essa interlocução entre diferentes frentes”, afirmou, em entrevista ao Estadão.

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O que é uma cidade inteligente?

O conceito de cidade de inteligente, às vezes, se confunde com outros conceitos, como de cidades digitais, focadas no uso da internet e da tecnologia (...) Mas, com base em estudos que mostram que o uso puro da tecnologia, sem considerar o fator humano, pode gerar mais desigualdade social – principalmente em bairros mais afastados, onde o acesso à internet ainda tende a ser limitado –, nós (Kelly e seu orientador de doutorado, Henrique César Barroso, da UFPE) estabelecemos um conceito de cidade inteligente criativa.

Seria um processo de construção coletiva que une a criatividade humana à tecnologia. Nesse caso, a tecnologia seria promotora de inclusão social e maior eficiência na gestão, com canais de representatividade política para atender às reais demandas da sociedade. Nós temos um foco em questões de arte, criatividade, promoção da cultura (...) Consideramos até mesmo a existência de uma classe de profissionais criativos, em um conceito conhecido como Economia Criativa, como fundamental para desenvolver soluções. Assim como a criatividade do cidadão comum, que percebe, analisa e age sobre as condições da cidade.

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Nesse sentido, a tecnologia seria uma ferramenta adaptada à realidade de cada cidade, mediante a criatividade dos seus cidadãos e de setores diversos – público, privado, sociedade civil e universidades. Consequentemente, é uma concepção de cidade mais inclusiva, com maior governança, inclusão digital e que leva em consideração a opinião das pessoas que vivem os problemas da cidade diariamente. Com isso, conseguiríamos ter uma cidade com mais qualidade de vida e atrativa para novos residentes, investimentos de empresas, enfim, seria uma cidade mais aberta e convidativa.

Como a tecnologia pode, na prática, ajudar no dia a dia dos cidadãos?

Nós já temos alguns exemplos disso, especialmente na educação e na saúde. Durante a pandemia covid-19, tivemos alguns avanços que só aconteceram porque houve um contexto emergencial, mas que devem continuar, serem aprimorados e ampliados para outras áreas. Podemos pegar, por exemplo, o contexto da tecnologia favorecendo a realização de aulas no período de isolamento – e é algo que continua até hoje em algumas instituições. Mas vou além, neste contexto da tecnologia revolucionando a educação: ela pode desenvolver metodologias diferentes para a sala de aula, envolvendo mais o aluno e fazendo com que ele passe a ser protagonista do processo de aprendizagem (um dos maiores gargalos atuais, como já mostrou o Estadão).

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Podemos ter desde processos de gameficação, em que é possível desenvolver jogos construídos com base no conteúdo didático, utilizados em sala de aula, para garantir maior participação dos alunos, até o desenvolvimento da criatividade e o envolvimento do indivíduo através da tecnologia, fazendo com que ele se habitue e se transforme em um profissional que está acostumado com a tecnologia. E também que tenha vivência de criatividade, que é uma das demandas para profissionais contemporâneos. A presença de incubadoras, de startups, com pessoas de diferentes lugares, com diferentes culturas, é algo que fomenta uma cidade inteligente e criativa, por exemplo.

Na saúde, a gente vê a possibilidade de desafogar o setor de hospitais, organizando uma vacinação através de aplicativos, com possibilidade de agendamento e triagem, ou até com a telemedicina, algo que, anos atrás, era muito mais complicado, já que tínhamos uma legislação que impedia isso. Tivemos um avanço muito grande na questão da saúde mental, também, já que muitas pessoas passaram a ter acesso à psicoterapia através de vídeo chamada e ligações pelo WhatsApp.

No setor de segurança, temos monitoramento de trânsito e semáforos inteligentes, favorecendo a mobilidade na cidade e consequentemente contribuindo para a questão de identificação de carros roubados, podendo devolvê-los rapidamente aos seus devidos donos. Ou seja, conseguimos ter uma rede de monitoramento que antes não era possível.

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E em relação à gestão pública? Como colabora para a eficiência e a economia de recursos?

Vejo que a tecnologia pode ser utilizada, principalmente, no contexto da governança. E acho que, nisso, ainda estamos engatinhando, porque ainda temos poucos aplicativos onde as pessoas possam participar, dar sua opinião e acompanhar projetos públicos. Às vezes, falta divulgação, também, para que as pessoas possam participar dos processos de planejamento público.

Se está sendo reformulado o plano diretor de uma cidade, por exemplo, e conseguimos envolver a sociedade na construção desse plano diretor, teremos um projeto muito mais adequado à realidade daquele local e à vocação daquela cidade. Então, de fato, dá para ter economia de recursos, garantindo maior eficiência e menos desperdício, sendo mais assertivo nas políticas públicas.

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Quais devem ser os principais focos de uma gestão municipal inteligente? Como implantar tecnologia de forma eficiente, garantindo a adesão popular?

A ideia é simplificar e integrar o máximo de sistemas, setores e funções possível. É você ter mais facilidade para o cidadão e mais participação dele, para que ele consiga ter, realmente, o acesso. Agora, se você fragmenta muito isso, deixa muito difuso, você perde o foco e realmente não vai conseguir ter a participação e consequentemente a governança.

Se as pessoas tiverem essa possibilidade de participar por meio de um aplicativo simples, fácil de usar, conhecido e que reúne várias aplicações juntas – algo que está na palma da mão, que não depende de baixar vários aplicativos e por meio do qual as pessoas sintam que realmente estão sendo ouvidas –, a tecnologia está fazendo o seu papel, está sendo eficiente.

Mas algo que é muito citado em entrevistas que foram realizadas (em sua pesquisa) é que os aplicativos geralmente carecem de eficiência nessa governança. As pessoas sentem que denunciam, reclamam de algo que está errado no seu bairro, mas não têm retorno. Isso é um problema.

É preciso ter um feedback, dar um retorno para a população sobre o que ela aponta pelo aplicativo. Neste sentido, outro ponto que a tecnologia pode favorecer são em questões de transparência. Podemos ter um controle maior sobre aquilo que é desenvolvido e garantir a conectividade entre as pessoas.

Uma das justificativas para não se implantar tecnologia em cidades é o alto custo financeiro. Como baratear e tornar viável?

Sendo assertivo nas aplicações e levando em consideração a tecnologia social e compartilhada. É preciso ouvir mais as pessoas, empresas e universidades. Se eu escuto as pessoas, posso ter soluções muito mais simples e uma menor chance de utilizar uma tecnologia ‘errada’ ou desnecessariamente cara.

Em um contexto de espaço público, não é preciso, necessariamente, esperar que o governo reforme uma praça, se posso contar com a responsabilidade compartilhada, não é? Se posso contar com parcerias com o setor privado ou com associações comunitárias para solucionar aquele problema pontual.

Já que as empresas privadas lucram explorando os recursos da sociedade, elas também precisam dar um retorno social. Isso é bom, até, para imagem delas. E seguir pela responsabilidade compartilhada dentro da cidade faz com que os custos sejam reduzidos no longo prazo. Todo mundo vive na cidade, então todo mundo é corresponsável.

Como enxerga o cenário brasileiro em relação a esse tema? Quais nossos principais desafios e oportunidades?

Nosso cenário, brasileiro, é promissor, mas ainda precisa melhorar muito. Acho que o desafio principal tem a ver com a mudança de pensamento. Muitas vezes, a gente tem uma postura de só participar no processo eleitoral. Ficamos esperando que as coisas cheguem até nós, sendo que a gente pode ser o principal ator nesse processo.

Precisamos ter uma reflexão maior sobre a importância da participação desde pequenos, nas escolas, para construirmos essa visão de cidadão e realmente participarmos do desenvolvimento de políticas públicas mais inclusivas, reduzindo a desigualdade e gerando acesso à qualidade de vida para todo mundo. Para que isso aconteça, é preciso também que haja abertura do setor público.(...)

A desigualdade é um grande problema, não dá para comparar o acesso à internet no Sudeste ao do Norte do País, por exemplo. Nós temos escolas particulares em que o uso da internet já é padrão para todos e públicas mais afastadas onde ainda não há recursos básicos. Precisamos evoluir em quatro dimensões: suporte tecnológico, atividade social, governança participativa e economia e negócios.

Falta disponibilização de internet em espaços públicos e descentralização nos projetos. Nós tivemos a implantação de internet no centro, em pontos turísticos de algumas cidades, mas é preciso que isso chegue também nas periferias. Um meio para isso são as parcerias com empresas privadas, como na implantação de pontos de ônibus inteligentes, onde há publicidade, captação de energia solar e rede Wi-Fi gratuita, para as pessoas poderem se conectar, ver que horas o ônibus vai passar, lerem uma notícia, enviarem um e-mail ou participarem de um aplicativo de governança pública.

O setor público está começando a entender a necessidade de se conectar com outros setores, mas ainda há muita burocracia nesse processo e muita dificuldade em saber lidar com essa interlocução entre diferentes frentes. Também acredito que precisamos avançar em relação à legislação, permitindo essa descentralização e facilitando parcerias.

Qual a importância de tecnologias que coletam dados na cidade? E como utilizá-las a favor da população?

O gerenciamento de dados é importante no sentido de conseguir ter uma retroalimentação. Vou conseguir aprender com aqueles dados para que eu consiga delimitar pontos de melhoria. Se pegamos, por exemplo, uma cidade que possui um aplicativo para ciclistas, consigo ter uma ideia das rotas que os ciclistas percorrem na cidade com mais frequência – seja para trabalho ou lazer. Esse dado pode ser um indicador de onde há prioridade de implantação de ciclovias. Assim, eu não vou investir em pontos em que não há necessidade, gerando economia e melhorando a eficiência.

É importante, no entanto, que essa coleta de dados seja analisada e trabalhada junto ao elemento humano. Por exemplo, o Waze e o Google Maps trabalham com essa lógica de mapeamento, de gravação de dados, para conseguir registrar os caminhos de deslocamento mais rápido nas cidades, que geralmente são feitos por pessoas que conhecem o local, ou seja, têm um conhecimento social para isso. No entanto, se não considerarmos o conhecimento humano na hora de gerenciar os dados, o aplicativo pode enviar pessoas que não são da região para locais mais perigosos, colocando-as em risco.

O conhecimento social precisa estar o tempo todo atrelado à gestão de dados para que a aplicação das soluções sejam, de fato, eficientes (...) A metodologia de armazenamento de dados é complementar ao suporte tecnológico. Então, o que as prefeituras podem fazer é desenvolver aplicações que consigam fazer esse gerenciamento e retroalimentação, mas levando consideração o conhecimento social também.

A tecnologia pode nos ajudar a enfrentar os desafios ambientais, cada vez mais latentes com as ondas de calor e os eventos climáticos extremos que temos visto?

Podemos abordar isso sobre duas vertentes: a vertente digital e a social. A respeito da vertente digital, podemos ter aplicativos como o que eu mencionei, de rotas de ciclistas, para gerar dados que levem à construção de mais ciclovias, facilitando a mobilidade e consequentemente o uso da bicicleta, que é um modo alternativo mais sustentável. Isso reduziria o deslocamento via carros e outros veículos que acabam sendo mais poluentes – o desenvolvimento de ônibus elétricos também são um exemplo de que a tecnologia pode colaborar para alternativas mais sustentáveis e que dão resultado.

Já na vertente social, é muito importante que a gente acabe com a visão de que a sustentabilidade é só sobre o ambiente natural. Ela é, na verdade, um equilíbrio de dimensões econômica, social e cultural. Por isso, gerar conexões é algo que colabora para a sustentabilidade. Quando há ações de conscientização ambiental nas escolas (utilizando tecnologia), por exemplo, desenvolvendo projetos nesse sentido, as crianças tendem a repassar aos seus parentes esses conhecimentos, gerando um efeito em cadeia.(...)

Outro exemplo é uma ação realizada pela prefeitura de Olinda, Pernambuco, em que se fez o cadastro de catadores de latinhas para que eles pudessem ter uma renda durante o período de carnaval. Esse cadastro dava o direito a deles de catarem as latinhas na rua e já faziam uma ponte com as empresas que compram essas latinhas. Isso refletiu no social, ajudando as famílias a terem uma renda, e também contribuiu para a questão do ambiente limpo no período de carnaval. Então, todo mundo saiu ganhando.

É nesse contexto, de criação de redes por meio da conectividade tecnológica, que uma cidade inteligente e criativa opera e colabora não só para o meio ambiente, como para melhorias em diferentes setores.

*A repórter viajou a convite da Associação Nacional das Cidades Inteligentes

ARACAJU - O conceito de smart cities (em português, cidades inteligentes) tem ganhado cada vez mais espaço no debate público brasileiro e mundial. O isolamento social causado pela pandemia de covid-19 acelerou a implementação de tecnologia em serviços públicos e privados e mostrou a necessidade de conectar a população à internet e plataformas digitais. Hoje, já parece impensável ter que fazer matrículas presencialmente em escolas ou comparecer a um posto de saúde para agendar uma consulta médica, mas nem sempre foi assim.

O processo de implementação de tecnologia na interlocução entre gestão pública e cidadãos, assim como o uso de recursos de inteligência artificial em projetos de secretarias municipais, têm caminhado no Brasil. “Mas ainda precisa melhorar muito”, diz a especialista em Administração Pública Kelly Paz. “Cidade inteligente não é só sobre tecnologia. É sobre estar conectado às reais necessidades dos cidadãos.”

Doutora em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade Federal do Sergipe (UFS), onde lidera o grupo de pesquisa “Cidade Inteligente e Criativa: Reflexões e aplicações em contextos urbano”, Kelly palestrou na última quarta-feira, 10, no Smart Gov Nordeste 2024. O evento, promovido em Aracaju pela Associação Nacional das Cidades Inteligentes, Tecnológicas e Inovadoras (ANCITI), discutiu soluções tecnológicas para cidades.

Especialista em administração pública Kelly Paz palestrou sobre o conceito de cidades inteligentes e criativas em evento da ANCITI em Aracaju. Ao longo dos dias 10 e 11, evento debateu soluções tecnológicas para gestões municipais. Foto: Natália Fontes/ANCITI

Em seu discurso, a professora disse que é preciso descentralizar as decisões públicas, garantindo maior participação popular por meio da tecnologia e conexão entre sistemas e setores – tanto entre os públicos, quanto com privados, acadêmicos e da sociedade civil. Utilizar coleta de dados a favor de uma gestão mais eficiente e engajada também é visto com bons olhos.

“O setor público está começando a entender a necessidade de se conectar com outros setores, mas ainda há muita burocracia nesse processo e muita dificuldade em saber lidar com essa interlocução entre diferentes frentes”, afirmou, em entrevista ao Estadão.

O que é uma cidade inteligente?

O conceito de cidade de inteligente, às vezes, se confunde com outros conceitos, como de cidades digitais, focadas no uso da internet e da tecnologia (...) Mas, com base em estudos que mostram que o uso puro da tecnologia, sem considerar o fator humano, pode gerar mais desigualdade social – principalmente em bairros mais afastados, onde o acesso à internet ainda tende a ser limitado –, nós (Kelly e seu orientador de doutorado, Henrique César Barroso, da UFPE) estabelecemos um conceito de cidade inteligente criativa.

Seria um processo de construção coletiva que une a criatividade humana à tecnologia. Nesse caso, a tecnologia seria promotora de inclusão social e maior eficiência na gestão, com canais de representatividade política para atender às reais demandas da sociedade. Nós temos um foco em questões de arte, criatividade, promoção da cultura (...) Consideramos até mesmo a existência de uma classe de profissionais criativos, em um conceito conhecido como Economia Criativa, como fundamental para desenvolver soluções. Assim como a criatividade do cidadão comum, que percebe, analisa e age sobre as condições da cidade.

Nesse sentido, a tecnologia seria uma ferramenta adaptada à realidade de cada cidade, mediante a criatividade dos seus cidadãos e de setores diversos – público, privado, sociedade civil e universidades. Consequentemente, é uma concepção de cidade mais inclusiva, com maior governança, inclusão digital e que leva em consideração a opinião das pessoas que vivem os problemas da cidade diariamente. Com isso, conseguiríamos ter uma cidade com mais qualidade de vida e atrativa para novos residentes, investimentos de empresas, enfim, seria uma cidade mais aberta e convidativa.

Como a tecnologia pode, na prática, ajudar no dia a dia dos cidadãos?

Nós já temos alguns exemplos disso, especialmente na educação e na saúde. Durante a pandemia covid-19, tivemos alguns avanços que só aconteceram porque houve um contexto emergencial, mas que devem continuar, serem aprimorados e ampliados para outras áreas. Podemos pegar, por exemplo, o contexto da tecnologia favorecendo a realização de aulas no período de isolamento – e é algo que continua até hoje em algumas instituições. Mas vou além, neste contexto da tecnologia revolucionando a educação: ela pode desenvolver metodologias diferentes para a sala de aula, envolvendo mais o aluno e fazendo com que ele passe a ser protagonista do processo de aprendizagem (um dos maiores gargalos atuais, como já mostrou o Estadão).

Podemos ter desde processos de gameficação, em que é possível desenvolver jogos construídos com base no conteúdo didático, utilizados em sala de aula, para garantir maior participação dos alunos, até o desenvolvimento da criatividade e o envolvimento do indivíduo através da tecnologia, fazendo com que ele se habitue e se transforme em um profissional que está acostumado com a tecnologia. E também que tenha vivência de criatividade, que é uma das demandas para profissionais contemporâneos. A presença de incubadoras, de startups, com pessoas de diferentes lugares, com diferentes culturas, é algo que fomenta uma cidade inteligente e criativa, por exemplo.

Na saúde, a gente vê a possibilidade de desafogar o setor de hospitais, organizando uma vacinação através de aplicativos, com possibilidade de agendamento e triagem, ou até com a telemedicina, algo que, anos atrás, era muito mais complicado, já que tínhamos uma legislação que impedia isso. Tivemos um avanço muito grande na questão da saúde mental, também, já que muitas pessoas passaram a ter acesso à psicoterapia através de vídeo chamada e ligações pelo WhatsApp.

No setor de segurança, temos monitoramento de trânsito e semáforos inteligentes, favorecendo a mobilidade na cidade e consequentemente contribuindo para a questão de identificação de carros roubados, podendo devolvê-los rapidamente aos seus devidos donos. Ou seja, conseguimos ter uma rede de monitoramento que antes não era possível.

E em relação à gestão pública? Como colabora para a eficiência e a economia de recursos?

Vejo que a tecnologia pode ser utilizada, principalmente, no contexto da governança. E acho que, nisso, ainda estamos engatinhando, porque ainda temos poucos aplicativos onde as pessoas possam participar, dar sua opinião e acompanhar projetos públicos. Às vezes, falta divulgação, também, para que as pessoas possam participar dos processos de planejamento público.

Se está sendo reformulado o plano diretor de uma cidade, por exemplo, e conseguimos envolver a sociedade na construção desse plano diretor, teremos um projeto muito mais adequado à realidade daquele local e à vocação daquela cidade. Então, de fato, dá para ter economia de recursos, garantindo maior eficiência e menos desperdício, sendo mais assertivo nas políticas públicas.

Quais devem ser os principais focos de uma gestão municipal inteligente? Como implantar tecnologia de forma eficiente, garantindo a adesão popular?

A ideia é simplificar e integrar o máximo de sistemas, setores e funções possível. É você ter mais facilidade para o cidadão e mais participação dele, para que ele consiga ter, realmente, o acesso. Agora, se você fragmenta muito isso, deixa muito difuso, você perde o foco e realmente não vai conseguir ter a participação e consequentemente a governança.

Se as pessoas tiverem essa possibilidade de participar por meio de um aplicativo simples, fácil de usar, conhecido e que reúne várias aplicações juntas – algo que está na palma da mão, que não depende de baixar vários aplicativos e por meio do qual as pessoas sintam que realmente estão sendo ouvidas –, a tecnologia está fazendo o seu papel, está sendo eficiente.

Mas algo que é muito citado em entrevistas que foram realizadas (em sua pesquisa) é que os aplicativos geralmente carecem de eficiência nessa governança. As pessoas sentem que denunciam, reclamam de algo que está errado no seu bairro, mas não têm retorno. Isso é um problema.

É preciso ter um feedback, dar um retorno para a população sobre o que ela aponta pelo aplicativo. Neste sentido, outro ponto que a tecnologia pode favorecer são em questões de transparência. Podemos ter um controle maior sobre aquilo que é desenvolvido e garantir a conectividade entre as pessoas.

Uma das justificativas para não se implantar tecnologia em cidades é o alto custo financeiro. Como baratear e tornar viável?

Sendo assertivo nas aplicações e levando em consideração a tecnologia social e compartilhada. É preciso ouvir mais as pessoas, empresas e universidades. Se eu escuto as pessoas, posso ter soluções muito mais simples e uma menor chance de utilizar uma tecnologia ‘errada’ ou desnecessariamente cara.

Em um contexto de espaço público, não é preciso, necessariamente, esperar que o governo reforme uma praça, se posso contar com a responsabilidade compartilhada, não é? Se posso contar com parcerias com o setor privado ou com associações comunitárias para solucionar aquele problema pontual.

Já que as empresas privadas lucram explorando os recursos da sociedade, elas também precisam dar um retorno social. Isso é bom, até, para imagem delas. E seguir pela responsabilidade compartilhada dentro da cidade faz com que os custos sejam reduzidos no longo prazo. Todo mundo vive na cidade, então todo mundo é corresponsável.

Como enxerga o cenário brasileiro em relação a esse tema? Quais nossos principais desafios e oportunidades?

Nosso cenário, brasileiro, é promissor, mas ainda precisa melhorar muito. Acho que o desafio principal tem a ver com a mudança de pensamento. Muitas vezes, a gente tem uma postura de só participar no processo eleitoral. Ficamos esperando que as coisas cheguem até nós, sendo que a gente pode ser o principal ator nesse processo.

Precisamos ter uma reflexão maior sobre a importância da participação desde pequenos, nas escolas, para construirmos essa visão de cidadão e realmente participarmos do desenvolvimento de políticas públicas mais inclusivas, reduzindo a desigualdade e gerando acesso à qualidade de vida para todo mundo. Para que isso aconteça, é preciso também que haja abertura do setor público.(...)

A desigualdade é um grande problema, não dá para comparar o acesso à internet no Sudeste ao do Norte do País, por exemplo. Nós temos escolas particulares em que o uso da internet já é padrão para todos e públicas mais afastadas onde ainda não há recursos básicos. Precisamos evoluir em quatro dimensões: suporte tecnológico, atividade social, governança participativa e economia e negócios.

Falta disponibilização de internet em espaços públicos e descentralização nos projetos. Nós tivemos a implantação de internet no centro, em pontos turísticos de algumas cidades, mas é preciso que isso chegue também nas periferias. Um meio para isso são as parcerias com empresas privadas, como na implantação de pontos de ônibus inteligentes, onde há publicidade, captação de energia solar e rede Wi-Fi gratuita, para as pessoas poderem se conectar, ver que horas o ônibus vai passar, lerem uma notícia, enviarem um e-mail ou participarem de um aplicativo de governança pública.

O setor público está começando a entender a necessidade de se conectar com outros setores, mas ainda há muita burocracia nesse processo e muita dificuldade em saber lidar com essa interlocução entre diferentes frentes. Também acredito que precisamos avançar em relação à legislação, permitindo essa descentralização e facilitando parcerias.

Qual a importância de tecnologias que coletam dados na cidade? E como utilizá-las a favor da população?

O gerenciamento de dados é importante no sentido de conseguir ter uma retroalimentação. Vou conseguir aprender com aqueles dados para que eu consiga delimitar pontos de melhoria. Se pegamos, por exemplo, uma cidade que possui um aplicativo para ciclistas, consigo ter uma ideia das rotas que os ciclistas percorrem na cidade com mais frequência – seja para trabalho ou lazer. Esse dado pode ser um indicador de onde há prioridade de implantação de ciclovias. Assim, eu não vou investir em pontos em que não há necessidade, gerando economia e melhorando a eficiência.

É importante, no entanto, que essa coleta de dados seja analisada e trabalhada junto ao elemento humano. Por exemplo, o Waze e o Google Maps trabalham com essa lógica de mapeamento, de gravação de dados, para conseguir registrar os caminhos de deslocamento mais rápido nas cidades, que geralmente são feitos por pessoas que conhecem o local, ou seja, têm um conhecimento social para isso. No entanto, se não considerarmos o conhecimento humano na hora de gerenciar os dados, o aplicativo pode enviar pessoas que não são da região para locais mais perigosos, colocando-as em risco.

O conhecimento social precisa estar o tempo todo atrelado à gestão de dados para que a aplicação das soluções sejam, de fato, eficientes (...) A metodologia de armazenamento de dados é complementar ao suporte tecnológico. Então, o que as prefeituras podem fazer é desenvolver aplicações que consigam fazer esse gerenciamento e retroalimentação, mas levando consideração o conhecimento social também.

A tecnologia pode nos ajudar a enfrentar os desafios ambientais, cada vez mais latentes com as ondas de calor e os eventos climáticos extremos que temos visto?

Podemos abordar isso sobre duas vertentes: a vertente digital e a social. A respeito da vertente digital, podemos ter aplicativos como o que eu mencionei, de rotas de ciclistas, para gerar dados que levem à construção de mais ciclovias, facilitando a mobilidade e consequentemente o uso da bicicleta, que é um modo alternativo mais sustentável. Isso reduziria o deslocamento via carros e outros veículos que acabam sendo mais poluentes – o desenvolvimento de ônibus elétricos também são um exemplo de que a tecnologia pode colaborar para alternativas mais sustentáveis e que dão resultado.

Já na vertente social, é muito importante que a gente acabe com a visão de que a sustentabilidade é só sobre o ambiente natural. Ela é, na verdade, um equilíbrio de dimensões econômica, social e cultural. Por isso, gerar conexões é algo que colabora para a sustentabilidade. Quando há ações de conscientização ambiental nas escolas (utilizando tecnologia), por exemplo, desenvolvendo projetos nesse sentido, as crianças tendem a repassar aos seus parentes esses conhecimentos, gerando um efeito em cadeia.(...)

Outro exemplo é uma ação realizada pela prefeitura de Olinda, Pernambuco, em que se fez o cadastro de catadores de latinhas para que eles pudessem ter uma renda durante o período de carnaval. Esse cadastro dava o direito a deles de catarem as latinhas na rua e já faziam uma ponte com as empresas que compram essas latinhas. Isso refletiu no social, ajudando as famílias a terem uma renda, e também contribuiu para a questão do ambiente limpo no período de carnaval. Então, todo mundo saiu ganhando.

É nesse contexto, de criação de redes por meio da conectividade tecnológica, que uma cidade inteligente e criativa opera e colabora não só para o meio ambiente, como para melhorias em diferentes setores.

*A repórter viajou a convite da Associação Nacional das Cidades Inteligentes

ARACAJU - O conceito de smart cities (em português, cidades inteligentes) tem ganhado cada vez mais espaço no debate público brasileiro e mundial. O isolamento social causado pela pandemia de covid-19 acelerou a implementação de tecnologia em serviços públicos e privados e mostrou a necessidade de conectar a população à internet e plataformas digitais. Hoje, já parece impensável ter que fazer matrículas presencialmente em escolas ou comparecer a um posto de saúde para agendar uma consulta médica, mas nem sempre foi assim.

O processo de implementação de tecnologia na interlocução entre gestão pública e cidadãos, assim como o uso de recursos de inteligência artificial em projetos de secretarias municipais, têm caminhado no Brasil. “Mas ainda precisa melhorar muito”, diz a especialista em Administração Pública Kelly Paz. “Cidade inteligente não é só sobre tecnologia. É sobre estar conectado às reais necessidades dos cidadãos.”

Doutora em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade Federal do Sergipe (UFS), onde lidera o grupo de pesquisa “Cidade Inteligente e Criativa: Reflexões e aplicações em contextos urbano”, Kelly palestrou na última quarta-feira, 10, no Smart Gov Nordeste 2024. O evento, promovido em Aracaju pela Associação Nacional das Cidades Inteligentes, Tecnológicas e Inovadoras (ANCITI), discutiu soluções tecnológicas para cidades.

Especialista em administração pública Kelly Paz palestrou sobre o conceito de cidades inteligentes e criativas em evento da ANCITI em Aracaju. Ao longo dos dias 10 e 11, evento debateu soluções tecnológicas para gestões municipais. Foto: Natália Fontes/ANCITI

Em seu discurso, a professora disse que é preciso descentralizar as decisões públicas, garantindo maior participação popular por meio da tecnologia e conexão entre sistemas e setores – tanto entre os públicos, quanto com privados, acadêmicos e da sociedade civil. Utilizar coleta de dados a favor de uma gestão mais eficiente e engajada também é visto com bons olhos.

“O setor público está começando a entender a necessidade de se conectar com outros setores, mas ainda há muita burocracia nesse processo e muita dificuldade em saber lidar com essa interlocução entre diferentes frentes”, afirmou, em entrevista ao Estadão.

O que é uma cidade inteligente?

O conceito de cidade de inteligente, às vezes, se confunde com outros conceitos, como de cidades digitais, focadas no uso da internet e da tecnologia (...) Mas, com base em estudos que mostram que o uso puro da tecnologia, sem considerar o fator humano, pode gerar mais desigualdade social – principalmente em bairros mais afastados, onde o acesso à internet ainda tende a ser limitado –, nós (Kelly e seu orientador de doutorado, Henrique César Barroso, da UFPE) estabelecemos um conceito de cidade inteligente criativa.

Seria um processo de construção coletiva que une a criatividade humana à tecnologia. Nesse caso, a tecnologia seria promotora de inclusão social e maior eficiência na gestão, com canais de representatividade política para atender às reais demandas da sociedade. Nós temos um foco em questões de arte, criatividade, promoção da cultura (...) Consideramos até mesmo a existência de uma classe de profissionais criativos, em um conceito conhecido como Economia Criativa, como fundamental para desenvolver soluções. Assim como a criatividade do cidadão comum, que percebe, analisa e age sobre as condições da cidade.

Nesse sentido, a tecnologia seria uma ferramenta adaptada à realidade de cada cidade, mediante a criatividade dos seus cidadãos e de setores diversos – público, privado, sociedade civil e universidades. Consequentemente, é uma concepção de cidade mais inclusiva, com maior governança, inclusão digital e que leva em consideração a opinião das pessoas que vivem os problemas da cidade diariamente. Com isso, conseguiríamos ter uma cidade com mais qualidade de vida e atrativa para novos residentes, investimentos de empresas, enfim, seria uma cidade mais aberta e convidativa.

Como a tecnologia pode, na prática, ajudar no dia a dia dos cidadãos?

Nós já temos alguns exemplos disso, especialmente na educação e na saúde. Durante a pandemia covid-19, tivemos alguns avanços que só aconteceram porque houve um contexto emergencial, mas que devem continuar, serem aprimorados e ampliados para outras áreas. Podemos pegar, por exemplo, o contexto da tecnologia favorecendo a realização de aulas no período de isolamento – e é algo que continua até hoje em algumas instituições. Mas vou além, neste contexto da tecnologia revolucionando a educação: ela pode desenvolver metodologias diferentes para a sala de aula, envolvendo mais o aluno e fazendo com que ele passe a ser protagonista do processo de aprendizagem (um dos maiores gargalos atuais, como já mostrou o Estadão).

Podemos ter desde processos de gameficação, em que é possível desenvolver jogos construídos com base no conteúdo didático, utilizados em sala de aula, para garantir maior participação dos alunos, até o desenvolvimento da criatividade e o envolvimento do indivíduo através da tecnologia, fazendo com que ele se habitue e se transforme em um profissional que está acostumado com a tecnologia. E também que tenha vivência de criatividade, que é uma das demandas para profissionais contemporâneos. A presença de incubadoras, de startups, com pessoas de diferentes lugares, com diferentes culturas, é algo que fomenta uma cidade inteligente e criativa, por exemplo.

Na saúde, a gente vê a possibilidade de desafogar o setor de hospitais, organizando uma vacinação através de aplicativos, com possibilidade de agendamento e triagem, ou até com a telemedicina, algo que, anos atrás, era muito mais complicado, já que tínhamos uma legislação que impedia isso. Tivemos um avanço muito grande na questão da saúde mental, também, já que muitas pessoas passaram a ter acesso à psicoterapia através de vídeo chamada e ligações pelo WhatsApp.

No setor de segurança, temos monitoramento de trânsito e semáforos inteligentes, favorecendo a mobilidade na cidade e consequentemente contribuindo para a questão de identificação de carros roubados, podendo devolvê-los rapidamente aos seus devidos donos. Ou seja, conseguimos ter uma rede de monitoramento que antes não era possível.

E em relação à gestão pública? Como colabora para a eficiência e a economia de recursos?

Vejo que a tecnologia pode ser utilizada, principalmente, no contexto da governança. E acho que, nisso, ainda estamos engatinhando, porque ainda temos poucos aplicativos onde as pessoas possam participar, dar sua opinião e acompanhar projetos públicos. Às vezes, falta divulgação, também, para que as pessoas possam participar dos processos de planejamento público.

Se está sendo reformulado o plano diretor de uma cidade, por exemplo, e conseguimos envolver a sociedade na construção desse plano diretor, teremos um projeto muito mais adequado à realidade daquele local e à vocação daquela cidade. Então, de fato, dá para ter economia de recursos, garantindo maior eficiência e menos desperdício, sendo mais assertivo nas políticas públicas.

Quais devem ser os principais focos de uma gestão municipal inteligente? Como implantar tecnologia de forma eficiente, garantindo a adesão popular?

A ideia é simplificar e integrar o máximo de sistemas, setores e funções possível. É você ter mais facilidade para o cidadão e mais participação dele, para que ele consiga ter, realmente, o acesso. Agora, se você fragmenta muito isso, deixa muito difuso, você perde o foco e realmente não vai conseguir ter a participação e consequentemente a governança.

Se as pessoas tiverem essa possibilidade de participar por meio de um aplicativo simples, fácil de usar, conhecido e que reúne várias aplicações juntas – algo que está na palma da mão, que não depende de baixar vários aplicativos e por meio do qual as pessoas sintam que realmente estão sendo ouvidas –, a tecnologia está fazendo o seu papel, está sendo eficiente.

Mas algo que é muito citado em entrevistas que foram realizadas (em sua pesquisa) é que os aplicativos geralmente carecem de eficiência nessa governança. As pessoas sentem que denunciam, reclamam de algo que está errado no seu bairro, mas não têm retorno. Isso é um problema.

É preciso ter um feedback, dar um retorno para a população sobre o que ela aponta pelo aplicativo. Neste sentido, outro ponto que a tecnologia pode favorecer são em questões de transparência. Podemos ter um controle maior sobre aquilo que é desenvolvido e garantir a conectividade entre as pessoas.

Uma das justificativas para não se implantar tecnologia em cidades é o alto custo financeiro. Como baratear e tornar viável?

Sendo assertivo nas aplicações e levando em consideração a tecnologia social e compartilhada. É preciso ouvir mais as pessoas, empresas e universidades. Se eu escuto as pessoas, posso ter soluções muito mais simples e uma menor chance de utilizar uma tecnologia ‘errada’ ou desnecessariamente cara.

Em um contexto de espaço público, não é preciso, necessariamente, esperar que o governo reforme uma praça, se posso contar com a responsabilidade compartilhada, não é? Se posso contar com parcerias com o setor privado ou com associações comunitárias para solucionar aquele problema pontual.

Já que as empresas privadas lucram explorando os recursos da sociedade, elas também precisam dar um retorno social. Isso é bom, até, para imagem delas. E seguir pela responsabilidade compartilhada dentro da cidade faz com que os custos sejam reduzidos no longo prazo. Todo mundo vive na cidade, então todo mundo é corresponsável.

Como enxerga o cenário brasileiro em relação a esse tema? Quais nossos principais desafios e oportunidades?

Nosso cenário, brasileiro, é promissor, mas ainda precisa melhorar muito. Acho que o desafio principal tem a ver com a mudança de pensamento. Muitas vezes, a gente tem uma postura de só participar no processo eleitoral. Ficamos esperando que as coisas cheguem até nós, sendo que a gente pode ser o principal ator nesse processo.

Precisamos ter uma reflexão maior sobre a importância da participação desde pequenos, nas escolas, para construirmos essa visão de cidadão e realmente participarmos do desenvolvimento de políticas públicas mais inclusivas, reduzindo a desigualdade e gerando acesso à qualidade de vida para todo mundo. Para que isso aconteça, é preciso também que haja abertura do setor público.(...)

A desigualdade é um grande problema, não dá para comparar o acesso à internet no Sudeste ao do Norte do País, por exemplo. Nós temos escolas particulares em que o uso da internet já é padrão para todos e públicas mais afastadas onde ainda não há recursos básicos. Precisamos evoluir em quatro dimensões: suporte tecnológico, atividade social, governança participativa e economia e negócios.

Falta disponibilização de internet em espaços públicos e descentralização nos projetos. Nós tivemos a implantação de internet no centro, em pontos turísticos de algumas cidades, mas é preciso que isso chegue também nas periferias. Um meio para isso são as parcerias com empresas privadas, como na implantação de pontos de ônibus inteligentes, onde há publicidade, captação de energia solar e rede Wi-Fi gratuita, para as pessoas poderem se conectar, ver que horas o ônibus vai passar, lerem uma notícia, enviarem um e-mail ou participarem de um aplicativo de governança pública.

O setor público está começando a entender a necessidade de se conectar com outros setores, mas ainda há muita burocracia nesse processo e muita dificuldade em saber lidar com essa interlocução entre diferentes frentes. Também acredito que precisamos avançar em relação à legislação, permitindo essa descentralização e facilitando parcerias.

Qual a importância de tecnologias que coletam dados na cidade? E como utilizá-las a favor da população?

O gerenciamento de dados é importante no sentido de conseguir ter uma retroalimentação. Vou conseguir aprender com aqueles dados para que eu consiga delimitar pontos de melhoria. Se pegamos, por exemplo, uma cidade que possui um aplicativo para ciclistas, consigo ter uma ideia das rotas que os ciclistas percorrem na cidade com mais frequência – seja para trabalho ou lazer. Esse dado pode ser um indicador de onde há prioridade de implantação de ciclovias. Assim, eu não vou investir em pontos em que não há necessidade, gerando economia e melhorando a eficiência.

É importante, no entanto, que essa coleta de dados seja analisada e trabalhada junto ao elemento humano. Por exemplo, o Waze e o Google Maps trabalham com essa lógica de mapeamento, de gravação de dados, para conseguir registrar os caminhos de deslocamento mais rápido nas cidades, que geralmente são feitos por pessoas que conhecem o local, ou seja, têm um conhecimento social para isso. No entanto, se não considerarmos o conhecimento humano na hora de gerenciar os dados, o aplicativo pode enviar pessoas que não são da região para locais mais perigosos, colocando-as em risco.

O conhecimento social precisa estar o tempo todo atrelado à gestão de dados para que a aplicação das soluções sejam, de fato, eficientes (...) A metodologia de armazenamento de dados é complementar ao suporte tecnológico. Então, o que as prefeituras podem fazer é desenvolver aplicações que consigam fazer esse gerenciamento e retroalimentação, mas levando consideração o conhecimento social também.

A tecnologia pode nos ajudar a enfrentar os desafios ambientais, cada vez mais latentes com as ondas de calor e os eventos climáticos extremos que temos visto?

Podemos abordar isso sobre duas vertentes: a vertente digital e a social. A respeito da vertente digital, podemos ter aplicativos como o que eu mencionei, de rotas de ciclistas, para gerar dados que levem à construção de mais ciclovias, facilitando a mobilidade e consequentemente o uso da bicicleta, que é um modo alternativo mais sustentável. Isso reduziria o deslocamento via carros e outros veículos que acabam sendo mais poluentes – o desenvolvimento de ônibus elétricos também são um exemplo de que a tecnologia pode colaborar para alternativas mais sustentáveis e que dão resultado.

Já na vertente social, é muito importante que a gente acabe com a visão de que a sustentabilidade é só sobre o ambiente natural. Ela é, na verdade, um equilíbrio de dimensões econômica, social e cultural. Por isso, gerar conexões é algo que colabora para a sustentabilidade. Quando há ações de conscientização ambiental nas escolas (utilizando tecnologia), por exemplo, desenvolvendo projetos nesse sentido, as crianças tendem a repassar aos seus parentes esses conhecimentos, gerando um efeito em cadeia.(...)

Outro exemplo é uma ação realizada pela prefeitura de Olinda, Pernambuco, em que se fez o cadastro de catadores de latinhas para que eles pudessem ter uma renda durante o período de carnaval. Esse cadastro dava o direito a deles de catarem as latinhas na rua e já faziam uma ponte com as empresas que compram essas latinhas. Isso refletiu no social, ajudando as famílias a terem uma renda, e também contribuiu para a questão do ambiente limpo no período de carnaval. Então, todo mundo saiu ganhando.

É nesse contexto, de criação de redes por meio da conectividade tecnológica, que uma cidade inteligente e criativa opera e colabora não só para o meio ambiente, como para melhorias em diferentes setores.

*A repórter viajou a convite da Associação Nacional das Cidades Inteligentes

Entrevista por Giovanna Castro

Repórter de Cidades no Estadão. Também cobre Educação, Ciência e Sustentabilidade. É formada em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e cursou Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

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