A cidade do Rio de Janeiro viveu um dos dias mais violentos da sua história recente na última segunda-feira, 23. A morte de Matheus da Silva Rezende, o Teteu, sobrinho e braço direito do chefe da maior milícia do Rio, Luiz Antonio da Silva Braga, o Zinho, em um confronto com policiais, desencadeou uma série de ataques pela zona oeste na cidade ordenados pelo grupo paramilitar que comanda a região. Ao todo, 35 ônibus foram incendiados.
Há menos de um mês, três médicos foram assassinados em um quiosque na Barra da Tijuca, também na zona oeste, sob a suspeita de que um dos profissionais do grupo pudesse ter sido confundido com um miliciano. A investigação aponta que os executores do crime pertenciam ao Comando Vermelho, que disputa o domínio da região com milicianos.
Para o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) Bruno Paes Manso, autor do livro A República das Milícias (2020), o que acontece no Rio atualmente é um “desequilíbrio da cena criminal”, que se apresentava estável até o ano passado com uma queda de homicídios, mas que foi rompida pelas disputas armadas de milícias e traficantes pela expansão de seus domínios.
“Até 2022, o Rio de Janeiro vinha reduzindo os homicídios, o que acaba sendo um termômetro de uma estabilidade territorial dos grupos, que não estavam buscando expansões ou avanços e não estavam gerando confronto fatais. Mas, isso mudou, principalmente em 2023”, diz Manso em entrevista ao Estadão.
“Em Jacarepaguá, houve uma explosão de tiroteios e uma explosão de mortes, de homicídios, acima de 100%. Isso aconteceu em decorrência desses conflitos de milícia e grupos de tráfico que passaram a ter novas alianças e ver possibilidades de expansão ou retração”, afirma.
O pesquisador interpreta que o ateamento de fogo no transporte público em plena luz do dia foi uma forma dos milicianos mostrarem o poder que têm sobre as autoridades e a população. Mas, entende também que o gesto é um sintoma da fragilidade do poder público carioca, que hoje sofre, inclusive, com a infiltração dos grupos armados dentro das próprias instituições de governo. “No caso das milícias, a diferença é que elas estão no Estado. Eles fazem parte dos poderes municipais, dos parlamentos municipais e estaduais, e tornam a situação mais imprevisível.”
Esses episódios recentes apontam para um novo capítulo do crime organizado no Rio? Como você enxerga esse momento?
O que está acontecendo agora é um desequilíbrio da cena criminal do Rio de Janeiro e está dentro do contexto histórico que vem sendo formado há 40 anos, pelo menos. O estopim desse princípio de desequilíbrio e confusão veio depois da morte do Ecko, que era um chefe das milícias de Campo Grande e Santa Cruz, em 2021, e que gerou uma disputa por poder entre o Zinho e o Tandera, dois milicianos. E, segundo as informações que chegam pela polícia, pela imprensa, houve, a partir desse conflito, uma instabilidade. Isso pode ser identificado a partir dos números: até 2022, o Rio de Janeiro vinha reduzindo os homicídios. O que acaba sendo um termômetro de uma estabilidade territorial dos grupos, que não estavam buscando expansões ou avanços e não estavam gerando confronto fatais.
Isso mudou, principalmente em 2023, quando os homicídios passaram a crescer no Rio de Janeiro contrariando uma tendência que vinha sendo verificada em outros Estados do País, como a gente identificou nos dados do Monitor da Violência, que faz análise junto com o (portal) G1 e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, o Fogo Cruzado identificou, mais precisamente na região de Jacarepaguá, uma explosão de tiroteios e uma explosão de mortes, de homicídios, acima de 100%. Isso aconteceu em decorrência desses conflitos de milícias e grupos de tráfico que passaram a ter novas alianças e ver possibilidades de expansão ou retração.
O caso dos médicos é um exemplo mais emblemático e visível, que foi justamente a milícia local ter rompido com a milícia do Rio das Pedras, que historicamente comandava a região, e se associando ao Comando Vermelho na Cidade de Deus. Esse grupo passou a dominar a Gardênia Azul e a produzir uma série de homicídios e conflitos, cujos desdobramentos, pelas informações da polícia, levaram à morte dos médicos.
Agora, no caso do Zinho, é mais um capítulo. Assumiu um novo secretário da Polícia Civil, que tenta mostrar serviço e se firmar no cargo. Um secretário que foi indicado pelos parlamentares e que tem certa contestação da imprensa. Ele tenta mostrar serviço, faz operação contra as milícias do grupo do Zinho e mata o sobrinho dele. O Zinho tenta dialogar pela violência e mostrar que tem força. A partir disso, se desencadeia uma série de ataques contra bens públicos e contra a população para mostrar que ele manda na região e que tem força.
Esses ataques indicam, então, que as milícias estão mais poderosas e que o crime no Rio está ainda mais organizado?
Acredito que sim, mas eu acho que de um lado mostra uma capacidade de coordenação de gestão, e ao mesmo tempo um compromisso dos funcionários da milícia com essa meta. A gente já viu acontecer em outros momentos. Em 2006, na véspera da eleição do Sérgio Cabral, houve uma série de ataques no Rio coordenada por traficantes. Não foi dessa dimensão, mas também foi muito grande. Uma turista chegou a ser morta dentro de um ônibus, uma série de ônibus foi incendiada. Em São Paulo, teve o caso mais emblemático de todos, que foi em 2006, com o PCC (Primeiro Comando da Capital) Isso, de alguma forma, tem sido usado pelo crime como forma de pressionar o Estado.
No caso das milícias, a diferença é que elas estão no Estado. Eles fazem parte dos poderes municipais, dos parlamentos municipais e estaduais, e tornam a situação mais imprevisível. No caso de criminosos coordenando de dentro da prisão, você tem de um lado o Estado e do outro o crime, essa divisão fica mais explícita.
Essas alianças entre facções criminosas e a milícia são antigas ou mais recentes?
Isso vem, principalmente, a partir de Campo Grande e Santa Cruz, que é justamente de onde vem essa milícia do Zinho. Quando (os milicianos) Jerominho e Natalino são presos em 2008, depois da CPI das Milícias, se inicia uma disputa de poder e quem assume essa liderança é o Carlinhos Três Pontes que não era policial. Ele já era da comunidade de Três Pontes e tinha participado do tráfico e se aproxima do Terceiro Comando Puro (organização criminosa) para fazer aliança.
Começa, então, a desenvolver um modelo de negócio que parte do controle territorial armado dos bairros e dos municípios. A partir desse controle territorial armado, os milicianos ganhavam uma série de receitas, com gatonet, apartamentos, cigarros piratas, etc... E, obviamente, o tráfico de drogas era mais uma receita que poderia encher os cofres dos milicianos, e isso começa a ficar mais comum. O Carlinhos Três Pontes morre em 2016, e assume o Ecko com essa mentalidade, e prossegue com o Zinho da mesma forma. A partir do momento que você está em uma competição de poder e de receita, em um mercado competitivo, todo mundo passa a usar uma estratégia parecida, senão fica para trás.
O que explica esses conflitos estarem acontecendo na zona oeste do Rio?
Ali é o berço das milícias. Tanto em Campo Grande e Santa Cruz, como Rio das Pedras, foram lugares de urbanização mais tardias. Esses locais ganham densidade populacional, principalmente, após os anos 60 e 70, depois de uma série de obras de vias, túneis que permitiram acesso mais fácil para as regiões de Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Campo Grande e Santa Cruz. E isso levou um monte de gente a morar nesses lugares. Só que quando chega meados dos anos 80, 90, eles ainda eram comunidades em formação que não tinham em seus territórios a força do tráfico de drogas, que começa no Rio na década de 80, principalmente, na zona norte, no centro e na zona sul. Então, os milicianos começam a se organizar para fazer o que eles chamavam de “autodefesa comunitária” para evitar a expansão do tráfico de drogas naquela região. Então, a zona oeste vira o berço das milícias.
Inclusive, os próprios políticos enxergavam isso com simpatia porque era uma organização comunitária que evitava a chegada do tráfico. Por causa disso, tinham uma certa parceria com os milicianos, que passaram a participar da política. Foram eleitos deputados, vereadores. Então, por causa dessa história de auto organização feita para evitar expansão do tráfico, a zona oeste se caracterizou como reduto principal das milícias.
É possível enxergar uma solução possível para esse problema?
Isso não vai ser do dia para noite. Vai demorar. Mas o primeiro passo é assumir o compromisso de fortalecer novamente as instituições democráticas, atuar para libertar as comunidades dessas tiranias armadas que governam diversos bairros. E isso depende de um compromisso das autoridades, das lideranças e até da própria população em enxergar que esse é o melhor caminho. Então, de um lado, é necessária a compressão desses malefícios do modelo de governabilidade que está no Rio e uma aliança de instituições e dos próprios eleitores para retomar o controle das polícias, que é o principal problema hoje, já que a polícia faz parte da cena criminal do Rio de Janeiro,.
Agora, talvez isso passe, não só por um compromisso das elites econômicas, políticas e da sociedade civil do Rio, mas com o apoio de instituições federais porque o Rio de Janeiro é um centro nevrálgico do Brasil. Então, isso passa também por uma aliança com autoridades federais, com inteligência, troca de informação e identificação do problema. (É necessário) Atuar para reduzir a lucratividade dos negócios que eles ganham dinheiro. E isso depende de um estudo, de uma compreensão da complexidade dessa indústria criminal. Então, depende do compromisso, mas também de um conhecimento e de um trabalho muito estratégico, não para iniciar uma guerra, mas fragilizar as forças econômicas desses grupos.