A queima de 35 ônibus na zona oeste do Rio foi uma ação orquestrada por milicianos em resposta à morte de Matheus da Silva Rezende, conhecido pelos apelidos de Faustão e Teteus. Sobrinho do chefe de uma das principais milícias do Rio, ele era o segundo na hierarquia do grupo criminoso. Na última década, as milícias se expandiram no Grande Rio e estão presentes em boa parte da zona oeste da capital, afetando a vida de milhões de pessoas. Mas, afinal, o que é uma milícia?
- As milícias são grupos armados que formam um poder paralelo, à revelia das forças de segurança do Estado. Em geral, elas são formadas por agentes ou ex-agentes do próprio Estado, como policiais, bombeiros e guardas penitenciários, mas há casos também de grupos criminosos criados apenas por civis.
A existência desses grupos é antiga, mas ganhou especial atenção a partir dos anos 2000. No início, eles eram exaltados publicamente até mesmo por prefeitos e governadores, que viam as milícias como grupos auxiliares na segurança pública - um grave erro, segundo especialistas, considerando que se tratavam na verdade organizações criminosas que passariam a extorquir moradores e comerciantes, mediante elevada brutalidade.
Em 2008, a Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) instaurou a CPI das Milícias, que terminou com o indiciamento de 225 pessoas, incluindo vereadores e deputados estaduais. Aquela comissão de inquérito demonstrou o verdadeiro papel dessas organizações.
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“(Elas) atuam em territórios de moradia de baixa renda, onde controlam ilegalmente ou cobram taxas extorsivas sobre os mercados de serviços essenciais como água, luz, gás, TV a cabo, transporte e segurança, além do mercado imobiliário. Sabe-se que tais controles são exercidos de maneira arbitrária, por meio de ações coercitivas como espancamentos, tortura e homicídios. Sabe-se ainda que as milícias se envolvem em disputas territoriais violentas – entre si e com “comandos” do tráfico de drogas – e que em diversas áreas elas também lucram com a venda de drogas”, explica o relatório “A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados”, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
De fato, desde aquela CPI o perfil das milícias mudou bastante. Se no início se vendia a ilusão de que elas protegeriam moradores do Rio das facções do tráfico, hoje alguns desses grupos se aliaram a eles, incluindo o Terceiro Comando Puro (TCP) e o Comando Vermelho (CV), a maior do Rio.
“A milícia se diversificou, diversificou seus negócios. Este grupo que é ligado ao Ecko estabeleceu alianças com o CV e abriu conversas com o TCP. Então, acontece algo interessante nisso: há uma escalada de assassinatos desses líderes e parece que temos uma ação antimilícia em curso. Só que esta é uma lógica muito parecida com as ações antitráfico que vemos”, diz Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado.
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“Basicamente (o que se faz é) a perseguição de líderes. Só que isso não afeta a estrutura. Então, o essencial parece ser essa aliança entre tráfico e milícia, mas garanto que não é. O essencial aqui é que vemos que há mais de uma década não temos nenhuma ação, nada com foco em atacar o poder miliciano no Estado”, acrescenta Cecília.
Um estudo realizado pelo Instituto Fogo Cruzado em parceria com o Geni/UFF mostra que as áreas dominadas por grupos milicianos aumentaram 387,3% entre 2006 e 2021. Ao todo, segundo o mapeamento, 10% de toda a área territorial que compõe a região metropolitana do Rio tem atuação deles.
Na zona oeste carioca, onde os ônibus foram queimados na segunda-feira, os índices de violência cresceram muito este ano em relação a 2022. Segundo o Fogo Cruzado, até 23 de outubro o número de tiroteios havia aumentado 55% na região, e o de chacinas saltou de 4 para 14, o que representava um aumento de 250%.
O governo do Estado afirma estar empenhado no combate às milícias. Em nota, afirmou que “as ações para asfixiar o crime organizado já resultaram em prejuízos de mais de R$ 2,5 bilhões para as milícias” e que “mais de 1.500 milicianos foram presos”.
Morte de Ecko intensificou ataques das milícias; conheça algumas das principais lideranças
A violência na zona oeste por parte das milícias se intensificou ainda mais nos últimos anos a partir da morte de Wellington da Silva Braga, o Ecko. Líder da Liga da Justiça, então a maior milícia do Rio, ele foi morto em 2021 em uma ação da Polícia Civil. O processo de sucessão no grupo desencadeou uma verdadeira guerra entre seu irmão Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, e Danilo Dias Lima, o Tandera.
“Houve um racha na milícia, com Tandera e Zinho disputando o controle das áreas que eram de domínio de Ecko. Esse conflito entre milicianos é grande e afeta a vida de milhões de pessoas há meses”, explica Cecília Olliveira, do Instituto Fogo Cruzado.
“A Liga da Justiça, milícia formada inicialmente por policiais expulsos e aposentados, se transformou com a liderança de Carlinhos Três Pontes, que foi traficante e nunca foi policial. Ele começou a chamar traficantes para compor a milícia, e expandiu a relação com o tráfico”, explica Cecília.
Zinho, de 44 anos, chegou à milícia por sua habilidade com as contas, apontam investigações. Era o responsável, segundo o governo do Rio, por contabilizar e lavar o dinheiro oriundo das atividades ilícitas, entre elas a venda clandestina de sinais de TV a cabo, licenças para serviços de transporte, venda de gás e cobrança de taxas de segurança dos pequenos comerciantes.
Tandera, com quem Zinho está em batalha sangrenta, rompeu com o grupo e se aliou a outros parceiros no crime. Investigações mostram que ele controla vastas regiões em cidades da Baixada Fluminense, como Seropédica, Queimados e Nova Iguaçu. O miliciano é conhecido pelo uso de armas potentes, bombas e pelo estilo cruel.
Além deles, outro miliciano bastante procurado pela polícia do Rio é Wilton Carlos Rabello Quintanilha, o Abelha, de 52 anos. Ele atua diretamente no tráfico de drogas e está entre as lideranças do Comando Vermelho (CV), segundo o governo do Estado.
O criminoso, com trânsito entre traficantes e milicianos, saiu pela porta da frente do Complexo de Bangu, em julho de 2021, mesmo com mandado de prisão expedido. Segundo o Ministério Público do Rio, Abelha participou da decisão do CV de invadir o Morro de São Carlos, em 2020, que estava sob controle de uma facção rival.