O último bocado de içá


Por José de Souza Martins

Naquele 1948 em que fui matriculado no Grupo Escolar Pedro Taques, Guaianases era um povoado ao lado da estação ferroviária, as ruas iluminadas à noite por lampiões de querosene. No largo da estação terminava a estrada de terra que vinha da Fazenda Santa Etelvina. Era o meu caminho, 16 quilômetros batidos a pé, entre a ida e a volta, entre o casebre da roça e a sala de aula lotada, três alunos por carteira. Éramos um bando de meninas e meninos que moravam para os mesmos lados. De pé no chão, nas manhãs de inverno os pés doíam muito. No caminho da roça, já no sol quente do meio-dia, íamos ficando pelos sítios e chácaras. Eu era o último. Chegava faminto em casa, para o invariável prato morno de arroz, feijão e repolho. Quando li Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, entendi perfeitamente a referência àquela insaciável fome de carne tão característica do mundo caipira. Era a fome que eu sentia. Meu padrasto, quando tinha essa fome, pegava a espingarda e saía para caçar. Voltava com um tatu, um filhote de veado, alguma ave. Sinal de que a coisa piorava foi no dia em que caçou um ouriço, bicho feio. Foi duro comer aquilo, a carne dura, escura e mal cheirosa. Mas fome é fome. Um belo dia houve a revoada da içá, a fêmea da saúva, prenhe de ovos, que em minutos abre um buraco no chão e nele se afunda para estabelecer um novo formigueiro. Era preciso correr com a panela numa das mãos e um graveto na outra para separar-lhe o abdômen gorducho, antes que sumisse na terra. E correr de um lado para outro, para catar o maior número delas. Deram uma panelada de içá torrada, que meu padrasto, um mameluco, caipira de verdade, comeu com voracidade, com uma fome que eu nunca vira, fome ancestral, fome do índio que nele havia do tempo do deslocamento paulista na direção dos sertões de Minas. Ofereceu um pouco da iguaria a meu irmão e a mim, esperando que não aceitássemos. Aquele foi o meu limite na carência alimentar. Curioso: ao mesmo tempo em que ali se prezava aquela raridade culinária, havia uma guerra contra a saúva, que voraz, e com fome parecida, comia as plantas cultivadas com suado trabalho. De vez em quando era chamado o batalhão dos mata-formigas da Prefeitura de São Paulo, que chegava lá na roça para acabar com os formigueiros. Era um mundaréu de gente, munida de foles, na ponta dos quais havia um pequeno tambor de ferro em que punham brasas e sobre as brasas enxofre para colorir a fumaça e arsênico. Com o fole sopravam a fumaça amarela para dentro dos buracos. Alguns ficavam de olho para ver onde a fumaça ia sair. E tapavam cada saída. Saturavam os formigueiros com a fumaça letal. O requintado prato indígena estava condenado no que ainda não era a degradada periferia urbana de São Paulo.

Naquele 1948 em que fui matriculado no Grupo Escolar Pedro Taques, Guaianases era um povoado ao lado da estação ferroviária, as ruas iluminadas à noite por lampiões de querosene. No largo da estação terminava a estrada de terra que vinha da Fazenda Santa Etelvina. Era o meu caminho, 16 quilômetros batidos a pé, entre a ida e a volta, entre o casebre da roça e a sala de aula lotada, três alunos por carteira. Éramos um bando de meninas e meninos que moravam para os mesmos lados. De pé no chão, nas manhãs de inverno os pés doíam muito. No caminho da roça, já no sol quente do meio-dia, íamos ficando pelos sítios e chácaras. Eu era o último. Chegava faminto em casa, para o invariável prato morno de arroz, feijão e repolho. Quando li Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, entendi perfeitamente a referência àquela insaciável fome de carne tão característica do mundo caipira. Era a fome que eu sentia. Meu padrasto, quando tinha essa fome, pegava a espingarda e saía para caçar. Voltava com um tatu, um filhote de veado, alguma ave. Sinal de que a coisa piorava foi no dia em que caçou um ouriço, bicho feio. Foi duro comer aquilo, a carne dura, escura e mal cheirosa. Mas fome é fome. Um belo dia houve a revoada da içá, a fêmea da saúva, prenhe de ovos, que em minutos abre um buraco no chão e nele se afunda para estabelecer um novo formigueiro. Era preciso correr com a panela numa das mãos e um graveto na outra para separar-lhe o abdômen gorducho, antes que sumisse na terra. E correr de um lado para outro, para catar o maior número delas. Deram uma panelada de içá torrada, que meu padrasto, um mameluco, caipira de verdade, comeu com voracidade, com uma fome que eu nunca vira, fome ancestral, fome do índio que nele havia do tempo do deslocamento paulista na direção dos sertões de Minas. Ofereceu um pouco da iguaria a meu irmão e a mim, esperando que não aceitássemos. Aquele foi o meu limite na carência alimentar. Curioso: ao mesmo tempo em que ali se prezava aquela raridade culinária, havia uma guerra contra a saúva, que voraz, e com fome parecida, comia as plantas cultivadas com suado trabalho. De vez em quando era chamado o batalhão dos mata-formigas da Prefeitura de São Paulo, que chegava lá na roça para acabar com os formigueiros. Era um mundaréu de gente, munida de foles, na ponta dos quais havia um pequeno tambor de ferro em que punham brasas e sobre as brasas enxofre para colorir a fumaça e arsênico. Com o fole sopravam a fumaça amarela para dentro dos buracos. Alguns ficavam de olho para ver onde a fumaça ia sair. E tapavam cada saída. Saturavam os formigueiros com a fumaça letal. O requintado prato indígena estava condenado no que ainda não era a degradada periferia urbana de São Paulo.

Naquele 1948 em que fui matriculado no Grupo Escolar Pedro Taques, Guaianases era um povoado ao lado da estação ferroviária, as ruas iluminadas à noite por lampiões de querosene. No largo da estação terminava a estrada de terra que vinha da Fazenda Santa Etelvina. Era o meu caminho, 16 quilômetros batidos a pé, entre a ida e a volta, entre o casebre da roça e a sala de aula lotada, três alunos por carteira. Éramos um bando de meninas e meninos que moravam para os mesmos lados. De pé no chão, nas manhãs de inverno os pés doíam muito. No caminho da roça, já no sol quente do meio-dia, íamos ficando pelos sítios e chácaras. Eu era o último. Chegava faminto em casa, para o invariável prato morno de arroz, feijão e repolho. Quando li Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, entendi perfeitamente a referência àquela insaciável fome de carne tão característica do mundo caipira. Era a fome que eu sentia. Meu padrasto, quando tinha essa fome, pegava a espingarda e saía para caçar. Voltava com um tatu, um filhote de veado, alguma ave. Sinal de que a coisa piorava foi no dia em que caçou um ouriço, bicho feio. Foi duro comer aquilo, a carne dura, escura e mal cheirosa. Mas fome é fome. Um belo dia houve a revoada da içá, a fêmea da saúva, prenhe de ovos, que em minutos abre um buraco no chão e nele se afunda para estabelecer um novo formigueiro. Era preciso correr com a panela numa das mãos e um graveto na outra para separar-lhe o abdômen gorducho, antes que sumisse na terra. E correr de um lado para outro, para catar o maior número delas. Deram uma panelada de içá torrada, que meu padrasto, um mameluco, caipira de verdade, comeu com voracidade, com uma fome que eu nunca vira, fome ancestral, fome do índio que nele havia do tempo do deslocamento paulista na direção dos sertões de Minas. Ofereceu um pouco da iguaria a meu irmão e a mim, esperando que não aceitássemos. Aquele foi o meu limite na carência alimentar. Curioso: ao mesmo tempo em que ali se prezava aquela raridade culinária, havia uma guerra contra a saúva, que voraz, e com fome parecida, comia as plantas cultivadas com suado trabalho. De vez em quando era chamado o batalhão dos mata-formigas da Prefeitura de São Paulo, que chegava lá na roça para acabar com os formigueiros. Era um mundaréu de gente, munida de foles, na ponta dos quais havia um pequeno tambor de ferro em que punham brasas e sobre as brasas enxofre para colorir a fumaça e arsênico. Com o fole sopravam a fumaça amarela para dentro dos buracos. Alguns ficavam de olho para ver onde a fumaça ia sair. E tapavam cada saída. Saturavam os formigueiros com a fumaça letal. O requintado prato indígena estava condenado no que ainda não era a degradada periferia urbana de São Paulo.

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