Os títulos fundamentais, segundo autores e estudiosos brasileiros


A pedido do ''Estado'', ficcionistas e ensaístas revelam os clássicos de sua predileção; o russo Fiodor Dostoievski desponta entre os favoritos

Por Redação

LYGIA FAGUNDES TELLESNa juventude, minha paixão eram os romances de Dostoievski, especialmente Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov e Memórias do Subsolo. Na maturidade, Machado de Assis, com Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Dois escritores que tinham em comum a epilepsia e a paixão por Deus. Também a escrita de ambos é velada e flui inicialmente como o navegar em um rio calmo. Os personagens carregam o leitor até que, de repente, vem a turbulência, surgem os jacarés, as cataratas, e o leitor se assusta, sente-se perdido - mas recompensado.RONALDO CORREIA DE BRITOPenso num romance que li bem jovem e reli sempre: Os Irmãos Karamazov. Devo muito a esse livro, apesar dos seus excessos narrativos. Certa vez, Paulo Francis fez uma leitura apenas do que achava essencial no romance, deixando de fora o que lhe parecia desnecessário. Concluiu que a força de Dostoievski reside no excesso. Ele inaugura a psicanálise antes de Freud, não como método terapêutico, mas como investigação da psique. E seria o equivalente russo de Shakespeare, "reinventando" o humano. Cabe tudo nos seus livros: o real e o transcendente. A épica da sociedade moderna é o romance, segundo Burckhardt, mesmo que este seja um gênero ambíguo, espécie de confissão, autobiografia ou gênero filosófico. Tornou-se enfadonha a discussão de se é mais difícil escrever um conto ou um romance e que gênero seria mais perfeito. Decadentes ou não, romances continuam sendo escritos aos milhares, atestando, talvez, que o mundo que rodeia seus heróis continua tão ambíguo como os próprios heróis neles representados.IVO BARROSOQual o romance de que mais gostei? Em confidência, não espere os costumeiros Ulisses, Middlemarch, O Homem Sem Qualidades, Auto de Fé e outros da mesma linha excelsa. Na juventude, quando ainda não pensava em me tornar escritor, li e me apaixonei pelo Olhai os Lírios do Campo, do Erico Verissimo. Era natural, pela idade, pelo clima romântico em que vivia, pelo desconhecimento de horizontes literários mais amplos. Depois, entreguei-me aos romances de aventuras, andei por todo o Dumas disponível, naveguei com Victor Hugo, e houve época em que, depois de ter lido Os Miseráveis, achei ter alcançado o ponto máximo da literatura. O grande impacto veio com Crime e Castigo, que li numa edição da Pongetti, certamente traduzido do francês, com os costumeiros cortes que os tradutores de lá fazem das partes que consideram "chatas" ou "desnecessárias" para o leitor. O livro mudou minha maneira de ser, minha visão de mundo. Quando comecei a traduzir, passei a conviver com grandes escritores como Gide, Yourcenar, Calvino, e mesmo Jane Austen. Tive fascínio por Gide, principalmente pelo Imoralista e as Nourritures Terrestres, que li na bela tradução de Sérgio Milliet. Foi ele quem me levou a Blake. Também o Hermann Hesse de Demian e do Lobo da Estepe sempre estiveram na minha lista de prioridades. Demian foi para mim um "Bildungsroman", um livro educacional capaz de, como disse Rilke, "mudar a vida", pois me ensinou a vencer uma timidez patológica; logo que o li, cismei que o haveria de traduzir em benefício daqueles que sofriam das mesmas inibições que eu tinha (pelo menos à época). Mas acho mesmo que, de todos os (poucos) romances que li ou traduzi, o meu preferido será sempre A Vida, Modo de Usar, de Georges Perec, por ter esgotado, a meu ver, todas as possibilidades de narrativa, tanto que o subtitulou de Romances, no plural. Lê-lo é uma experiência inesquecível. Quanto à questão do esgotamento do gênero, não vejo motivos para tamanho ceticismo. Se rareiam títulos como Cem Anos de Solidão, O Apanhador no Campo de Centeio, A Sangue Frio - substituídos por incursões pornográficas de toda espécie e embromações magas e potterianas -, o certo é que o gênero ainda pode surpreender, já que é possível distinguir-se na cambulhada alguns momentos de cultura estilística tal como o recente Outra Vida, de Rodrigo Lacerda, e de força dramática e imaginação criadora como o Relato de Prócula, de W.J. Solha, para citar apenas dois.MILTON HATOUMDom Quixote é a matriz do romance moderno, embora não seja um romance de feição realista clássico, como a prosa de ficção europeia do século 19. Mas nas aventuras extravagantes desse livro extraordinário, o herói se depara com o bem e o mal, com a realidade de seu tempo e lugar, que muitas vezes ele vê de uma forma fantasiosa. A perplexidade e a desorientação de Quixote, os problemas e mistérios que surgem em sua quase infinita aventura revelam algum paralelismo com os do mundo moderno. No fim do livro, o ideal da cavalaria cai em descrédito, antecipando a desilusão do herói, que será um dos temas decisivos do romance realista do século 19. Mas a linguagem e composição do livro de Miguel de Cervantes antecipam muita coisa que seria usada séculos depois e, a rigor, até hoje. Em primeiro lugar, o manuscrito do Dom Quixote foi encontrado pelo narrador no mercado de Toledo. Esses papéis, escritos pelo historiador árabe Cide Hamete Benengeli, foram traduzidos por um mouro, e essa tradução servirá de base para o livro. A paródia, o mito, a oralidade, as inúmeras alusões a autores e obras de outras culturas, a ambiguidade entre realidade e fantasia, os lances de alucinação, a loucura, o trançado de aventuras e a exploração psicológica dos protagonistas, a história da Espanha, tudo isso é faz do romance de Cervantes uma espécie de matriz da arte da ficção. O romance é um gênero que já nasceu em crise, mas tem uma inesgotável capacidade de se renovar. O romance do século 20 explorou novas técnicas de narrar uma história. Em alguns casos, inovou radicalmente a linguagem. Raramente surge uma obra como a de James Joyce ou Guimarães Rosa. Acho que há um esgotamento da vanguarda, do romance experimental. Mas há inúmeros modos de estruturar uma ficção. O gênero não se esgota porque a imaginação e a memória dos leitores são inesgotáveis. E são os leitores que justificam a literatura.SILVIANO SANTIAGOPara quem assume o ofício de escrever ficção, a escolha do melhor romance não coincide necessariamente com a escolha feita por alguém que exerce o magistério ou a crítica literária. Para o futuro ficcionista, o mais importante romance do mundo é o que lhe ensinou o caminho das pedras. Em certo estágio da vida, sua leitura foi o patamar, de onde foi possível avistar as grandes obras que a docência e a crítica literárias determinam como tendo estabelecido um padrão inigualável. Recomenda-se a gratidão eterna. Escolho Les Faux-Monnayeurs (Os Moedeiros Falsos, tradução de Álvaro Moreira), de André Gide. Primeiro, por ter sido o melhor romance indicado por Jacques do Prado Brandão, meu mentor no início dos anos 1950. Segundo, por ter sido, coincidentemente, tema de minha tese de doutorado. Terceiro, por Alexandre Eulálio ter-me proporcionado a rara oportunidade de trabalhar com um manuscrito inédito dos primeiros capítulos, hoje no Museu Britânico. Durante anos de estudo, visualizei e compreendi, ao ar livre das páginas escritas à mão por Gide, o difícil trato que a escrita ficcional requer. Agruras e alegrias. A conhecida lei de Lavoisier é válida também para a perenidade da forma romance. Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A longa história da inevitabilidade da lei está, por exemplo, em Anatomia da Crítica, de Northrop Frye. No mais, como lembra Autran Dourado, de vez em quando aparece um espírito de porco que, por não conseguir nadar bem, se delicia em esvaziar a piscina.LUIZ COSTA LIMAO melhor romance que tenha lido: neste momento, creio que seja Os Irmãos Karamazov. Esgotamento do gênero: como falar em exaustão quando Philip Roth, Coetzee e tantos outros continuam escrevendo? Parece-me que a pergunta é antes indicativa de uma das duas manias recentes dos meios de comunicação: anunciar um pós alguma coisa e a morte de outra.

LYGIA FAGUNDES TELLESNa juventude, minha paixão eram os romances de Dostoievski, especialmente Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov e Memórias do Subsolo. Na maturidade, Machado de Assis, com Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Dois escritores que tinham em comum a epilepsia e a paixão por Deus. Também a escrita de ambos é velada e flui inicialmente como o navegar em um rio calmo. Os personagens carregam o leitor até que, de repente, vem a turbulência, surgem os jacarés, as cataratas, e o leitor se assusta, sente-se perdido - mas recompensado.RONALDO CORREIA DE BRITOPenso num romance que li bem jovem e reli sempre: Os Irmãos Karamazov. Devo muito a esse livro, apesar dos seus excessos narrativos. Certa vez, Paulo Francis fez uma leitura apenas do que achava essencial no romance, deixando de fora o que lhe parecia desnecessário. Concluiu que a força de Dostoievski reside no excesso. Ele inaugura a psicanálise antes de Freud, não como método terapêutico, mas como investigação da psique. E seria o equivalente russo de Shakespeare, "reinventando" o humano. Cabe tudo nos seus livros: o real e o transcendente. A épica da sociedade moderna é o romance, segundo Burckhardt, mesmo que este seja um gênero ambíguo, espécie de confissão, autobiografia ou gênero filosófico. Tornou-se enfadonha a discussão de se é mais difícil escrever um conto ou um romance e que gênero seria mais perfeito. Decadentes ou não, romances continuam sendo escritos aos milhares, atestando, talvez, que o mundo que rodeia seus heróis continua tão ambíguo como os próprios heróis neles representados.IVO BARROSOQual o romance de que mais gostei? Em confidência, não espere os costumeiros Ulisses, Middlemarch, O Homem Sem Qualidades, Auto de Fé e outros da mesma linha excelsa. Na juventude, quando ainda não pensava em me tornar escritor, li e me apaixonei pelo Olhai os Lírios do Campo, do Erico Verissimo. Era natural, pela idade, pelo clima romântico em que vivia, pelo desconhecimento de horizontes literários mais amplos. Depois, entreguei-me aos romances de aventuras, andei por todo o Dumas disponível, naveguei com Victor Hugo, e houve época em que, depois de ter lido Os Miseráveis, achei ter alcançado o ponto máximo da literatura. O grande impacto veio com Crime e Castigo, que li numa edição da Pongetti, certamente traduzido do francês, com os costumeiros cortes que os tradutores de lá fazem das partes que consideram "chatas" ou "desnecessárias" para o leitor. O livro mudou minha maneira de ser, minha visão de mundo. Quando comecei a traduzir, passei a conviver com grandes escritores como Gide, Yourcenar, Calvino, e mesmo Jane Austen. Tive fascínio por Gide, principalmente pelo Imoralista e as Nourritures Terrestres, que li na bela tradução de Sérgio Milliet. Foi ele quem me levou a Blake. Também o Hermann Hesse de Demian e do Lobo da Estepe sempre estiveram na minha lista de prioridades. Demian foi para mim um "Bildungsroman", um livro educacional capaz de, como disse Rilke, "mudar a vida", pois me ensinou a vencer uma timidez patológica; logo que o li, cismei que o haveria de traduzir em benefício daqueles que sofriam das mesmas inibições que eu tinha (pelo menos à época). Mas acho mesmo que, de todos os (poucos) romances que li ou traduzi, o meu preferido será sempre A Vida, Modo de Usar, de Georges Perec, por ter esgotado, a meu ver, todas as possibilidades de narrativa, tanto que o subtitulou de Romances, no plural. Lê-lo é uma experiência inesquecível. Quanto à questão do esgotamento do gênero, não vejo motivos para tamanho ceticismo. Se rareiam títulos como Cem Anos de Solidão, O Apanhador no Campo de Centeio, A Sangue Frio - substituídos por incursões pornográficas de toda espécie e embromações magas e potterianas -, o certo é que o gênero ainda pode surpreender, já que é possível distinguir-se na cambulhada alguns momentos de cultura estilística tal como o recente Outra Vida, de Rodrigo Lacerda, e de força dramática e imaginação criadora como o Relato de Prócula, de W.J. Solha, para citar apenas dois.MILTON HATOUMDom Quixote é a matriz do romance moderno, embora não seja um romance de feição realista clássico, como a prosa de ficção europeia do século 19. Mas nas aventuras extravagantes desse livro extraordinário, o herói se depara com o bem e o mal, com a realidade de seu tempo e lugar, que muitas vezes ele vê de uma forma fantasiosa. A perplexidade e a desorientação de Quixote, os problemas e mistérios que surgem em sua quase infinita aventura revelam algum paralelismo com os do mundo moderno. No fim do livro, o ideal da cavalaria cai em descrédito, antecipando a desilusão do herói, que será um dos temas decisivos do romance realista do século 19. Mas a linguagem e composição do livro de Miguel de Cervantes antecipam muita coisa que seria usada séculos depois e, a rigor, até hoje. Em primeiro lugar, o manuscrito do Dom Quixote foi encontrado pelo narrador no mercado de Toledo. Esses papéis, escritos pelo historiador árabe Cide Hamete Benengeli, foram traduzidos por um mouro, e essa tradução servirá de base para o livro. A paródia, o mito, a oralidade, as inúmeras alusões a autores e obras de outras culturas, a ambiguidade entre realidade e fantasia, os lances de alucinação, a loucura, o trançado de aventuras e a exploração psicológica dos protagonistas, a história da Espanha, tudo isso é faz do romance de Cervantes uma espécie de matriz da arte da ficção. O romance é um gênero que já nasceu em crise, mas tem uma inesgotável capacidade de se renovar. O romance do século 20 explorou novas técnicas de narrar uma história. Em alguns casos, inovou radicalmente a linguagem. Raramente surge uma obra como a de James Joyce ou Guimarães Rosa. Acho que há um esgotamento da vanguarda, do romance experimental. Mas há inúmeros modos de estruturar uma ficção. O gênero não se esgota porque a imaginação e a memória dos leitores são inesgotáveis. E são os leitores que justificam a literatura.SILVIANO SANTIAGOPara quem assume o ofício de escrever ficção, a escolha do melhor romance não coincide necessariamente com a escolha feita por alguém que exerce o magistério ou a crítica literária. Para o futuro ficcionista, o mais importante romance do mundo é o que lhe ensinou o caminho das pedras. Em certo estágio da vida, sua leitura foi o patamar, de onde foi possível avistar as grandes obras que a docência e a crítica literárias determinam como tendo estabelecido um padrão inigualável. Recomenda-se a gratidão eterna. Escolho Les Faux-Monnayeurs (Os Moedeiros Falsos, tradução de Álvaro Moreira), de André Gide. Primeiro, por ter sido o melhor romance indicado por Jacques do Prado Brandão, meu mentor no início dos anos 1950. Segundo, por ter sido, coincidentemente, tema de minha tese de doutorado. Terceiro, por Alexandre Eulálio ter-me proporcionado a rara oportunidade de trabalhar com um manuscrito inédito dos primeiros capítulos, hoje no Museu Britânico. Durante anos de estudo, visualizei e compreendi, ao ar livre das páginas escritas à mão por Gide, o difícil trato que a escrita ficcional requer. Agruras e alegrias. A conhecida lei de Lavoisier é válida também para a perenidade da forma romance. Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A longa história da inevitabilidade da lei está, por exemplo, em Anatomia da Crítica, de Northrop Frye. No mais, como lembra Autran Dourado, de vez em quando aparece um espírito de porco que, por não conseguir nadar bem, se delicia em esvaziar a piscina.LUIZ COSTA LIMAO melhor romance que tenha lido: neste momento, creio que seja Os Irmãos Karamazov. Esgotamento do gênero: como falar em exaustão quando Philip Roth, Coetzee e tantos outros continuam escrevendo? Parece-me que a pergunta é antes indicativa de uma das duas manias recentes dos meios de comunicação: anunciar um pós alguma coisa e a morte de outra.

LYGIA FAGUNDES TELLESNa juventude, minha paixão eram os romances de Dostoievski, especialmente Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov e Memórias do Subsolo. Na maturidade, Machado de Assis, com Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Dois escritores que tinham em comum a epilepsia e a paixão por Deus. Também a escrita de ambos é velada e flui inicialmente como o navegar em um rio calmo. Os personagens carregam o leitor até que, de repente, vem a turbulência, surgem os jacarés, as cataratas, e o leitor se assusta, sente-se perdido - mas recompensado.RONALDO CORREIA DE BRITOPenso num romance que li bem jovem e reli sempre: Os Irmãos Karamazov. Devo muito a esse livro, apesar dos seus excessos narrativos. Certa vez, Paulo Francis fez uma leitura apenas do que achava essencial no romance, deixando de fora o que lhe parecia desnecessário. Concluiu que a força de Dostoievski reside no excesso. Ele inaugura a psicanálise antes de Freud, não como método terapêutico, mas como investigação da psique. E seria o equivalente russo de Shakespeare, "reinventando" o humano. Cabe tudo nos seus livros: o real e o transcendente. A épica da sociedade moderna é o romance, segundo Burckhardt, mesmo que este seja um gênero ambíguo, espécie de confissão, autobiografia ou gênero filosófico. Tornou-se enfadonha a discussão de se é mais difícil escrever um conto ou um romance e que gênero seria mais perfeito. Decadentes ou não, romances continuam sendo escritos aos milhares, atestando, talvez, que o mundo que rodeia seus heróis continua tão ambíguo como os próprios heróis neles representados.IVO BARROSOQual o romance de que mais gostei? Em confidência, não espere os costumeiros Ulisses, Middlemarch, O Homem Sem Qualidades, Auto de Fé e outros da mesma linha excelsa. Na juventude, quando ainda não pensava em me tornar escritor, li e me apaixonei pelo Olhai os Lírios do Campo, do Erico Verissimo. Era natural, pela idade, pelo clima romântico em que vivia, pelo desconhecimento de horizontes literários mais amplos. Depois, entreguei-me aos romances de aventuras, andei por todo o Dumas disponível, naveguei com Victor Hugo, e houve época em que, depois de ter lido Os Miseráveis, achei ter alcançado o ponto máximo da literatura. O grande impacto veio com Crime e Castigo, que li numa edição da Pongetti, certamente traduzido do francês, com os costumeiros cortes que os tradutores de lá fazem das partes que consideram "chatas" ou "desnecessárias" para o leitor. O livro mudou minha maneira de ser, minha visão de mundo. Quando comecei a traduzir, passei a conviver com grandes escritores como Gide, Yourcenar, Calvino, e mesmo Jane Austen. Tive fascínio por Gide, principalmente pelo Imoralista e as Nourritures Terrestres, que li na bela tradução de Sérgio Milliet. Foi ele quem me levou a Blake. Também o Hermann Hesse de Demian e do Lobo da Estepe sempre estiveram na minha lista de prioridades. Demian foi para mim um "Bildungsroman", um livro educacional capaz de, como disse Rilke, "mudar a vida", pois me ensinou a vencer uma timidez patológica; logo que o li, cismei que o haveria de traduzir em benefício daqueles que sofriam das mesmas inibições que eu tinha (pelo menos à época). Mas acho mesmo que, de todos os (poucos) romances que li ou traduzi, o meu preferido será sempre A Vida, Modo de Usar, de Georges Perec, por ter esgotado, a meu ver, todas as possibilidades de narrativa, tanto que o subtitulou de Romances, no plural. Lê-lo é uma experiência inesquecível. Quanto à questão do esgotamento do gênero, não vejo motivos para tamanho ceticismo. Se rareiam títulos como Cem Anos de Solidão, O Apanhador no Campo de Centeio, A Sangue Frio - substituídos por incursões pornográficas de toda espécie e embromações magas e potterianas -, o certo é que o gênero ainda pode surpreender, já que é possível distinguir-se na cambulhada alguns momentos de cultura estilística tal como o recente Outra Vida, de Rodrigo Lacerda, e de força dramática e imaginação criadora como o Relato de Prócula, de W.J. Solha, para citar apenas dois.MILTON HATOUMDom Quixote é a matriz do romance moderno, embora não seja um romance de feição realista clássico, como a prosa de ficção europeia do século 19. Mas nas aventuras extravagantes desse livro extraordinário, o herói se depara com o bem e o mal, com a realidade de seu tempo e lugar, que muitas vezes ele vê de uma forma fantasiosa. A perplexidade e a desorientação de Quixote, os problemas e mistérios que surgem em sua quase infinita aventura revelam algum paralelismo com os do mundo moderno. No fim do livro, o ideal da cavalaria cai em descrédito, antecipando a desilusão do herói, que será um dos temas decisivos do romance realista do século 19. Mas a linguagem e composição do livro de Miguel de Cervantes antecipam muita coisa que seria usada séculos depois e, a rigor, até hoje. Em primeiro lugar, o manuscrito do Dom Quixote foi encontrado pelo narrador no mercado de Toledo. Esses papéis, escritos pelo historiador árabe Cide Hamete Benengeli, foram traduzidos por um mouro, e essa tradução servirá de base para o livro. A paródia, o mito, a oralidade, as inúmeras alusões a autores e obras de outras culturas, a ambiguidade entre realidade e fantasia, os lances de alucinação, a loucura, o trançado de aventuras e a exploração psicológica dos protagonistas, a história da Espanha, tudo isso é faz do romance de Cervantes uma espécie de matriz da arte da ficção. O romance é um gênero que já nasceu em crise, mas tem uma inesgotável capacidade de se renovar. O romance do século 20 explorou novas técnicas de narrar uma história. Em alguns casos, inovou radicalmente a linguagem. Raramente surge uma obra como a de James Joyce ou Guimarães Rosa. Acho que há um esgotamento da vanguarda, do romance experimental. Mas há inúmeros modos de estruturar uma ficção. O gênero não se esgota porque a imaginação e a memória dos leitores são inesgotáveis. E são os leitores que justificam a literatura.SILVIANO SANTIAGOPara quem assume o ofício de escrever ficção, a escolha do melhor romance não coincide necessariamente com a escolha feita por alguém que exerce o magistério ou a crítica literária. Para o futuro ficcionista, o mais importante romance do mundo é o que lhe ensinou o caminho das pedras. Em certo estágio da vida, sua leitura foi o patamar, de onde foi possível avistar as grandes obras que a docência e a crítica literárias determinam como tendo estabelecido um padrão inigualável. Recomenda-se a gratidão eterna. Escolho Les Faux-Monnayeurs (Os Moedeiros Falsos, tradução de Álvaro Moreira), de André Gide. Primeiro, por ter sido o melhor romance indicado por Jacques do Prado Brandão, meu mentor no início dos anos 1950. Segundo, por ter sido, coincidentemente, tema de minha tese de doutorado. Terceiro, por Alexandre Eulálio ter-me proporcionado a rara oportunidade de trabalhar com um manuscrito inédito dos primeiros capítulos, hoje no Museu Britânico. Durante anos de estudo, visualizei e compreendi, ao ar livre das páginas escritas à mão por Gide, o difícil trato que a escrita ficcional requer. Agruras e alegrias. A conhecida lei de Lavoisier é válida também para a perenidade da forma romance. Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A longa história da inevitabilidade da lei está, por exemplo, em Anatomia da Crítica, de Northrop Frye. No mais, como lembra Autran Dourado, de vez em quando aparece um espírito de porco que, por não conseguir nadar bem, se delicia em esvaziar a piscina.LUIZ COSTA LIMAO melhor romance que tenha lido: neste momento, creio que seja Os Irmãos Karamazov. Esgotamento do gênero: como falar em exaustão quando Philip Roth, Coetzee e tantos outros continuam escrevendo? Parece-me que a pergunta é antes indicativa de uma das duas manias recentes dos meios de comunicação: anunciar um pós alguma coisa e a morte de outra.

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