Papo de avoado


Por HUMBERTO WERNECK

 Ao reclamar, na semana passada, da falta de uma palavra em português para designar a condição de avô, confessei a inveja que sinto dos hispânicos, com seu abuelazgo e sua abuelidad. Pouco importa se não estiverem dicionarizadas. Quem as utiliza está em melhores condições do que nós, que nem informalmente dizemos "avoíce", "avoidade" ou similar.Pois bem, eis que nos últimos dias o feio sentimento da inveja se estendeu também aos usuários do inglês - e com muito mais razão: eles não só dispõem de grandparenthood, soprou minha amiga Mariângela, como esta palavra está no dicionário, no Webster, pelo menos, para significar "the state of being grandparent". Minha inveja passou a incluir também os alemães: o Achim Robert informou que seus compatriotas são ainda mais afortunados que os anglo-saxões, pois em sua língua existem diferentes palavras para a condição de avô e de avó, respectivamente Grossvaterschaft e Grossmutterschaft. Em compensação, saboreei um contentamento mesquinho ao saber pela Aparecida, tradutora de truz, que também na língua russa inexistem vocábulos para designar o estado do ded e da bábuchka.Se você me acompanhou até aqui, já percebeu em que meandros linguísticos vim parar. E não só eu, pois minha reclamação mobilizou um bocado de gente. Lá de Minas, a Maria Regina declarou voto em "avoíce", uma das alternativas que propus na semana passada. "Achei até simpático", disse ela. Do Rio, a Carmen sugeriu "nonada", na tentativa de injetar sentido novo na palavra que abre o Grande Sertão: Veredas e que no dicionário é apresentada como ninharia, insignificância. Ela me explicou que o seu "nonada" é tudo - longe de evocar pequenez, realça a imponência do nonno e da nonna, os avós italianos. O Sergio Augusto não perdeu a oportunidade de pôr sal na conversa: "Que tal chamarmos de ‘nonada’ a mulher que não conseguiu ser avó?"A Nísia, por sua vez, com a experiência de quem já contabiliza três netos e tem um quarto a caminho, trouxe duas contribuições: "avoência", que a seu ver "combina com consciência, prudência e paciência"; e, melhor ainda, "avoescência", por analogia com adolescência. Foi o que bastou para que a Carmen renunciasse a "nonada" e viesse arredondar a proposta da Nísia com "avoessência", "a essência do avô e da avó".Já o colega Antônio Graça, sem arriscar neologismos, me presenteou com a história de um senhor que ele costumava ver na Biblioteca Mário de Andrade, "copiando à mão, diligentemente, em papel almaço pautado, verbetes de enciclopédias". Intrigado, o Antônio quis saber mais - e descobriu que "aquele senhor estava fazendo uma minienciclopédia para a neta".De Curitiba, o cronista, contista e músico Luís Henrique despachou um punhado de criativas bolações, a começar por "vovolidade", "aqueles dengos abobalhados de vovô e da vovó". Embora me caiba a involuntária carapuça, o adjetivo não me ofende; mas eu teria preferido "avoado", na acepção que a Mariza foi catar no léxico do Guimarães Rosa: "Ele usa essa palavra no sentido de ‘alevantado’, ‘elevado’, ‘valorizado’", debulhou a jubilosa recém-avó, das alturas em que ultimamente foi parar. É isso mesmo, digo eu, que de uns meses para cá também venho levitando: se já adorava ser pai, experimento agora as delícias disso que, na falta de nome preciso, tento descrever como paternidade desossada. O risco, estou sabendo, é me afogar no mel.Sugeriu mais o Luís. Depois de incursionar sem êxito pelo idioma polonês, o autor de Nós passaremos em branco recorreu ao inglês e ao francês para criar "grã-paternidade" e "grã-maternidade". Taí, gostei. Como gostei de "tamocidade", que o mesmo Luís construiu a partir de língua de índio brasileiro. "Você sabia que ‘tamoio’ quer dizer avô, ou velho?", perguntou ele. "Foi o Anchieta quem disse." À mesma raiz desceu a Eliana, depois de torcer o nariz para "avoenguice" ("muito antigo", avalia) e para o latinismo "avusitas" ("pedante demais"). Justo "avoenguice", a preferida de outra amiga, a Wanda. A Eliana acabou esbarrando em "Ava reko tamõi", condição de avô em guarani. Mas quem vai entender?, admitiu.Um tanto de gente nas imediações do cronista, a maioria mulheres, tem palpitado sobre a grave questão. Só faltou a Glorinha. Faltou? Você pode achar que eu, no avoamento de que estou acometido, dei de ver e ouvir coisa onde não tem - mas, outro dia, um daqueles arrulhos com que ela se manifesta sobre tudo e todos me soou assim: "Não acha que já é hora de mudar de papo, cara?"Assim seja.

 Ao reclamar, na semana passada, da falta de uma palavra em português para designar a condição de avô, confessei a inveja que sinto dos hispânicos, com seu abuelazgo e sua abuelidad. Pouco importa se não estiverem dicionarizadas. Quem as utiliza está em melhores condições do que nós, que nem informalmente dizemos "avoíce", "avoidade" ou similar.Pois bem, eis que nos últimos dias o feio sentimento da inveja se estendeu também aos usuários do inglês - e com muito mais razão: eles não só dispõem de grandparenthood, soprou minha amiga Mariângela, como esta palavra está no dicionário, no Webster, pelo menos, para significar "the state of being grandparent". Minha inveja passou a incluir também os alemães: o Achim Robert informou que seus compatriotas são ainda mais afortunados que os anglo-saxões, pois em sua língua existem diferentes palavras para a condição de avô e de avó, respectivamente Grossvaterschaft e Grossmutterschaft. Em compensação, saboreei um contentamento mesquinho ao saber pela Aparecida, tradutora de truz, que também na língua russa inexistem vocábulos para designar o estado do ded e da bábuchka.Se você me acompanhou até aqui, já percebeu em que meandros linguísticos vim parar. E não só eu, pois minha reclamação mobilizou um bocado de gente. Lá de Minas, a Maria Regina declarou voto em "avoíce", uma das alternativas que propus na semana passada. "Achei até simpático", disse ela. Do Rio, a Carmen sugeriu "nonada", na tentativa de injetar sentido novo na palavra que abre o Grande Sertão: Veredas e que no dicionário é apresentada como ninharia, insignificância. Ela me explicou que o seu "nonada" é tudo - longe de evocar pequenez, realça a imponência do nonno e da nonna, os avós italianos. O Sergio Augusto não perdeu a oportunidade de pôr sal na conversa: "Que tal chamarmos de ‘nonada’ a mulher que não conseguiu ser avó?"A Nísia, por sua vez, com a experiência de quem já contabiliza três netos e tem um quarto a caminho, trouxe duas contribuições: "avoência", que a seu ver "combina com consciência, prudência e paciência"; e, melhor ainda, "avoescência", por analogia com adolescência. Foi o que bastou para que a Carmen renunciasse a "nonada" e viesse arredondar a proposta da Nísia com "avoessência", "a essência do avô e da avó".Já o colega Antônio Graça, sem arriscar neologismos, me presenteou com a história de um senhor que ele costumava ver na Biblioteca Mário de Andrade, "copiando à mão, diligentemente, em papel almaço pautado, verbetes de enciclopédias". Intrigado, o Antônio quis saber mais - e descobriu que "aquele senhor estava fazendo uma minienciclopédia para a neta".De Curitiba, o cronista, contista e músico Luís Henrique despachou um punhado de criativas bolações, a começar por "vovolidade", "aqueles dengos abobalhados de vovô e da vovó". Embora me caiba a involuntária carapuça, o adjetivo não me ofende; mas eu teria preferido "avoado", na acepção que a Mariza foi catar no léxico do Guimarães Rosa: "Ele usa essa palavra no sentido de ‘alevantado’, ‘elevado’, ‘valorizado’", debulhou a jubilosa recém-avó, das alturas em que ultimamente foi parar. É isso mesmo, digo eu, que de uns meses para cá também venho levitando: se já adorava ser pai, experimento agora as delícias disso que, na falta de nome preciso, tento descrever como paternidade desossada. O risco, estou sabendo, é me afogar no mel.Sugeriu mais o Luís. Depois de incursionar sem êxito pelo idioma polonês, o autor de Nós passaremos em branco recorreu ao inglês e ao francês para criar "grã-paternidade" e "grã-maternidade". Taí, gostei. Como gostei de "tamocidade", que o mesmo Luís construiu a partir de língua de índio brasileiro. "Você sabia que ‘tamoio’ quer dizer avô, ou velho?", perguntou ele. "Foi o Anchieta quem disse." À mesma raiz desceu a Eliana, depois de torcer o nariz para "avoenguice" ("muito antigo", avalia) e para o latinismo "avusitas" ("pedante demais"). Justo "avoenguice", a preferida de outra amiga, a Wanda. A Eliana acabou esbarrando em "Ava reko tamõi", condição de avô em guarani. Mas quem vai entender?, admitiu.Um tanto de gente nas imediações do cronista, a maioria mulheres, tem palpitado sobre a grave questão. Só faltou a Glorinha. Faltou? Você pode achar que eu, no avoamento de que estou acometido, dei de ver e ouvir coisa onde não tem - mas, outro dia, um daqueles arrulhos com que ela se manifesta sobre tudo e todos me soou assim: "Não acha que já é hora de mudar de papo, cara?"Assim seja.

 Ao reclamar, na semana passada, da falta de uma palavra em português para designar a condição de avô, confessei a inveja que sinto dos hispânicos, com seu abuelazgo e sua abuelidad. Pouco importa se não estiverem dicionarizadas. Quem as utiliza está em melhores condições do que nós, que nem informalmente dizemos "avoíce", "avoidade" ou similar.Pois bem, eis que nos últimos dias o feio sentimento da inveja se estendeu também aos usuários do inglês - e com muito mais razão: eles não só dispõem de grandparenthood, soprou minha amiga Mariângela, como esta palavra está no dicionário, no Webster, pelo menos, para significar "the state of being grandparent". Minha inveja passou a incluir também os alemães: o Achim Robert informou que seus compatriotas são ainda mais afortunados que os anglo-saxões, pois em sua língua existem diferentes palavras para a condição de avô e de avó, respectivamente Grossvaterschaft e Grossmutterschaft. Em compensação, saboreei um contentamento mesquinho ao saber pela Aparecida, tradutora de truz, que também na língua russa inexistem vocábulos para designar o estado do ded e da bábuchka.Se você me acompanhou até aqui, já percebeu em que meandros linguísticos vim parar. E não só eu, pois minha reclamação mobilizou um bocado de gente. Lá de Minas, a Maria Regina declarou voto em "avoíce", uma das alternativas que propus na semana passada. "Achei até simpático", disse ela. Do Rio, a Carmen sugeriu "nonada", na tentativa de injetar sentido novo na palavra que abre o Grande Sertão: Veredas e que no dicionário é apresentada como ninharia, insignificância. Ela me explicou que o seu "nonada" é tudo - longe de evocar pequenez, realça a imponência do nonno e da nonna, os avós italianos. O Sergio Augusto não perdeu a oportunidade de pôr sal na conversa: "Que tal chamarmos de ‘nonada’ a mulher que não conseguiu ser avó?"A Nísia, por sua vez, com a experiência de quem já contabiliza três netos e tem um quarto a caminho, trouxe duas contribuições: "avoência", que a seu ver "combina com consciência, prudência e paciência"; e, melhor ainda, "avoescência", por analogia com adolescência. Foi o que bastou para que a Carmen renunciasse a "nonada" e viesse arredondar a proposta da Nísia com "avoessência", "a essência do avô e da avó".Já o colega Antônio Graça, sem arriscar neologismos, me presenteou com a história de um senhor que ele costumava ver na Biblioteca Mário de Andrade, "copiando à mão, diligentemente, em papel almaço pautado, verbetes de enciclopédias". Intrigado, o Antônio quis saber mais - e descobriu que "aquele senhor estava fazendo uma minienciclopédia para a neta".De Curitiba, o cronista, contista e músico Luís Henrique despachou um punhado de criativas bolações, a começar por "vovolidade", "aqueles dengos abobalhados de vovô e da vovó". Embora me caiba a involuntária carapuça, o adjetivo não me ofende; mas eu teria preferido "avoado", na acepção que a Mariza foi catar no léxico do Guimarães Rosa: "Ele usa essa palavra no sentido de ‘alevantado’, ‘elevado’, ‘valorizado’", debulhou a jubilosa recém-avó, das alturas em que ultimamente foi parar. É isso mesmo, digo eu, que de uns meses para cá também venho levitando: se já adorava ser pai, experimento agora as delícias disso que, na falta de nome preciso, tento descrever como paternidade desossada. O risco, estou sabendo, é me afogar no mel.Sugeriu mais o Luís. Depois de incursionar sem êxito pelo idioma polonês, o autor de Nós passaremos em branco recorreu ao inglês e ao francês para criar "grã-paternidade" e "grã-maternidade". Taí, gostei. Como gostei de "tamocidade", que o mesmo Luís construiu a partir de língua de índio brasileiro. "Você sabia que ‘tamoio’ quer dizer avô, ou velho?", perguntou ele. "Foi o Anchieta quem disse." À mesma raiz desceu a Eliana, depois de torcer o nariz para "avoenguice" ("muito antigo", avalia) e para o latinismo "avusitas" ("pedante demais"). Justo "avoenguice", a preferida de outra amiga, a Wanda. A Eliana acabou esbarrando em "Ava reko tamõi", condição de avô em guarani. Mas quem vai entender?, admitiu.Um tanto de gente nas imediações do cronista, a maioria mulheres, tem palpitado sobre a grave questão. Só faltou a Glorinha. Faltou? Você pode achar que eu, no avoamento de que estou acometido, dei de ver e ouvir coisa onde não tem - mas, outro dia, um daqueles arrulhos com que ela se manifesta sobre tudo e todos me soou assim: "Não acha que já é hora de mudar de papo, cara?"Assim seja.

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