Para ser ‘mais justa’, Justiça brasileira deve ser mais diversa; leia artigo


Promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia, Lívia Sant’Anna Vaz afirma que sistema evidencia racismo institucional no País pela ausência de diversidade étnica

Por Lívia Sant’Anna Vaz

É certo que onde faltar a democracia não há Justiça que mereça o nome” - Sepúlveda Pertence

A Justiça brasileira é justa? Se tem razão o saudoso ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Sepúlveda Pertence, a resposta é negativa. No Brasil, o sistema de Justiça talvez seja um dos espaços de poder em que, histórica e persistentemente, mais se evidencia o racismo institucional, sobretudo quando se leva em consideração a ausência de diversidade étnico-racial em sua composição. Ou, dito de outro modo, nossa Justiça é antidemocrática e, por isso, quiçá nem mereça o próprio nome.

Dados recentes demonstram que pessoas negras – que somam 56% da população brasileira – são apenas 12,8% da magistratura (Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário, CNJ, 2021) e 15,8% dos membros do Ministério Público (Perfil Étnico-racial do MP Brasileiro, CNMP, 2023). Quando se trata de mulheres negras – maior segmento social do País (28%) –, a realidade é ainda mais vergonhosa: em ambos os órgãos, elas não chegam sequer a 6%.

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A promotora do MP da Bahia Livia Sant'Anna Vaz Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

O Poder Judiciário tem funcionado como uma espécie de capitania hereditária: um território monocromático e eminentemente masculino, em grande medida transmitido de geração a geração. Com efeito, pelo menos um quinto das/os magistradas/os brasileiras/os têm ascendentes na magistratura e 51% têm familiares em outras carreiras do Direito (Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, CNJ, 2018).

Não parece que essa hegemonia branca, associada à manutenção de cargos jurídicos nas mãos das mesmas famílias, seja mera coincidência ou fruto de uma concepção justa de mérito. Nesse cenário, beira a uma conveniência (ou conivência) hipócrita – ou, na melhor das hipóteses, a uma confortável ignorância – defender de maneira acrítica a meritocracia à brasileira. As tradicionais galerias de Presidentes de Tribunais ou da OAB, por exemplo, são o retrato encarnado do nosso sistema de Justiça. Quase todas expõem exclusivamente fotos de homens brancos.

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Afinal, o mérito no Brasil tem cor e gênero predeterminados (ou, melhor, predestinados)?

Em meio ao debate sobre a democratização dos espaços de poder, têm sido lançados argumentos que tentam refutar a necessária diversidade, sob o fundamento de que raça e gênero não importam, mas apenas a competência. Se raça e gênero são irrelevantes, por que o mesmo grupo hegemônico se mantém, secularmente, no topo do(s) poder(es)? Só homens brancos merecem? Somente eles são competentes?

Quanto mais elevada a instância judicial, mais homens brancos, provenientes da elite do Sul/Sudeste do País e mais sobrenomes de “difícil pronúncia”. A ausência de diversidade – de gênero, etnia, raça, classe, regional, etc. – é uma tônica nos órgãos jurídicos. Em outras palavras, a nossa Justiça não tem a cara do povo, não conhece (tampouco quer conhecer) o povo e dele se mantém solenemente apartada.

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O que pejorativamente denominam de pauta identitária é, na verdade e simplesmente, a própria essência democrática. Há apenas um arremedo de Democracia quando determinados grupos sociais são tolhidos do direito de participar ativamente de espaços decisórios.

Para que a Justiça seja mais justa é, antes, imprescindível que ela seja democratizada. Somente uma Justiça Pluriversal, dotada de pluralidade de perspectivas, será capaz de promover direitos para todas as pessoas, reparando desigualdades, de um lado; de outro, afastando privilégios.

Onde não há diversidade, não há Democracia! E é pela Democracia, medida da justeza da Justiça, que esta se torna digna do seu nome. Que tenhamos, então, a “audácia inovadora” – tão presente na nossa “Constituição coragem” (1) – de democratizar a Justiça dos homens (brancos).

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(1) Trechos extraídos do discurso de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, que completou 35 anos.

* Mulher negra, jurista, escritora e promotora de Justiça do MP-BA, nomeada uma das 100 Pessoas de Descendência Africana mais Influentes do Mundo (Mipad). O reconhecimento está inserido na Década Internacional das Nações Unidas para Afrodescendentes, que vai até 2024

É certo que onde faltar a democracia não há Justiça que mereça o nome” - Sepúlveda Pertence

A Justiça brasileira é justa? Se tem razão o saudoso ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Sepúlveda Pertence, a resposta é negativa. No Brasil, o sistema de Justiça talvez seja um dos espaços de poder em que, histórica e persistentemente, mais se evidencia o racismo institucional, sobretudo quando se leva em consideração a ausência de diversidade étnico-racial em sua composição. Ou, dito de outro modo, nossa Justiça é antidemocrática e, por isso, quiçá nem mereça o próprio nome.

Dados recentes demonstram que pessoas negras – que somam 56% da população brasileira – são apenas 12,8% da magistratura (Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário, CNJ, 2021) e 15,8% dos membros do Ministério Público (Perfil Étnico-racial do MP Brasileiro, CNMP, 2023). Quando se trata de mulheres negras – maior segmento social do País (28%) –, a realidade é ainda mais vergonhosa: em ambos os órgãos, elas não chegam sequer a 6%.

A promotora do MP da Bahia Livia Sant'Anna Vaz Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

O Poder Judiciário tem funcionado como uma espécie de capitania hereditária: um território monocromático e eminentemente masculino, em grande medida transmitido de geração a geração. Com efeito, pelo menos um quinto das/os magistradas/os brasileiras/os têm ascendentes na magistratura e 51% têm familiares em outras carreiras do Direito (Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, CNJ, 2018).

Não parece que essa hegemonia branca, associada à manutenção de cargos jurídicos nas mãos das mesmas famílias, seja mera coincidência ou fruto de uma concepção justa de mérito. Nesse cenário, beira a uma conveniência (ou conivência) hipócrita – ou, na melhor das hipóteses, a uma confortável ignorância – defender de maneira acrítica a meritocracia à brasileira. As tradicionais galerias de Presidentes de Tribunais ou da OAB, por exemplo, são o retrato encarnado do nosso sistema de Justiça. Quase todas expõem exclusivamente fotos de homens brancos.

Afinal, o mérito no Brasil tem cor e gênero predeterminados (ou, melhor, predestinados)?

Em meio ao debate sobre a democratização dos espaços de poder, têm sido lançados argumentos que tentam refutar a necessária diversidade, sob o fundamento de que raça e gênero não importam, mas apenas a competência. Se raça e gênero são irrelevantes, por que o mesmo grupo hegemônico se mantém, secularmente, no topo do(s) poder(es)? Só homens brancos merecem? Somente eles são competentes?

Quanto mais elevada a instância judicial, mais homens brancos, provenientes da elite do Sul/Sudeste do País e mais sobrenomes de “difícil pronúncia”. A ausência de diversidade – de gênero, etnia, raça, classe, regional, etc. – é uma tônica nos órgãos jurídicos. Em outras palavras, a nossa Justiça não tem a cara do povo, não conhece (tampouco quer conhecer) o povo e dele se mantém solenemente apartada.

O que pejorativamente denominam de pauta identitária é, na verdade e simplesmente, a própria essência democrática. Há apenas um arremedo de Democracia quando determinados grupos sociais são tolhidos do direito de participar ativamente de espaços decisórios.

Para que a Justiça seja mais justa é, antes, imprescindível que ela seja democratizada. Somente uma Justiça Pluriversal, dotada de pluralidade de perspectivas, será capaz de promover direitos para todas as pessoas, reparando desigualdades, de um lado; de outro, afastando privilégios.

Onde não há diversidade, não há Democracia! E é pela Democracia, medida da justeza da Justiça, que esta se torna digna do seu nome. Que tenhamos, então, a “audácia inovadora” – tão presente na nossa “Constituição coragem” (1) – de democratizar a Justiça dos homens (brancos).

(1) Trechos extraídos do discurso de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, que completou 35 anos.

* Mulher negra, jurista, escritora e promotora de Justiça do MP-BA, nomeada uma das 100 Pessoas de Descendência Africana mais Influentes do Mundo (Mipad). O reconhecimento está inserido na Década Internacional das Nações Unidas para Afrodescendentes, que vai até 2024

É certo que onde faltar a democracia não há Justiça que mereça o nome” - Sepúlveda Pertence

A Justiça brasileira é justa? Se tem razão o saudoso ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Sepúlveda Pertence, a resposta é negativa. No Brasil, o sistema de Justiça talvez seja um dos espaços de poder em que, histórica e persistentemente, mais se evidencia o racismo institucional, sobretudo quando se leva em consideração a ausência de diversidade étnico-racial em sua composição. Ou, dito de outro modo, nossa Justiça é antidemocrática e, por isso, quiçá nem mereça o próprio nome.

Dados recentes demonstram que pessoas negras – que somam 56% da população brasileira – são apenas 12,8% da magistratura (Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário, CNJ, 2021) e 15,8% dos membros do Ministério Público (Perfil Étnico-racial do MP Brasileiro, CNMP, 2023). Quando se trata de mulheres negras – maior segmento social do País (28%) –, a realidade é ainda mais vergonhosa: em ambos os órgãos, elas não chegam sequer a 6%.

A promotora do MP da Bahia Livia Sant'Anna Vaz Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

O Poder Judiciário tem funcionado como uma espécie de capitania hereditária: um território monocromático e eminentemente masculino, em grande medida transmitido de geração a geração. Com efeito, pelo menos um quinto das/os magistradas/os brasileiras/os têm ascendentes na magistratura e 51% têm familiares em outras carreiras do Direito (Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, CNJ, 2018).

Não parece que essa hegemonia branca, associada à manutenção de cargos jurídicos nas mãos das mesmas famílias, seja mera coincidência ou fruto de uma concepção justa de mérito. Nesse cenário, beira a uma conveniência (ou conivência) hipócrita – ou, na melhor das hipóteses, a uma confortável ignorância – defender de maneira acrítica a meritocracia à brasileira. As tradicionais galerias de Presidentes de Tribunais ou da OAB, por exemplo, são o retrato encarnado do nosso sistema de Justiça. Quase todas expõem exclusivamente fotos de homens brancos.

Afinal, o mérito no Brasil tem cor e gênero predeterminados (ou, melhor, predestinados)?

Em meio ao debate sobre a democratização dos espaços de poder, têm sido lançados argumentos que tentam refutar a necessária diversidade, sob o fundamento de que raça e gênero não importam, mas apenas a competência. Se raça e gênero são irrelevantes, por que o mesmo grupo hegemônico se mantém, secularmente, no topo do(s) poder(es)? Só homens brancos merecem? Somente eles são competentes?

Quanto mais elevada a instância judicial, mais homens brancos, provenientes da elite do Sul/Sudeste do País e mais sobrenomes de “difícil pronúncia”. A ausência de diversidade – de gênero, etnia, raça, classe, regional, etc. – é uma tônica nos órgãos jurídicos. Em outras palavras, a nossa Justiça não tem a cara do povo, não conhece (tampouco quer conhecer) o povo e dele se mantém solenemente apartada.

O que pejorativamente denominam de pauta identitária é, na verdade e simplesmente, a própria essência democrática. Há apenas um arremedo de Democracia quando determinados grupos sociais são tolhidos do direito de participar ativamente de espaços decisórios.

Para que a Justiça seja mais justa é, antes, imprescindível que ela seja democratizada. Somente uma Justiça Pluriversal, dotada de pluralidade de perspectivas, será capaz de promover direitos para todas as pessoas, reparando desigualdades, de um lado; de outro, afastando privilégios.

Onde não há diversidade, não há Democracia! E é pela Democracia, medida da justeza da Justiça, que esta se torna digna do seu nome. Que tenhamos, então, a “audácia inovadora” – tão presente na nossa “Constituição coragem” (1) – de democratizar a Justiça dos homens (brancos).

(1) Trechos extraídos do discurso de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, que completou 35 anos.

* Mulher negra, jurista, escritora e promotora de Justiça do MP-BA, nomeada uma das 100 Pessoas de Descendência Africana mais Influentes do Mundo (Mipad). O reconhecimento está inserido na Década Internacional das Nações Unidas para Afrodescendentes, que vai até 2024

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