RIO - A Polícia Civil, o Ministério Público do Rio (MPRJ) e própria Polícia Militar investigam uma operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) realizada no domingo, 21, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, depois de um policial baleado por traficantes morrer. Nesta segunda-feira, um dia após a incursão dos agentes, oito corpos foram retirados de um manguezal por moradores da favela. Até o início da noite, sete das oito vítimas já haviam sido identificadas pelo Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo. Segundo a polícia, cinco tinham antecedentes ou anotações criminais. Um dos mortos sem antecedentes foi encontrado "com roupa camuflada semelhante à do restante do grupo", afirmou a corporação, por nota.
A operação do Bope aconteceu após o sargento Leandro Rumbelsperger da Silva ter sido atacado no sábado durante um patrulhamento na região. Baleado, ele não resistiu. No domingo, o Bope foi informado que um dos suspeitos do ataque estava ferido no interior da favela e realizou a operação no local. A ação foi informada ao MPRJ.
O resgate dos oito corpos do manguezal foi feita pelos próprios moradores da favela no início da manhã. Parentes das vítimas, segundo relatos da comunidade, entraram na lama para recolher os cadáveres. Bombeiros e policiais militares não foram vistos no local nas primeiras horas do dia, enquanto policiais civis chegaram apenas depois das 10h. O Salgueiro, comunidade pobre em uma cidade-dormitório da Região Metropolitana do Rio, é considerado muito perigoso, devido à ação de traficantes. Moradores afirmaram que os corpos estavam desfigurados, o que, para eles, seria indício de tortura. A PM sustenta que houve confronto.
“Meu irmão foi barbarizado, está com o rosto irreconhecível”, contou a irmã de um dos mortos, que deu entrevista no Instituto Médico Legal de São Gonçalo, que preferiu não se identificar. “A gente reconheceu pelo corpo, pela tatuagem com o nome da minha mãe. Ele teve o rosto desfigurado com golpes de faca, outros tiveram os dentes arrancados, os olhos furados e arrancados, dedo decepado. Não foi troca de tiro. Eles pegaram as pessoas de surpresa, mas não sabemos onde.”
O marido dela foi responsável por identificar o corpo do cunhado, ainda antes da remoção para o IML. “Eu fui lá no mangue e vi, porque ela não tem estrutura para ver. Fui lá, puxei o pano de um por um e vi com meus próprios olhos. Vi uma coisa desumana. Teve menino sem olho, outro sem dedo. Esse pessoal foi torturado antes de morrer. Meu parente era envolvido, mas a gente não imaginava encontrar naquele estado.”
A irmã de outro homem deu depoimento semelhante. “Torturaram meu irmão, furaram o olho do meu irmão, quebraram o braço dele”, contou. “Meu irmão era magrinho, não dava um sopro em ninguém, ele não aguentava. Quem foi pra pegar parece que foi pra pegar rato. Meu irmão tinha problema de pulmão, tinha pino nos pés, depois de sofrer um acidente. Não iria correr. O garoto não era bandido, não se misturava. Para que torturar ele? Ele foi comprar uma cerveja, que ele gostava de beber. Eu não quis ver, não tive condições de ver meu irmão. Muita crueldade. Tem gente mutilada, tem adolescente morto”. “Arrancaram os dedos do adolescente, para que mutilar? Isso é tortura, é desumano.
Segundo ela, a morte do rapaz “acabou” com sua família. “Ele não tinha envolvimento com nada, fazia bico, pegava serviço de ajudante de pedreiro”, afirmou. “Favelado é gente, a gente não mora na favela porque quer, mas porque tem necessidade.”
A PM afirmou que, por volta das 15h de domingo, uma equipe do Samu foi acionada para auxiliar um homem ferido na favela, e criminosos armados obrigaram que ele fosse retirado do local. A ação do Bope aconteceu próximo ao manguezal. Moradores relataram forte tiroteio.
“As equipes foram atacadas nas proximidades de uma área de mangue com mata, ocorrendo um intenso confronto”, afirmou a Polícia Militar, em nota oficial. “Na ação foram apreendidos duas pistolas, 14 munições calibre 9 mm, 56 munições de fuzil calibre 762, cinco carregadores (02 para fuzil e 03 para pistola), um uniforme camuflado, 813 tabletes de maconha, 3.734 sacolés de pó branco e 3.760 sacolés de material assemelhado ao crack. A ocorrência foi registrada na 72.ª DP.”
A promotoria informou por nota que a 2.ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada do Núcleo Niterói e São Gonçaloinstaurou um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) sobre a ação policial na favela. A Polícia Civil afirmou que as “investigações estão em andamento pela Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí (DHNSG)”. A PM anunciou inquérito policial-militar.
Segundo a Polícia Civil, agentes da Delegacia de Homicídios fizeram nesta segunda perícia e realizaram as primeiras diligências na região. Buscaram testemunhas e outras pistas para esclarecer a dinâmica das mortes.
Rio acumula chacinas
No fim da tarde de da segunda, 22, a Human Rights Watch divulgou nota questionando a ação dos policiais militares. "Uma vez mais, trata-se de uma operação mal explicada e cheia de pontos de interrogação", diz o texto, citando declarações do porta-voz da PM sobre a existência de “vários confrontos” com “inúmeros feridos”. "A Polícia Militar deveria, portanto, esclarecer se acionou o serviço de socorro para atender a todos os feridos e porque não preservou a evidência nos lugares dos tiroteios, especialmente onde houve mortes", defende a organização.
Os corpos encontrados nesta segunda-feira aumentam ainda mais o número de mortes em série no Rio este ano. Dados da Rede de Observatórios da Segurança apontam que, até o mês de outubro, o Estado registrou 38 chacinas, quatro a mais do que 2020. A Rede informou ainda que 27 delas foram cometidas por policiais, com 128 mortes registradas.
Em maio, 28 pessoas foram mortas - sendo uma delas um policial civil - após ação da polícia na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio. A ação ainda é investigada e teve fortes indícios de execução. Até o momento, dois agentes que participaram da ação se tornaram reús.
A Anistia Internacional Brasil, organização não-governamental de defesa dos direitos humanos em âmbito mundial, informou na noite desta segunda-feira, 22, que pediu ao governo do Estado do Rio de Janeiro, à secretaria estadual de Polícia Militar e ao Ministério Público do Estado do Rio (MP-RJ) informações detalhadas sobre a operação policial. “É imperativo que a sociedade e os familiares das vítimas saibam a motivação legal da ação, quem a autorizou e se o MP-RJ foi devidamente informado com a antecedência que preconiza a determinação do Supremo Tribunal Federal”, afirma nota da Anistia Internacional. “O Ministério Público, que tem a atribuição constitucional de exercer o controle externo da atividade policial, deve investigar com rigor, urgência e imparcialidade as circunstâncias que levaram às mortes das 8 pessoas cujos corpos foram encontrados, supostamente com sinais de tortura, por moradores em um mangue na região da favela das Palmeiras, na manhã desta segunda-feira (22). Relatos de moradores sugerem que esse número pode ser ainda maior”, segue a nota.
“O Complexo do Salgueiro, assim como a maior parte das comunidades periféricas no Estado do Rio de Janeiro, é alvo sistemático de violência policial e graves violações de direitos humanos. Há um ano e meio, João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, foi assassinado dentro de casa, também no Complexo do Salgueiro, baleado com um tiro de fuzil. As investigações sobre seu assassinato permanecem sem solução. Há apenas seis meses ocorreu a chacina do Jacarezinho, que vitimou 28 pessoas. Também neste caso as devidas responsabilizações não foram concluídas”, continua a Anistia Internacional. “É alarmante que familiares de vítimas da violência policial nas comunidades do Rio de Janeiro chorem constantemente pela perda de seus entes queridos. Operações policiais que terminam em mortes cujas circunstâncias indicam uso excessivo e desproporcional da força e conduta ilegal dos agentes de segurança pública são inaceitáveis e precisam ser esclarecidas à população e aos familiares das vítimas”, conclui a nota.