RIO - A Portela vai celebrar seu centenário neste ano na Sapucaí exaltando a sua história de maior campeã do carnaval carioca, com 22 títulos e sucessivas linhagens de sambistas célebres e enredos inesquecíveis. A escola será a segunda a entrar na avenida entre 23h e 23h10 desta segunda-feira, 20, segundo dia de desfiles, depois da Paraíso do Tuiuti, cercada de expectativa da sua torcida apaixonada.
Em busca do 23,º título, a Azul-e-Branca vai “convocar” seus grandes nomes do passado para apresentar seu enredo. Fundada, em 11 de abril de 1923 com o nome de Conjunto de Oswaldo Cruz, a Portela se tornou oficialmente escola de samba em 1934. Será a primeira agremiação a comemorar seu centenário no Rio.
A escola vai contar sua história a partir de cinco ícones, cada um “responsável” por duas décadas da sua trajetória. O primeiro será Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela (1901-1949), que fundou a Portela com Antônio Caetano e Antônio Rufino dos Reis.
Os 20 primeiros anos da escola serão narrados sob a ótica dele, embora Paulo tenha vivenciado mesmo só os 18 primeiros, pois rompeu com a Portela em 1941. A segunda parte será narrada sob o ponto de vista de Dodô da Portela (1920-2015), porta-bandeira entre 1935 (quando a escola conquistou seu primeiro título) e 1966. A terceira caberá a Natalino José do Nascimento, o Natal da Portela (1905-1975), que tinha 17 anos quando a agremiação foi fundada em frente à casa em que morava e com apoio de seu pai, José do Nascimento, conhecido como Napoleão.
Natal trabalhou na Central do Brasil de 1919 a 1925, quando sofreu um acidente, perdeu o braço direito e foi demitido. Então passou a fazer bicos, até se tornar apontador do jogo do bicho. Seu bom desempenho o tornou gerente e depois dono da banca do jogo. Passou a investir parte do dinheiro que ganhava na escola de samba do coração. Assim se tornou o primeiro bicheiro a se tornar patrono de uma escola de samba . Muitos outros seguiriam o mesmo caminho nas décadas seguintes.
A quarta parte será contada sob a ótica de David Correa (1937-2020), compositor e intérprete de sambas-enredo da Portela e de outras escolas. Foi ele o autor de clássicos como “Macunaíma, Herói de Nossa Gente” (Portela, 1975), “Das Maravilhas do Mar, Fez-se o Esplendor de Uma Noite” (Portela, 1981), “Skindô, Skindô” (Salgueiro, 1984) e “Atrás da Verde e Rosa Só não Vai Quem Já Morreu” (Mangueira, 1994).
As duas últimas décadas caberão a Monarco (1933-2021), cantor, compositor, integrante da ala dos compositores da Portela a partir de 1950 e presidente de honra da escola de 2013 a 2022. O desfile vai reunir portelenses famosos, como Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho e Teresa Cristina, além de ex-rainhas de bateria como Luiza Brunet, Adriane Galisteu e Sheron Menezzes.
Desfiles
Antes da Portela, a Paraíso do Tuiuti vai abrir a segunda noite de desfiles exaltando o estado do Pará a partir da história da chegada dos búfalos à ilha de Marajó. É isso mesmo: no século XIX, um navio saiu da Índia rumo à Guiana Francesa levando especiarias e búfalos, mas naufragou na costa brasileira, e só os animais sobreviveram. Eles chegaram à ilha e se tornaram um símbolo dela, servindo como atração turística, montaria para a polícia e fornecedores de leite, por exemplo. Esse episódio dará início a um passeio pelas tradições paraenses.
Em seguida, a Unidos de Vila Isabel vai discorrer sobre festas religiosas pelo mundo. Eclético, o passeio começa pela Grécia antiga, onde se cultuava Dioniso (Baco, para os romanos), o deus do vinho e da alegria. Segue pela festa de Saint Patrick, na Irlanda, e o Holi Festival, a festa das cores que ocorre anualmente para comemorar a chegada da primavera na Índia e em outros países. No Brasil, serão representadas as festas juninas, os cultos a Iemanjá e São Jorge, a lavagem da escadaria da igreja de Nosso Senhor do Bonfim e o Círio de Nazaré, entre outras. E tudo vai terminar em carnaval – o desfile vai retratar a folia em Veneza e no Rio.
A Imperatriz Leopoldinense vai desfilar depois, com um enredo que exalta a cultura sertaneja a partir do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro Lampião (1898-1938), e da literatura de cordel. Nesse enredo fantasioso, após a morte, Lampião tenta voluntariamente entrar no inferno, mas é barrado por Satanás, que teme receber alguém mais cruel do que ele próprio. Então o bandoleiro procura o céu, mas obviamente também é impedido de entrar. Acaba indo com a mulher, Maria Bonita, e todo seu bando desfilar na Imperatriz.
A penúltima agremiação a se apresentar na segunda noite de desfiles será a Beija-Flor, que vai fazer uma provocação. A escola vai sugerir que a Independência do Brasil passe a ser comemorada em 2 de julho em vez de 7 de setembro. Isso porque na primeira data, há 200 anos, na Bahia, as tropas fiéis ao governo colonialista português foram definitivamente derrotadas e expulsas pela população, que defendia a libertação da região. Atualmente a data é feriado no Estado da Bahia.
A escola de Nilópolis (Baixada Fluminense) vai exaltar a participação de negros, índios e mulheres nesse movimento de independência. E não vai esquecer as mazelas que caracterizavam o Brasil à época e que ainda perduram, como a perseguição aos povos indígenas.
A escola que vai encerrar a segunda noite de desfiles será a Unidos do Viradouro, de Niterói (Região Metropolitana do Rio). A agremiação vai homenagear Rosa Maria Egipcíaca (1719-1771), africana que aos 6 anos foi escravizada e trazida ao Brasil. Inicialmente obrigada a fazer serviços domésticos, depois ela foi vendida a donos de minas de ouro, que passaram a explorá-la sexualmente. Como tinha sonhos e visões que se concretizavam, passou a ser considerada bruxa pela Igreja Católica, embora cultuada pelo povo. Durante a Inquisição, foi presa em um convento no Rio, onde aprendeu a ler e escreveu um livro autobiográfico. Foi o primeiro livro escrito por uma mulher negra no Brasil. Depois de criar um convento para meninas negras em situação de rua, acabou novamente detida e levada para Portugal, onde morreu.
A Viradouro vai realizar na avenida uma das únicas previsões de Rosa que não se concretizaram: ela sonhou que o Rio seria devastado por uma inundação, que “lavaria” os pecados de seus moradores. Seu convento então se transformaria numa arca, e as águas trariam outra arca, onde estaria Dom Sebastião, rei de Portugal morto na batalha de Alcácer-Quibir, e cujo corpo jamais foi encontrado. Rosa se casaria com ele e se tornaria rainha do novo Império Brasileiro, mais justo e preocupado com os excluídos.