Quantos presos voltam a cometer crimes no Brasil? Entenda fatores que favorecem a reincidência


Em torno de 1/3 dos egressos das cadeias volta após novos crimes; diante da alta de violência nas ruas, Congresso discute o fim de benefícios a detentos, como a saidinha temporária

Por Marcio Dolzan
Atualização:

País com a terceira maior população carcerária do mundo (quase 827 mil presos), o Brasil registra também alto índice de egressos de penitenciárias voltando ao sistema prisional por reincidência de crimes. Não há números oficiais, mas estudos mostram que cerca de 1/3 dos que cumpre pena acaba preso novamente.

A precariedade do sistema carcerário, condições socioeconômicas adversas e a ausência de políticas públicas voltadas aos egressos ajudam a explicar esse cenário. Por outro lado, há críticas a benefícios previstos pela legislação, como as saídas temporárias das cadeias.

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Episódios de violência nas ruas que envolvem ex-presidiários assustam a população e fazem gestores e legisladores cobrarem endurecimento das leis.

  • Levantamento do Instituto Igarapé com base em 111 estudos empíricos mostra que a reincidência criminal no Brasil chega a 32%. O relatório, de 2022, considera dados de quatro décadas, publicados em pesquisas de diferentes níveis.
  • Outro estudo, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostra números um pouco mais altos: a reincidência atinge 37,6% para novo cumprimento de pena em até cinco anos, e alcança 42,5% se for considerada qualquer entrada no sistema prisional (quando há prisão, mas ainda sem nova sentença, tecnicamente a volta ainda não é considerada reincidência).
Entre as causas da reincidência, dizem especialistas, estão a precariedade no sistema carcerário e problemas na legislação Foto: Epitácio Pessoa/Estadão
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Em geral, os números são fornecidos só por alguns Estados e não há uniformidade. A pesquisa do Depen, por exemplo, apesar da base robusta de dados, usa informações de 13 unidades da federação - e não inclui algumas das maiores, como Rio de Janeiro e Minas Gerais. Na avaliação do Igarapé, a ausência do banco de dados completo contribui para a reincidência.

“Sistematizar informações é crucial para a formulação eficaz de políticas públicas, dando base sólida e abrangente para implementar estratégias de reintegração social e redução da reincidência”, diz Melina Risso, diretora de pesquisa do instituto.

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Quais são as causas da reincidência criminal no Brasil?

Especialistas apontam diferentes motivos, entre eles problemas estruturais dos presídios, de legislação e a própria ineficiência do Estado na reinserção social.

“As causas são múltiplas, mas é evidente a deficiência do Estado em prover oportunidades a quem por alguma razão entrou nesse universo”, afirma o delegado Fernando Veloso, ex-secretário de Administração Penitenciária no Estado.

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“Uma das primeiras questões é que o preso é identificado com a facção que atua naquele território - e há mais de 70 ou 80 facções no País”, diz. Segundo ele, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, o preso é logo “matriculado” na facção, sem necessariamente ter elo com o crime organizado.

Isso eleva o risco de que ele se envolva em outros delitos no futuro. Além disso, o prisão pode funcionar como uma “escola” do crime, onde são compartilhadas estratégias com colegas de cela e é criada uma rede de contatos que pode ser retomada no futuro.

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“Dentro da unidade prisional, o Estado não tem o controle. Quem tem é o próprio preso. O que o Estado consegue fazer é dizer que não pode sair. Só isso”, acrescenta Veloso.

Muitas vezes nem isso é possível. Nesta semana, houve pela primeira vez uma fuga de um presídio federal: dois detentos, que têm ligação com o Comando Vermelho, escaparam de unidade de segurança máxima em Mossoró (RN).

Ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos Carneiro cita o sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989, para ilustrar como o próprio sistema prisional é muitas vezes indutor de novos crimes.

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“A maioria dos presos tem baixa escolaridade e baixa condição econômica, nada a perder. Quando prenderam a quadrilha (envolvida no sequestro de Diniz), formada por gente de bom nível social e acadêmico, puseram no Carandiru. O que eles fizeram? Uma cartilha de como fazer sequestros”, exemplifica.

O estudo do Depen mostra que os casos de reincidência frequentemente estão ligados aos mesmos crimes que levaram à primeira pena. Delitos contra o patrimônio (roubos e furtos), em geral, se repetem. Apesar da tendência, também há registro de crimes novos: 3% dos presos por drogas, por exemplo, voltam à cadeia após casos de homicídio.

“Se as condições de vida – pessoais, relacionais, econômicas e sociais – do indivíduo preso não mudarem, a chance de esse tipo de conduta voltar a acontecer é relativamente grande”, diz André Vilela Komatsu, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. O próprio encarceramento, destaca, reduz as possibilidades de trabalho pós-prisão.

A pesquisa do Igarapé mostra que uma rede familiar fraca, baixa conexão com a escola, trabalho precoce e histórico de delitos na adolescência antes da primeira prisão influenciam a reincidência.

Durante o cumprimento da pena, a violência institucional e a convivência com bandidos contumazes aumentam ainda mais o risco. Já depois da soltura, a falta de apoio da família, a ausência de políticas públicas para egressos e o abuso de drogas contribuem.

Polícia prende e Justiça solta?

Para a população e parte dos agentes de segurança, uma crítica frequente é de que a polícia prende nas ruas, mas a Justiça solta. Para Thiago Bottino, professor de Direito da FGV Rio, essa ideia “é verdadeira e falsa ao mesmo tempo”.

“O policial que faz a prisão, principalmente em flagrante, não é formado em Direito. E o delegado, embora tenha formação jurídica, tem possibilidade de análise jurídica mais limitada da prisão”, afirma.

Há análises judiciais equivocadas, mas em grande parte dos casos, dizem os especialistas, a Justiça solta não por preferência individual do magistrado, mas segue o que a lei prevê. Lacunas na investigação da polícia ou do Ministério Público também podem ser um problema, por insuficiência de provas que sustentem a condenação.

“Muitas vezes a população interpreta a prisão preventiva feita pela polícia como prova de culpa”, afirma Bottino. “Na verdade, a prova é o que acontece durante o processo, quando são ouvidas outras pessoas, testemunhas, o próprio acusado, o investigado”, acrescenta.

“Muitas vezes a impressão de que a soltura é irregular, indevida ou socialmente ruim, deriva do desconhecimento dos conceitos jurídicos”, completa o professor.

Saidinha favorece reincidência?

E a legislação deve mudar para diminuir a reincidência? A Lei de Execução Penal prevê benefícios para presos que apresentarem bom comportamento. Há, porém, críticas à legislação. Um dos benefícios mais polêmicos é a “saidinha”, que permite a saída temporária dos detentos em datas comemorativas.

Um projeto de lei no Senado tenta restringir esse benefício. O relator do texto, aprovado na Câmara em 2023, foi o então deputado Guilherme Derrite (PL), hoje secretário da Segurança Pública em São Paulo. Para ele, a saidinha está por trás da reincidência.

“A gente não tem dificuldade de prender quadrilhas, criminosos. A gente tem dificuldade com a reincidência criminal”, afirmou Derrite, em entrevista coletiva em dezembro. “É normal um país prender 14 vezes o mesmo indivíduo pelo mesmo crime grave? É normal prender pela 30ª vez um indivíduo com fuzil?”

Um dos casos que reacenderam o debate sobre a saidinha foi a morte de um sargento da Polícia Militar, baleado em Belo Horizonte durante perseguição a criminosos. O suspeito era um detento que obteve o direito da saída temporária e estava no regime semiaberto.

Para o promotor Alexandre Daruge, do Ministério Público de São Paulo, a saidinha não precisa ser extinta, mas passar por uma restrição.

“O espirito atual revela necessidade de revisão do benefício. É chegada a hora de equalizar um pouco isso, frear um pouco as saídas em bloco, prezando pela segurança pública”, diz Daruge, que participou do vodcast Dois Pontos, do Estadão.

“Quando fomenta um discurso muito punitivista, olha só para o aspecto de vingança. E quando pensa muito na ressocialização sem verificar que aumenta o risco social dentro da execução penal, deixa de garantir que o sistema funcione a contento”, completa o promotor.

A progressão de regime para quem cumpre pena no Brasil também consta na legislação. Ela prevê que o cumprimento da prisão será executado de forma progressiva a partir de transcorrido 1/6 dela, desde que o apenado tenha bom comportamento. Crimes hediondos têm regras mais rígidas.

Para muitos, a medida é vista como outro facilitador da reincidência. Assim como acontece muitas vezes nas “saidinhas”, os casos em que os presos progridem para o semiaberto e não retornam para a unidade prisional são frequentemente citados como exemplos. Em São Paulo, em média 5% daqueles que saem temporariamente não retornam.

No Congresso, há ao menos três projetos que propõe aumentar restrições à progressão de regime. Um deles impede a progressão de regime para condenados por estupro ou estupro de vulnerável; outro prevê que condenados por homicídio de autoridade ou integrante das forças de segurança precisarão cumprir no mínimo 80% da pena para pedir a progressão de regime.

Um terceiro defende monitoramento eletrônico obrigatório para todos os presos que passam para os regimes aberto ou semiaberto. Essa proposta, porém, esbarra em limitações de estrutura, como a disponibilidade de tornozeleiras eletrônicas para todos os detentos nessa condição.

O juiz Luís Geraldo Lanfredi rebate as críticas. “Ela (a progressão de pena) tem por base avaliações objetivas e subjetivas, estudos que importam a singularização da vida do condenado, instrumentos que, se bem empregados, trazem bons prognósticos que evitam ou diminuem a chance de reincidência criminal”, diz ele, que coordena o setor de fiscalização do sistema carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O que fazer para diminuir a reincidência criminal

Fernando Veloso, que chefiou o sistema prisional fluminense, defende foco em evitar que o preso pela primeira vez siga no mundo do crime. “É preciso uma divisão entre crimes violentos e não violentos. Todos os benefícios devem ser mantidos, mas para os que não praticaram violência contra a pessoa”, diz. “O sujeito que errou pela primeira vez tem de ser tratado de forma diferente do que fez várias.”

Para André Vilela Kamatsu, da USP, endurecer a legislação, como sugere parte do Congresso, não resolve. “É preciso ter políticas de desencarceramento, em especial nos casos de menor gravidade e que muitas vezes sequer foram investigados e/ou julgados. E, claro, essas políticas só funcionarão se atreladas a outras políticas de maior inclusão e igualdade social”, diz.

O levantamento do Igarapé mostra que apenas 14 Estados têm programas de reintegração social de presos, o que envolve, por exemplo, estratégias de trabalho, educação e assistência social pafa os detentos. “Vimos que o primeiro mês é crucial para quem sai da prisão. Criar e investir em programas que atuem na transição do mundo da prisão para a vida em liberdade é chave”, afirma.

País com a terceira maior população carcerária do mundo (quase 827 mil presos), o Brasil registra também alto índice de egressos de penitenciárias voltando ao sistema prisional por reincidência de crimes. Não há números oficiais, mas estudos mostram que cerca de 1/3 dos que cumpre pena acaba preso novamente.

A precariedade do sistema carcerário, condições socioeconômicas adversas e a ausência de políticas públicas voltadas aos egressos ajudam a explicar esse cenário. Por outro lado, há críticas a benefícios previstos pela legislação, como as saídas temporárias das cadeias.

Episódios de violência nas ruas que envolvem ex-presidiários assustam a população e fazem gestores e legisladores cobrarem endurecimento das leis.

  • Levantamento do Instituto Igarapé com base em 111 estudos empíricos mostra que a reincidência criminal no Brasil chega a 32%. O relatório, de 2022, considera dados de quatro décadas, publicados em pesquisas de diferentes níveis.
  • Outro estudo, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostra números um pouco mais altos: a reincidência atinge 37,6% para novo cumprimento de pena em até cinco anos, e alcança 42,5% se for considerada qualquer entrada no sistema prisional (quando há prisão, mas ainda sem nova sentença, tecnicamente a volta ainda não é considerada reincidência).
Entre as causas da reincidência, dizem especialistas, estão a precariedade no sistema carcerário e problemas na legislação Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

Em geral, os números são fornecidos só por alguns Estados e não há uniformidade. A pesquisa do Depen, por exemplo, apesar da base robusta de dados, usa informações de 13 unidades da federação - e não inclui algumas das maiores, como Rio de Janeiro e Minas Gerais. Na avaliação do Igarapé, a ausência do banco de dados completo contribui para a reincidência.

“Sistematizar informações é crucial para a formulação eficaz de políticas públicas, dando base sólida e abrangente para implementar estratégias de reintegração social e redução da reincidência”, diz Melina Risso, diretora de pesquisa do instituto.

Quais são as causas da reincidência criminal no Brasil?

Especialistas apontam diferentes motivos, entre eles problemas estruturais dos presídios, de legislação e a própria ineficiência do Estado na reinserção social.

“As causas são múltiplas, mas é evidente a deficiência do Estado em prover oportunidades a quem por alguma razão entrou nesse universo”, afirma o delegado Fernando Veloso, ex-secretário de Administração Penitenciária no Estado.

“Uma das primeiras questões é que o preso é identificado com a facção que atua naquele território - e há mais de 70 ou 80 facções no País”, diz. Segundo ele, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, o preso é logo “matriculado” na facção, sem necessariamente ter elo com o crime organizado.

Isso eleva o risco de que ele se envolva em outros delitos no futuro. Além disso, o prisão pode funcionar como uma “escola” do crime, onde são compartilhadas estratégias com colegas de cela e é criada uma rede de contatos que pode ser retomada no futuro.

“Dentro da unidade prisional, o Estado não tem o controle. Quem tem é o próprio preso. O que o Estado consegue fazer é dizer que não pode sair. Só isso”, acrescenta Veloso.

Muitas vezes nem isso é possível. Nesta semana, houve pela primeira vez uma fuga de um presídio federal: dois detentos, que têm ligação com o Comando Vermelho, escaparam de unidade de segurança máxima em Mossoró (RN).

Ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos Carneiro cita o sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989, para ilustrar como o próprio sistema prisional é muitas vezes indutor de novos crimes.

“A maioria dos presos tem baixa escolaridade e baixa condição econômica, nada a perder. Quando prenderam a quadrilha (envolvida no sequestro de Diniz), formada por gente de bom nível social e acadêmico, puseram no Carandiru. O que eles fizeram? Uma cartilha de como fazer sequestros”, exemplifica.

O estudo do Depen mostra que os casos de reincidência frequentemente estão ligados aos mesmos crimes que levaram à primeira pena. Delitos contra o patrimônio (roubos e furtos), em geral, se repetem. Apesar da tendência, também há registro de crimes novos: 3% dos presos por drogas, por exemplo, voltam à cadeia após casos de homicídio.

“Se as condições de vida – pessoais, relacionais, econômicas e sociais – do indivíduo preso não mudarem, a chance de esse tipo de conduta voltar a acontecer é relativamente grande”, diz André Vilela Komatsu, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. O próprio encarceramento, destaca, reduz as possibilidades de trabalho pós-prisão.

A pesquisa do Igarapé mostra que uma rede familiar fraca, baixa conexão com a escola, trabalho precoce e histórico de delitos na adolescência antes da primeira prisão influenciam a reincidência.

Durante o cumprimento da pena, a violência institucional e a convivência com bandidos contumazes aumentam ainda mais o risco. Já depois da soltura, a falta de apoio da família, a ausência de políticas públicas para egressos e o abuso de drogas contribuem.

Polícia prende e Justiça solta?

Para a população e parte dos agentes de segurança, uma crítica frequente é de que a polícia prende nas ruas, mas a Justiça solta. Para Thiago Bottino, professor de Direito da FGV Rio, essa ideia “é verdadeira e falsa ao mesmo tempo”.

“O policial que faz a prisão, principalmente em flagrante, não é formado em Direito. E o delegado, embora tenha formação jurídica, tem possibilidade de análise jurídica mais limitada da prisão”, afirma.

Há análises judiciais equivocadas, mas em grande parte dos casos, dizem os especialistas, a Justiça solta não por preferência individual do magistrado, mas segue o que a lei prevê. Lacunas na investigação da polícia ou do Ministério Público também podem ser um problema, por insuficiência de provas que sustentem a condenação.

“Muitas vezes a população interpreta a prisão preventiva feita pela polícia como prova de culpa”, afirma Bottino. “Na verdade, a prova é o que acontece durante o processo, quando são ouvidas outras pessoas, testemunhas, o próprio acusado, o investigado”, acrescenta.

“Muitas vezes a impressão de que a soltura é irregular, indevida ou socialmente ruim, deriva do desconhecimento dos conceitos jurídicos”, completa o professor.

Saidinha favorece reincidência?

E a legislação deve mudar para diminuir a reincidência? A Lei de Execução Penal prevê benefícios para presos que apresentarem bom comportamento. Há, porém, críticas à legislação. Um dos benefícios mais polêmicos é a “saidinha”, que permite a saída temporária dos detentos em datas comemorativas.

Um projeto de lei no Senado tenta restringir esse benefício. O relator do texto, aprovado na Câmara em 2023, foi o então deputado Guilherme Derrite (PL), hoje secretário da Segurança Pública em São Paulo. Para ele, a saidinha está por trás da reincidência.

“A gente não tem dificuldade de prender quadrilhas, criminosos. A gente tem dificuldade com a reincidência criminal”, afirmou Derrite, em entrevista coletiva em dezembro. “É normal um país prender 14 vezes o mesmo indivíduo pelo mesmo crime grave? É normal prender pela 30ª vez um indivíduo com fuzil?”

Um dos casos que reacenderam o debate sobre a saidinha foi a morte de um sargento da Polícia Militar, baleado em Belo Horizonte durante perseguição a criminosos. O suspeito era um detento que obteve o direito da saída temporária e estava no regime semiaberto.

Para o promotor Alexandre Daruge, do Ministério Público de São Paulo, a saidinha não precisa ser extinta, mas passar por uma restrição.

“O espirito atual revela necessidade de revisão do benefício. É chegada a hora de equalizar um pouco isso, frear um pouco as saídas em bloco, prezando pela segurança pública”, diz Daruge, que participou do vodcast Dois Pontos, do Estadão.

“Quando fomenta um discurso muito punitivista, olha só para o aspecto de vingança. E quando pensa muito na ressocialização sem verificar que aumenta o risco social dentro da execução penal, deixa de garantir que o sistema funcione a contento”, completa o promotor.

A progressão de regime para quem cumpre pena no Brasil também consta na legislação. Ela prevê que o cumprimento da prisão será executado de forma progressiva a partir de transcorrido 1/6 dela, desde que o apenado tenha bom comportamento. Crimes hediondos têm regras mais rígidas.

Para muitos, a medida é vista como outro facilitador da reincidência. Assim como acontece muitas vezes nas “saidinhas”, os casos em que os presos progridem para o semiaberto e não retornam para a unidade prisional são frequentemente citados como exemplos. Em São Paulo, em média 5% daqueles que saem temporariamente não retornam.

No Congresso, há ao menos três projetos que propõe aumentar restrições à progressão de regime. Um deles impede a progressão de regime para condenados por estupro ou estupro de vulnerável; outro prevê que condenados por homicídio de autoridade ou integrante das forças de segurança precisarão cumprir no mínimo 80% da pena para pedir a progressão de regime.

Um terceiro defende monitoramento eletrônico obrigatório para todos os presos que passam para os regimes aberto ou semiaberto. Essa proposta, porém, esbarra em limitações de estrutura, como a disponibilidade de tornozeleiras eletrônicas para todos os detentos nessa condição.

O juiz Luís Geraldo Lanfredi rebate as críticas. “Ela (a progressão de pena) tem por base avaliações objetivas e subjetivas, estudos que importam a singularização da vida do condenado, instrumentos que, se bem empregados, trazem bons prognósticos que evitam ou diminuem a chance de reincidência criminal”, diz ele, que coordena o setor de fiscalização do sistema carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O que fazer para diminuir a reincidência criminal

Fernando Veloso, que chefiou o sistema prisional fluminense, defende foco em evitar que o preso pela primeira vez siga no mundo do crime. “É preciso uma divisão entre crimes violentos e não violentos. Todos os benefícios devem ser mantidos, mas para os que não praticaram violência contra a pessoa”, diz. “O sujeito que errou pela primeira vez tem de ser tratado de forma diferente do que fez várias.”

Para André Vilela Kamatsu, da USP, endurecer a legislação, como sugere parte do Congresso, não resolve. “É preciso ter políticas de desencarceramento, em especial nos casos de menor gravidade e que muitas vezes sequer foram investigados e/ou julgados. E, claro, essas políticas só funcionarão se atreladas a outras políticas de maior inclusão e igualdade social”, diz.

O levantamento do Igarapé mostra que apenas 14 Estados têm programas de reintegração social de presos, o que envolve, por exemplo, estratégias de trabalho, educação e assistência social pafa os detentos. “Vimos que o primeiro mês é crucial para quem sai da prisão. Criar e investir em programas que atuem na transição do mundo da prisão para a vida em liberdade é chave”, afirma.

País com a terceira maior população carcerária do mundo (quase 827 mil presos), o Brasil registra também alto índice de egressos de penitenciárias voltando ao sistema prisional por reincidência de crimes. Não há números oficiais, mas estudos mostram que cerca de 1/3 dos que cumpre pena acaba preso novamente.

A precariedade do sistema carcerário, condições socioeconômicas adversas e a ausência de políticas públicas voltadas aos egressos ajudam a explicar esse cenário. Por outro lado, há críticas a benefícios previstos pela legislação, como as saídas temporárias das cadeias.

Episódios de violência nas ruas que envolvem ex-presidiários assustam a população e fazem gestores e legisladores cobrarem endurecimento das leis.

  • Levantamento do Instituto Igarapé com base em 111 estudos empíricos mostra que a reincidência criminal no Brasil chega a 32%. O relatório, de 2022, considera dados de quatro décadas, publicados em pesquisas de diferentes níveis.
  • Outro estudo, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostra números um pouco mais altos: a reincidência atinge 37,6% para novo cumprimento de pena em até cinco anos, e alcança 42,5% se for considerada qualquer entrada no sistema prisional (quando há prisão, mas ainda sem nova sentença, tecnicamente a volta ainda não é considerada reincidência).
Entre as causas da reincidência, dizem especialistas, estão a precariedade no sistema carcerário e problemas na legislação Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

Em geral, os números são fornecidos só por alguns Estados e não há uniformidade. A pesquisa do Depen, por exemplo, apesar da base robusta de dados, usa informações de 13 unidades da federação - e não inclui algumas das maiores, como Rio de Janeiro e Minas Gerais. Na avaliação do Igarapé, a ausência do banco de dados completo contribui para a reincidência.

“Sistematizar informações é crucial para a formulação eficaz de políticas públicas, dando base sólida e abrangente para implementar estratégias de reintegração social e redução da reincidência”, diz Melina Risso, diretora de pesquisa do instituto.

Quais são as causas da reincidência criminal no Brasil?

Especialistas apontam diferentes motivos, entre eles problemas estruturais dos presídios, de legislação e a própria ineficiência do Estado na reinserção social.

“As causas são múltiplas, mas é evidente a deficiência do Estado em prover oportunidades a quem por alguma razão entrou nesse universo”, afirma o delegado Fernando Veloso, ex-secretário de Administração Penitenciária no Estado.

“Uma das primeiras questões é que o preso é identificado com a facção que atua naquele território - e há mais de 70 ou 80 facções no País”, diz. Segundo ele, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, o preso é logo “matriculado” na facção, sem necessariamente ter elo com o crime organizado.

Isso eleva o risco de que ele se envolva em outros delitos no futuro. Além disso, o prisão pode funcionar como uma “escola” do crime, onde são compartilhadas estratégias com colegas de cela e é criada uma rede de contatos que pode ser retomada no futuro.

“Dentro da unidade prisional, o Estado não tem o controle. Quem tem é o próprio preso. O que o Estado consegue fazer é dizer que não pode sair. Só isso”, acrescenta Veloso.

Muitas vezes nem isso é possível. Nesta semana, houve pela primeira vez uma fuga de um presídio federal: dois detentos, que têm ligação com o Comando Vermelho, escaparam de unidade de segurança máxima em Mossoró (RN).

Ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos Carneiro cita o sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989, para ilustrar como o próprio sistema prisional é muitas vezes indutor de novos crimes.

“A maioria dos presos tem baixa escolaridade e baixa condição econômica, nada a perder. Quando prenderam a quadrilha (envolvida no sequestro de Diniz), formada por gente de bom nível social e acadêmico, puseram no Carandiru. O que eles fizeram? Uma cartilha de como fazer sequestros”, exemplifica.

O estudo do Depen mostra que os casos de reincidência frequentemente estão ligados aos mesmos crimes que levaram à primeira pena. Delitos contra o patrimônio (roubos e furtos), em geral, se repetem. Apesar da tendência, também há registro de crimes novos: 3% dos presos por drogas, por exemplo, voltam à cadeia após casos de homicídio.

“Se as condições de vida – pessoais, relacionais, econômicas e sociais – do indivíduo preso não mudarem, a chance de esse tipo de conduta voltar a acontecer é relativamente grande”, diz André Vilela Komatsu, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. O próprio encarceramento, destaca, reduz as possibilidades de trabalho pós-prisão.

A pesquisa do Igarapé mostra que uma rede familiar fraca, baixa conexão com a escola, trabalho precoce e histórico de delitos na adolescência antes da primeira prisão influenciam a reincidência.

Durante o cumprimento da pena, a violência institucional e a convivência com bandidos contumazes aumentam ainda mais o risco. Já depois da soltura, a falta de apoio da família, a ausência de políticas públicas para egressos e o abuso de drogas contribuem.

Polícia prende e Justiça solta?

Para a população e parte dos agentes de segurança, uma crítica frequente é de que a polícia prende nas ruas, mas a Justiça solta. Para Thiago Bottino, professor de Direito da FGV Rio, essa ideia “é verdadeira e falsa ao mesmo tempo”.

“O policial que faz a prisão, principalmente em flagrante, não é formado em Direito. E o delegado, embora tenha formação jurídica, tem possibilidade de análise jurídica mais limitada da prisão”, afirma.

Há análises judiciais equivocadas, mas em grande parte dos casos, dizem os especialistas, a Justiça solta não por preferência individual do magistrado, mas segue o que a lei prevê. Lacunas na investigação da polícia ou do Ministério Público também podem ser um problema, por insuficiência de provas que sustentem a condenação.

“Muitas vezes a população interpreta a prisão preventiva feita pela polícia como prova de culpa”, afirma Bottino. “Na verdade, a prova é o que acontece durante o processo, quando são ouvidas outras pessoas, testemunhas, o próprio acusado, o investigado”, acrescenta.

“Muitas vezes a impressão de que a soltura é irregular, indevida ou socialmente ruim, deriva do desconhecimento dos conceitos jurídicos”, completa o professor.

Saidinha favorece reincidência?

E a legislação deve mudar para diminuir a reincidência? A Lei de Execução Penal prevê benefícios para presos que apresentarem bom comportamento. Há, porém, críticas à legislação. Um dos benefícios mais polêmicos é a “saidinha”, que permite a saída temporária dos detentos em datas comemorativas.

Um projeto de lei no Senado tenta restringir esse benefício. O relator do texto, aprovado na Câmara em 2023, foi o então deputado Guilherme Derrite (PL), hoje secretário da Segurança Pública em São Paulo. Para ele, a saidinha está por trás da reincidência.

“A gente não tem dificuldade de prender quadrilhas, criminosos. A gente tem dificuldade com a reincidência criminal”, afirmou Derrite, em entrevista coletiva em dezembro. “É normal um país prender 14 vezes o mesmo indivíduo pelo mesmo crime grave? É normal prender pela 30ª vez um indivíduo com fuzil?”

Um dos casos que reacenderam o debate sobre a saidinha foi a morte de um sargento da Polícia Militar, baleado em Belo Horizonte durante perseguição a criminosos. O suspeito era um detento que obteve o direito da saída temporária e estava no regime semiaberto.

Para o promotor Alexandre Daruge, do Ministério Público de São Paulo, a saidinha não precisa ser extinta, mas passar por uma restrição.

“O espirito atual revela necessidade de revisão do benefício. É chegada a hora de equalizar um pouco isso, frear um pouco as saídas em bloco, prezando pela segurança pública”, diz Daruge, que participou do vodcast Dois Pontos, do Estadão.

“Quando fomenta um discurso muito punitivista, olha só para o aspecto de vingança. E quando pensa muito na ressocialização sem verificar que aumenta o risco social dentro da execução penal, deixa de garantir que o sistema funcione a contento”, completa o promotor.

A progressão de regime para quem cumpre pena no Brasil também consta na legislação. Ela prevê que o cumprimento da prisão será executado de forma progressiva a partir de transcorrido 1/6 dela, desde que o apenado tenha bom comportamento. Crimes hediondos têm regras mais rígidas.

Para muitos, a medida é vista como outro facilitador da reincidência. Assim como acontece muitas vezes nas “saidinhas”, os casos em que os presos progridem para o semiaberto e não retornam para a unidade prisional são frequentemente citados como exemplos. Em São Paulo, em média 5% daqueles que saem temporariamente não retornam.

No Congresso, há ao menos três projetos que propõe aumentar restrições à progressão de regime. Um deles impede a progressão de regime para condenados por estupro ou estupro de vulnerável; outro prevê que condenados por homicídio de autoridade ou integrante das forças de segurança precisarão cumprir no mínimo 80% da pena para pedir a progressão de regime.

Um terceiro defende monitoramento eletrônico obrigatório para todos os presos que passam para os regimes aberto ou semiaberto. Essa proposta, porém, esbarra em limitações de estrutura, como a disponibilidade de tornozeleiras eletrônicas para todos os detentos nessa condição.

O juiz Luís Geraldo Lanfredi rebate as críticas. “Ela (a progressão de pena) tem por base avaliações objetivas e subjetivas, estudos que importam a singularização da vida do condenado, instrumentos que, se bem empregados, trazem bons prognósticos que evitam ou diminuem a chance de reincidência criminal”, diz ele, que coordena o setor de fiscalização do sistema carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O que fazer para diminuir a reincidência criminal

Fernando Veloso, que chefiou o sistema prisional fluminense, defende foco em evitar que o preso pela primeira vez siga no mundo do crime. “É preciso uma divisão entre crimes violentos e não violentos. Todos os benefícios devem ser mantidos, mas para os que não praticaram violência contra a pessoa”, diz. “O sujeito que errou pela primeira vez tem de ser tratado de forma diferente do que fez várias.”

Para André Vilela Kamatsu, da USP, endurecer a legislação, como sugere parte do Congresso, não resolve. “É preciso ter políticas de desencarceramento, em especial nos casos de menor gravidade e que muitas vezes sequer foram investigados e/ou julgados. E, claro, essas políticas só funcionarão se atreladas a outras políticas de maior inclusão e igualdade social”, diz.

O levantamento do Igarapé mostra que apenas 14 Estados têm programas de reintegração social de presos, o que envolve, por exemplo, estratégias de trabalho, educação e assistência social pafa os detentos. “Vimos que o primeiro mês é crucial para quem sai da prisão. Criar e investir em programas que atuem na transição do mundo da prisão para a vida em liberdade é chave”, afirma.

País com a terceira maior população carcerária do mundo (quase 827 mil presos), o Brasil registra também alto índice de egressos de penitenciárias voltando ao sistema prisional por reincidência de crimes. Não há números oficiais, mas estudos mostram que cerca de 1/3 dos que cumpre pena acaba preso novamente.

A precariedade do sistema carcerário, condições socioeconômicas adversas e a ausência de políticas públicas voltadas aos egressos ajudam a explicar esse cenário. Por outro lado, há críticas a benefícios previstos pela legislação, como as saídas temporárias das cadeias.

Episódios de violência nas ruas que envolvem ex-presidiários assustam a população e fazem gestores e legisladores cobrarem endurecimento das leis.

  • Levantamento do Instituto Igarapé com base em 111 estudos empíricos mostra que a reincidência criminal no Brasil chega a 32%. O relatório, de 2022, considera dados de quatro décadas, publicados em pesquisas de diferentes níveis.
  • Outro estudo, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostra números um pouco mais altos: a reincidência atinge 37,6% para novo cumprimento de pena em até cinco anos, e alcança 42,5% se for considerada qualquer entrada no sistema prisional (quando há prisão, mas ainda sem nova sentença, tecnicamente a volta ainda não é considerada reincidência).
Entre as causas da reincidência, dizem especialistas, estão a precariedade no sistema carcerário e problemas na legislação Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

Em geral, os números são fornecidos só por alguns Estados e não há uniformidade. A pesquisa do Depen, por exemplo, apesar da base robusta de dados, usa informações de 13 unidades da federação - e não inclui algumas das maiores, como Rio de Janeiro e Minas Gerais. Na avaliação do Igarapé, a ausência do banco de dados completo contribui para a reincidência.

“Sistematizar informações é crucial para a formulação eficaz de políticas públicas, dando base sólida e abrangente para implementar estratégias de reintegração social e redução da reincidência”, diz Melina Risso, diretora de pesquisa do instituto.

Quais são as causas da reincidência criminal no Brasil?

Especialistas apontam diferentes motivos, entre eles problemas estruturais dos presídios, de legislação e a própria ineficiência do Estado na reinserção social.

“As causas são múltiplas, mas é evidente a deficiência do Estado em prover oportunidades a quem por alguma razão entrou nesse universo”, afirma o delegado Fernando Veloso, ex-secretário de Administração Penitenciária no Estado.

“Uma das primeiras questões é que o preso é identificado com a facção que atua naquele território - e há mais de 70 ou 80 facções no País”, diz. Segundo ele, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, o preso é logo “matriculado” na facção, sem necessariamente ter elo com o crime organizado.

Isso eleva o risco de que ele se envolva em outros delitos no futuro. Além disso, o prisão pode funcionar como uma “escola” do crime, onde são compartilhadas estratégias com colegas de cela e é criada uma rede de contatos que pode ser retomada no futuro.

“Dentro da unidade prisional, o Estado não tem o controle. Quem tem é o próprio preso. O que o Estado consegue fazer é dizer que não pode sair. Só isso”, acrescenta Veloso.

Muitas vezes nem isso é possível. Nesta semana, houve pela primeira vez uma fuga de um presídio federal: dois detentos, que têm ligação com o Comando Vermelho, escaparam de unidade de segurança máxima em Mossoró (RN).

Ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos Carneiro cita o sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989, para ilustrar como o próprio sistema prisional é muitas vezes indutor de novos crimes.

“A maioria dos presos tem baixa escolaridade e baixa condição econômica, nada a perder. Quando prenderam a quadrilha (envolvida no sequestro de Diniz), formada por gente de bom nível social e acadêmico, puseram no Carandiru. O que eles fizeram? Uma cartilha de como fazer sequestros”, exemplifica.

O estudo do Depen mostra que os casos de reincidência frequentemente estão ligados aos mesmos crimes que levaram à primeira pena. Delitos contra o patrimônio (roubos e furtos), em geral, se repetem. Apesar da tendência, também há registro de crimes novos: 3% dos presos por drogas, por exemplo, voltam à cadeia após casos de homicídio.

“Se as condições de vida – pessoais, relacionais, econômicas e sociais – do indivíduo preso não mudarem, a chance de esse tipo de conduta voltar a acontecer é relativamente grande”, diz André Vilela Komatsu, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. O próprio encarceramento, destaca, reduz as possibilidades de trabalho pós-prisão.

A pesquisa do Igarapé mostra que uma rede familiar fraca, baixa conexão com a escola, trabalho precoce e histórico de delitos na adolescência antes da primeira prisão influenciam a reincidência.

Durante o cumprimento da pena, a violência institucional e a convivência com bandidos contumazes aumentam ainda mais o risco. Já depois da soltura, a falta de apoio da família, a ausência de políticas públicas para egressos e o abuso de drogas contribuem.

Polícia prende e Justiça solta?

Para a população e parte dos agentes de segurança, uma crítica frequente é de que a polícia prende nas ruas, mas a Justiça solta. Para Thiago Bottino, professor de Direito da FGV Rio, essa ideia “é verdadeira e falsa ao mesmo tempo”.

“O policial que faz a prisão, principalmente em flagrante, não é formado em Direito. E o delegado, embora tenha formação jurídica, tem possibilidade de análise jurídica mais limitada da prisão”, afirma.

Há análises judiciais equivocadas, mas em grande parte dos casos, dizem os especialistas, a Justiça solta não por preferência individual do magistrado, mas segue o que a lei prevê. Lacunas na investigação da polícia ou do Ministério Público também podem ser um problema, por insuficiência de provas que sustentem a condenação.

“Muitas vezes a população interpreta a prisão preventiva feita pela polícia como prova de culpa”, afirma Bottino. “Na verdade, a prova é o que acontece durante o processo, quando são ouvidas outras pessoas, testemunhas, o próprio acusado, o investigado”, acrescenta.

“Muitas vezes a impressão de que a soltura é irregular, indevida ou socialmente ruim, deriva do desconhecimento dos conceitos jurídicos”, completa o professor.

Saidinha favorece reincidência?

E a legislação deve mudar para diminuir a reincidência? A Lei de Execução Penal prevê benefícios para presos que apresentarem bom comportamento. Há, porém, críticas à legislação. Um dos benefícios mais polêmicos é a “saidinha”, que permite a saída temporária dos detentos em datas comemorativas.

Um projeto de lei no Senado tenta restringir esse benefício. O relator do texto, aprovado na Câmara em 2023, foi o então deputado Guilherme Derrite (PL), hoje secretário da Segurança Pública em São Paulo. Para ele, a saidinha está por trás da reincidência.

“A gente não tem dificuldade de prender quadrilhas, criminosos. A gente tem dificuldade com a reincidência criminal”, afirmou Derrite, em entrevista coletiva em dezembro. “É normal um país prender 14 vezes o mesmo indivíduo pelo mesmo crime grave? É normal prender pela 30ª vez um indivíduo com fuzil?”

Um dos casos que reacenderam o debate sobre a saidinha foi a morte de um sargento da Polícia Militar, baleado em Belo Horizonte durante perseguição a criminosos. O suspeito era um detento que obteve o direito da saída temporária e estava no regime semiaberto.

Para o promotor Alexandre Daruge, do Ministério Público de São Paulo, a saidinha não precisa ser extinta, mas passar por uma restrição.

“O espirito atual revela necessidade de revisão do benefício. É chegada a hora de equalizar um pouco isso, frear um pouco as saídas em bloco, prezando pela segurança pública”, diz Daruge, que participou do vodcast Dois Pontos, do Estadão.

“Quando fomenta um discurso muito punitivista, olha só para o aspecto de vingança. E quando pensa muito na ressocialização sem verificar que aumenta o risco social dentro da execução penal, deixa de garantir que o sistema funcione a contento”, completa o promotor.

A progressão de regime para quem cumpre pena no Brasil também consta na legislação. Ela prevê que o cumprimento da prisão será executado de forma progressiva a partir de transcorrido 1/6 dela, desde que o apenado tenha bom comportamento. Crimes hediondos têm regras mais rígidas.

Para muitos, a medida é vista como outro facilitador da reincidência. Assim como acontece muitas vezes nas “saidinhas”, os casos em que os presos progridem para o semiaberto e não retornam para a unidade prisional são frequentemente citados como exemplos. Em São Paulo, em média 5% daqueles que saem temporariamente não retornam.

No Congresso, há ao menos três projetos que propõe aumentar restrições à progressão de regime. Um deles impede a progressão de regime para condenados por estupro ou estupro de vulnerável; outro prevê que condenados por homicídio de autoridade ou integrante das forças de segurança precisarão cumprir no mínimo 80% da pena para pedir a progressão de regime.

Um terceiro defende monitoramento eletrônico obrigatório para todos os presos que passam para os regimes aberto ou semiaberto. Essa proposta, porém, esbarra em limitações de estrutura, como a disponibilidade de tornozeleiras eletrônicas para todos os detentos nessa condição.

O juiz Luís Geraldo Lanfredi rebate as críticas. “Ela (a progressão de pena) tem por base avaliações objetivas e subjetivas, estudos que importam a singularização da vida do condenado, instrumentos que, se bem empregados, trazem bons prognósticos que evitam ou diminuem a chance de reincidência criminal”, diz ele, que coordena o setor de fiscalização do sistema carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O que fazer para diminuir a reincidência criminal

Fernando Veloso, que chefiou o sistema prisional fluminense, defende foco em evitar que o preso pela primeira vez siga no mundo do crime. “É preciso uma divisão entre crimes violentos e não violentos. Todos os benefícios devem ser mantidos, mas para os que não praticaram violência contra a pessoa”, diz. “O sujeito que errou pela primeira vez tem de ser tratado de forma diferente do que fez várias.”

Para André Vilela Kamatsu, da USP, endurecer a legislação, como sugere parte do Congresso, não resolve. “É preciso ter políticas de desencarceramento, em especial nos casos de menor gravidade e que muitas vezes sequer foram investigados e/ou julgados. E, claro, essas políticas só funcionarão se atreladas a outras políticas de maior inclusão e igualdade social”, diz.

O levantamento do Igarapé mostra que apenas 14 Estados têm programas de reintegração social de presos, o que envolve, por exemplo, estratégias de trabalho, educação e assistência social pafa os detentos. “Vimos que o primeiro mês é crucial para quem sai da prisão. Criar e investir em programas que atuem na transição do mundo da prisão para a vida em liberdade é chave”, afirma.

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