Queda dos homicídios: ‘Mercado da droga está mais forte, mas se profissionalizou’, diz pesquisador


Brasil registrou redução de assassinatos pelo segundo ano consecutivo, segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Por Ítalo Lo Re
Atualização:
Foto: Amanda Perobelli/Estadão
Entrevista comBruno Paes MansoEscritor e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP)

O Brasil registrou queda de homicídios pelo segundo ano consecutivo em 2022, segundo dados divulgados nesta quinta-feira, 20, no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Com 47.508 casos, o País chega ao segundo menor número da série histórica, iniciada em 2011. A taxa de homicídios caiu para 23,4 casos a cada 100 mil habitantes, redução de 2,4% ante a do ano anterior (24).

A queda consolida uma tendência observada desde 2018, logo após o pico de assassinatos por conta de conflitos entre facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) – de lá para cá, só houve aumento em 2020. Ainda assim, os casos seguem em patamar elevado, com 130 ocorrências por dia. Ao menos cinco pessoas foram assassinadas por hora no último ano.

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso afirma que o principal fator que explica o retrato atual é a dinâmica entre as facções. “Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo”, diz ao Estadão. “Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena.”

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Paes Manso diz que esse cenário foi influenciado pelo que ele chama de uma “visão diplomática” do PCC, que teria buscado evitar conflitos nos últimos anos para evitar custos e imprevisibilidade. Outras facções tomaram medidas parecidas. “Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes”, afirma. “Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.”

Polícia Militar cumpre mandados contra suspeitos de homicídios em Maceió, capital do Alagoas Foto: Polícia Militar

O pesquisador reforça que, ainda com o cenário de desaceleração dos homicídios, é importante priorizar a redução de assassinatos ainda mais. Além de focar na adoção de políticas públicas nos Estados mais violentos, como Amapá e Bahia. “A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto mais relevante de qualquer política de segurança pública”, diz. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Bruno Paes Manso:

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Como avalia a nova queda de assassinatos no País? Quais fatores, ao seu ver, explicam o cenário atual?

Quando se olha para os últimos cinco anos, há uma tendência de queda, que se manteve desde 2018. A queda em 2022 não foi tão grande na comparação com outros anos, mas passamos pela pandemia de covid-19, pelo aumento de armas em circulação e tudo mais. Então a expectativa era ver o que aconteceria, principalmente com esse aumento de armas, e a gente vê esse registro de cinco anos de queda. É óbvio que as variações de homicídios têm aspectos multicausais, mas uma coisa que tenho batido na tecla há muito tempo é que essas variações estaduais muito bruscas muitas vezes estão associadas às dinâmicas dos mercados criminais.

Mercados mais conflitivos e de rivalidades que se acirram tendem a produzir variações muito intensas e rápidas de um ano para outro. Uma coisa é a gente pensar em reduções de longo prazo, em 50 ou 100 anos, por causa de uma mudança estrutural na educação, na pobreza ou na desigualdade de renda, por exemplo. São aspectos que a gente tenta acompanhar no médio e longo prazo. Só que essas variações de curto prazo, de um ano para outro, muitas vezes são termômetros de dinâmicas criminais, que são as que mais geram violência.

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Minha hipótese é que tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo. Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena. As pessoas se profissionalizam e agem racionalmente. A redução do conflito faz parte de um mercado que pode ser planejado, dar mais lucro e menos custos. É um fenômeno que vem acontecendo, com gangues e grupos cada vez mais influentes politica e economicamente em um mundo em crise, em que o mercado ilegal tem cada vez mais força.

Olhando nesse cenário macro, de tendência de queda há cerca de cinco anos, dá para se dizer que há um hiato pelo menos nos conflitos entre as facções maiores, como PCC e Comando Vermelho?

PCC e Comando Vermelho são as duas facções nacionais do País. Principalmente depois de 2010, o PCC começa essa expansão a partir quando chega nas fronteiras, acessa os mercados de produção e distribuição de drogas, e começa a vender para outros lugares. Isso ganha força com a organização reproduzindo o modelo de gangues com base prisional em outros Estados, diante de um crescimento sempre rápido de presos. Mas quando chega uma gangue, você tem resistência local, as próprias regras do PCC causam desconforto. Criam-se gangues locais como alternativa, com outras regras, e há uma transformação da cena criminal. Além de ter o Comando Vermelho, que rivaliza a nível nacional.

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Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo

Bruno Paes Manso

Em alguns locais essas rivalidades são mais ou menos violentas. No Rio Grande do Norte, tem o Sindicato do Crime, que em algum momento bateu de frente com o PCC. Outras gangues fazem alianças, mas ao mesmo tempo se contrapõem ao Comando Vermelho. Há os Guardiões do Estado no Ceará, que no começo fazem pacto com o PCC, mas, ao mesmo tempo, atuam em rivalidade com o Comando Vermelho. Uma série de gangues despontam no Brasil inteiro, se associando naturalmente com uma outra gangue e produzindo contextos próprios nos seus Estados.

Ao mesmo tempo que o PCC consegue se transformar, em São Paulo, numa agência reguladora do mercado do crime, criando regras e possibilidades de o crime despontar e lucrar. Nos outros Estados, como cada um tem sua própria história, cada um reage de alguma forma a essa transformação. Ao mesmo tempo, reproduzem esse modelo de gangue de base prisional, com rivalidades que, dependendo do contexto, têm uma dinâmica própria. No Amazonas, por exemplo, despontou a Família do Norte, que consegue ter acesso aos mercados peruanos e colombianos, que não eram tão fortes no Sudeste, que dependiam mais da Bolívia e do Paraguai.

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Qual a grande regra da narcoeconomia? Na economia ilegal e bilionária do narcotráfico, se você tem dois concorrentes do mesmo tamanho disputando o mercado, como é um mercado ilegal, essa disputa vai ser feita pela violência, porque você não tem uma mediador. Então o mais forte acaba tentando se impor sobre o mais fraco, o que gera ciclos de violência. Mas quando você tem um grupo, como o PCC em São Paulo, que consegue virar um “governo” e estabelecer regras, mediar os conflitos e virar essa agência reguladora do mercado, a violência tende a diminuir. Isso se reproduz por outros Estados.

No médio prazo, essa visão diplomática do PCC, de que conflito é custo e imprevisibilidade, vai se assentando, principalmente depois de 2017, quando houve aquele pico de violência. Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes. Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.

A redução da taxa de homicídios foi de 2,4% no País e 4,5% na região Nordeste, que puxou a queda. A região continua com a maior taxa de homicídios do País, com a presença de facções como o Sindicato do Crime, mas por que houve uma queda dessa dimensão por lá? Mesmo facções menores se ‘profissionalizaram’?

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Há uma experiência maior e uma vivência de mais tempos lidando com a política pública de lá. Homicídios produzem prisão, conflitos e imprevisibilidade. Esse maior tempo de vivência permite às facções fazerem o cálculo do que compensa e do que não se compensa. Há gangues se fortalecendo e conseguindo se estabelecer e se posicionar. São mercados que estão mais estáveis. No Maranhão, por exemplo, hoje o Bonde dos 40 domina a região metropolitana e a capital. Então não há mais uma gangue que queira avançar sobre esse domínio, que já está mais consolidado. Isso gera uma redução muito grande da violência.

Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento

Bruno Paes Manso

No Ceará, não. Antes, tinha os Guardiões do Estado em disputa com o Comando Vermelho. No começo de 2019, houve uma série de ataques por causa de problemas nos presídios. Isso gera uma transferência das lideranças para os presídios federais, o que faz com que eles fiquem incomunicáveis. Ao mesmo tempo, há uma repactuação no Ceará, que faz com que os homicídios caiam bastante em 2019. Quando começa a voltar ao normal, as facções percebem que esse isolamento dificulta a tomada de decisão. Elas, então, começam a colocar vários “Sintonias” (alto escalão de facções) de rua para tomar decisões, sem depender mais de decisões de dentro dos presídios.

Isso muda a dinâmica do crime e leva inclusive a um racha dentro do Comando Vermelho, que vai gerar a Massa Carcerária, uma facção neutra que vai para fora e cria uma nova dinâmica de conflitos. Com essa nova gangue em disputa, o Ceará vê os homicídios explodirem em 2020, que é o único ano que rompeu a tendência de queda dos homicídios no País nos últimos cinco anos. No ano seguinte esse cenário se assenta. Porque territórios já se definem, uma certa estabilidade no mercado se configura, e a polícia, atenta a esse quadro, passa a punir os casos violentos.

Em resumo, para todo mundo que está no crime, que está ganhando dinheiro com drogas, é sempre mais interessante não ter conflito com o grupo rival, ter seu próprio espaço configurado e consolidado, para ganhar dinheiro com menos custos. Quando surge algo novo, normalmente a partir desse desequilíbrio há, muitas vezes, um efeito de conflitos, que duram bastante tempo. Mas a tendência hoje diante de lucros bilionários é ter uma posição racional e profissional para ganhar mais dinheiro e ter menos custos. É o que a gente tem visto hoje.

Essa configuração de gangues com bases prisionais tornou a gestão do tráfico menos truculenta do que era nos anos 2000, no Rio ou em São Paulo, como se via. Ainda há muita barbárie, como vídeos de assassinatos gravados para representar poder, mas há também mais racionalidade. Quanto mais perdem “soldados” ou quanto mais balas precisam trocar, pior para as facções. Os grupos têm preferido a diplomacia, muito influenciados por essa filosofia de profissionalização que o PCC colocou no mercado. Uma nova forma de gestão que tende a ser mais profissional e mais próxima das máfias.

Quais são as principais hipóteses para ter havido alta de assassinatos nas regiões Sul e Centro-Oeste do País? As altas nessas regiões foram puxadas por Paraná e Mato Grosso, respectivamente. Nesses locais não houve estabilização das rivalidades entre facções no último ano?

É uma boa questão para os pesquisadores desses Estados e para os jornalistas. Muitas vezes, quando a gente vê essas variações, há uma boa pergunta para se fazer: o que está acontecendo por lá? Tudo isso que relatei do Ceará, por exemplo, só foi possível saber tempos depois, a partir de pesquisadores que apuram de perto. No caso do Mato Grosso e do Paraná, são regiões de fronteira, que costumam ser relativamente instáveis.

No próprio Paraná, há várias questões, que vêm desde 2016, com o assassinato do Jorge Rafaat (ele era considerado o ‘Rei da Fronteira’ na época. Para pesquisadores, a morte dele aumentou o poder do PCC na região). São áreas em permanentes disputas. Como é um negócio ilegal, há muita dificuldade para saber o que está acontecendo. Mas não deixa de ser natural que aconteça aumento nessas regiões de fronteira, onde há uma tendência de instabilidade sempre muito intensa.

Paraná e Mato Grosso são Estados fronteiriços e estratégicos. Minha hipótese é que a dinâmica criminal tende a dar conta de explicar, porque normalmente essas variações de curto prazo, quando muita gente começa a matar, demonstram uma tática de controle territorial, com outro grupo reagindo. Normalmente, é um aspecto tático, com uma função instrumental.

A morte do Rafaat sempre é apontada como um ponto de virada por pesquisadores, inclusive para a migração de mais disputas do narcotráfico para a região Norte. O Anuário demonstrou que, hoje, a taxa de homicídios nos municípios da Amazônia Legal é cerca de 50% maior do que a do restante do País. Ao mesmo tempo, a da região Norte é a segunda maior do país, quase empatada com a do Nordeste. Por que a região segue tão violenta?

Nos anos 2000, tanto no Nordeste quanto no Norte, os Estados eram menos violentos. São Paulo e Rio de Janeiro se destacavam, além de outros com dinâmicas próprias, como Pernambuco e Espírito Santo. Apesar de ter pistolagem e crimes de mando, as taxas de homicídio no Norte e Nordeste sempre foram mais baixas do que as do Sudeste. Isso começou a mudar a partir dos anos 2010, principalmente no Nordeste, com as gangues chegando.

No caso do Norte, o que começou a acontecer, além dessa mudança da morte do Rafaat e da busca por outras fontes de droga na Amazônia, no Peru e na Colômbia, foi um capital de giro do crime buscando novos negócios. Há hoje esse dinheiro milionário em dólar girando, de venda de drogas para a Europa e tudo mais, que antes não existia. O quilo da cocaína na Europa chegou a 80 mil dólares, enquanto em São Paulo era R$ 15 mil. Há uma multiplicação desse lucro da droga, e esse capital de giro precisa buscar novos investimentos.

O crime ambiental passa a fazer parte dessa cartela de opções. Até pelas rotas e infraestrutura serem comuns, os aviões, os portos, os aeroportos clandestinos. Há uma estrutura em comum, além do ouro para lavagem de dinheiro, que passa a dialogar. Então esse dinheiro entra em maior quantidade e investidores têm negócios que passam a fazer parte desse capital criminal.

O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos

Bruno Paes Manso

Há um novo mercado e um novo perfil de mercado chegando lá, o que gera resistência e rivalidades, além de um desequilíbrio. É uma nova cena de mercado, em decorrência desse capital que entra e se mistura com o crime ambiental, que se fortalece com os quatro anos do governo Jair Bolsonaro e que vira uma outra opção mais palpável. O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos.

Os dados mostram que o perfil dos assassinatos se mantém, com homens jovens no alvo, principalmente negros. O que essa manutenção diz sobre as medidas que vêm sendo tomadas na área de segurança pública no Brasil? E o que poderia ser o foco do governo federal e dos Estados a partir desse cenário trazido pelo Anuário?

A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto relevante de qualquer política de segurança pública. Quando existem muitos homicídios em uma bairro, numa cidade ou em uma localidade, normalmente existe um tirano armado tentando impor um silêncio para a população para ganhar dinheiro. Há uma tirania estabelecida nesses lugares.

Onde há muita violência, há retrocesso político e uma situação muito complicada para as pessoas que vivem sujeitas a essa realidade. Para fortalecer a democracia, é preciso fragilizar esses tiranos armados e essas pessoas que matam para tentar produzir autoridade. Focar na redução da violência é estratégico. Mesmo que isso não acabe com a venda de drogas, pelo menos reduz os piores do comércio de drogas, que são as violências nos bairros onde essas vendas são feitas.

Além disso, é importante começar a entender melhor essa indústria do crime, porque hoje cada vez mais dinheiro está entrando na economia formal, há contas em offshores, presença de laranjas e diversas estratégias para lavar esse dinheiro, e tudo isso precisa ser compreendido de forma mais inteligente. É preciso ter uma posição mais estratégica a partir da compreensão do funcionamento dessa indústria, dos aspectos financeiros, de lavagem de dinheiro. Assim, em vez de ficar em ações que geram conflitos com a Polícia Militar, pode-se ter ações mais estratégicas.

O ministro Flávio Dino afirmou que vai anunciar uma série de medidas na área da segurança pública, e há expectativa de o governo assinar finalmente o decreto das armas. Qual a importância de rever a regulação das armas neste momento, após o crescimento expressivo do número de CACs?

É um passo importante. As armas fragilizaram as polícias, colocaram problemas sérios para as polícias, que passaram a ter de ligar com pessoas armadas nas ruas, com um discurso anti-polícia, o que é até irônico. Essa regulamentação volta a valorizar um discurso de legitimidade das forças policiais, além de se coibir e reduzir o mercado paralelo que estava pior do que nunca.

Muitos se aproveitaram desse descontrole para usar os CACs para vender armas para o crime organizado, vimos diversas ocorrências nesse sentido. O preço da arma diminuiu, caiu bruscamente no mercado paralelo, por causa desse ingresso de armas. Então, regulamentar essa cena é um passo fundamental. E um outro é focar nos hotspots (pontos mais incidentes) de homicídio e priorizar o combate a esse crime.

O Brasil registrou queda de homicídios pelo segundo ano consecutivo em 2022, segundo dados divulgados nesta quinta-feira, 20, no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Com 47.508 casos, o País chega ao segundo menor número da série histórica, iniciada em 2011. A taxa de homicídios caiu para 23,4 casos a cada 100 mil habitantes, redução de 2,4% ante a do ano anterior (24).

A queda consolida uma tendência observada desde 2018, logo após o pico de assassinatos por conta de conflitos entre facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) – de lá para cá, só houve aumento em 2020. Ainda assim, os casos seguem em patamar elevado, com 130 ocorrências por dia. Ao menos cinco pessoas foram assassinadas por hora no último ano.

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso afirma que o principal fator que explica o retrato atual é a dinâmica entre as facções. “Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo”, diz ao Estadão. “Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena.”

Paes Manso diz que esse cenário foi influenciado pelo que ele chama de uma “visão diplomática” do PCC, que teria buscado evitar conflitos nos últimos anos para evitar custos e imprevisibilidade. Outras facções tomaram medidas parecidas. “Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes”, afirma. “Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.”

Polícia Militar cumpre mandados contra suspeitos de homicídios em Maceió, capital do Alagoas Foto: Polícia Militar

O pesquisador reforça que, ainda com o cenário de desaceleração dos homicídios, é importante priorizar a redução de assassinatos ainda mais. Além de focar na adoção de políticas públicas nos Estados mais violentos, como Amapá e Bahia. “A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto mais relevante de qualquer política de segurança pública”, diz. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Bruno Paes Manso:

Como avalia a nova queda de assassinatos no País? Quais fatores, ao seu ver, explicam o cenário atual?

Quando se olha para os últimos cinco anos, há uma tendência de queda, que se manteve desde 2018. A queda em 2022 não foi tão grande na comparação com outros anos, mas passamos pela pandemia de covid-19, pelo aumento de armas em circulação e tudo mais. Então a expectativa era ver o que aconteceria, principalmente com esse aumento de armas, e a gente vê esse registro de cinco anos de queda. É óbvio que as variações de homicídios têm aspectos multicausais, mas uma coisa que tenho batido na tecla há muito tempo é que essas variações estaduais muito bruscas muitas vezes estão associadas às dinâmicas dos mercados criminais.

Mercados mais conflitivos e de rivalidades que se acirram tendem a produzir variações muito intensas e rápidas de um ano para outro. Uma coisa é a gente pensar em reduções de longo prazo, em 50 ou 100 anos, por causa de uma mudança estrutural na educação, na pobreza ou na desigualdade de renda, por exemplo. São aspectos que a gente tenta acompanhar no médio e longo prazo. Só que essas variações de curto prazo, de um ano para outro, muitas vezes são termômetros de dinâmicas criminais, que são as que mais geram violência.

Minha hipótese é que tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo. Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena. As pessoas se profissionalizam e agem racionalmente. A redução do conflito faz parte de um mercado que pode ser planejado, dar mais lucro e menos custos. É um fenômeno que vem acontecendo, com gangues e grupos cada vez mais influentes politica e economicamente em um mundo em crise, em que o mercado ilegal tem cada vez mais força.

Olhando nesse cenário macro, de tendência de queda há cerca de cinco anos, dá para se dizer que há um hiato pelo menos nos conflitos entre as facções maiores, como PCC e Comando Vermelho?

PCC e Comando Vermelho são as duas facções nacionais do País. Principalmente depois de 2010, o PCC começa essa expansão a partir quando chega nas fronteiras, acessa os mercados de produção e distribuição de drogas, e começa a vender para outros lugares. Isso ganha força com a organização reproduzindo o modelo de gangues com base prisional em outros Estados, diante de um crescimento sempre rápido de presos. Mas quando chega uma gangue, você tem resistência local, as próprias regras do PCC causam desconforto. Criam-se gangues locais como alternativa, com outras regras, e há uma transformação da cena criminal. Além de ter o Comando Vermelho, que rivaliza a nível nacional.

Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo

Bruno Paes Manso

Em alguns locais essas rivalidades são mais ou menos violentas. No Rio Grande do Norte, tem o Sindicato do Crime, que em algum momento bateu de frente com o PCC. Outras gangues fazem alianças, mas ao mesmo tempo se contrapõem ao Comando Vermelho. Há os Guardiões do Estado no Ceará, que no começo fazem pacto com o PCC, mas, ao mesmo tempo, atuam em rivalidade com o Comando Vermelho. Uma série de gangues despontam no Brasil inteiro, se associando naturalmente com uma outra gangue e produzindo contextos próprios nos seus Estados.

Ao mesmo tempo que o PCC consegue se transformar, em São Paulo, numa agência reguladora do mercado do crime, criando regras e possibilidades de o crime despontar e lucrar. Nos outros Estados, como cada um tem sua própria história, cada um reage de alguma forma a essa transformação. Ao mesmo tempo, reproduzem esse modelo de gangue de base prisional, com rivalidades que, dependendo do contexto, têm uma dinâmica própria. No Amazonas, por exemplo, despontou a Família do Norte, que consegue ter acesso aos mercados peruanos e colombianos, que não eram tão fortes no Sudeste, que dependiam mais da Bolívia e do Paraguai.

Qual a grande regra da narcoeconomia? Na economia ilegal e bilionária do narcotráfico, se você tem dois concorrentes do mesmo tamanho disputando o mercado, como é um mercado ilegal, essa disputa vai ser feita pela violência, porque você não tem uma mediador. Então o mais forte acaba tentando se impor sobre o mais fraco, o que gera ciclos de violência. Mas quando você tem um grupo, como o PCC em São Paulo, que consegue virar um “governo” e estabelecer regras, mediar os conflitos e virar essa agência reguladora do mercado, a violência tende a diminuir. Isso se reproduz por outros Estados.

No médio prazo, essa visão diplomática do PCC, de que conflito é custo e imprevisibilidade, vai se assentando, principalmente depois de 2017, quando houve aquele pico de violência. Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes. Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.

A redução da taxa de homicídios foi de 2,4% no País e 4,5% na região Nordeste, que puxou a queda. A região continua com a maior taxa de homicídios do País, com a presença de facções como o Sindicato do Crime, mas por que houve uma queda dessa dimensão por lá? Mesmo facções menores se ‘profissionalizaram’?

Há uma experiência maior e uma vivência de mais tempos lidando com a política pública de lá. Homicídios produzem prisão, conflitos e imprevisibilidade. Esse maior tempo de vivência permite às facções fazerem o cálculo do que compensa e do que não se compensa. Há gangues se fortalecendo e conseguindo se estabelecer e se posicionar. São mercados que estão mais estáveis. No Maranhão, por exemplo, hoje o Bonde dos 40 domina a região metropolitana e a capital. Então não há mais uma gangue que queira avançar sobre esse domínio, que já está mais consolidado. Isso gera uma redução muito grande da violência.

Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento

Bruno Paes Manso

No Ceará, não. Antes, tinha os Guardiões do Estado em disputa com o Comando Vermelho. No começo de 2019, houve uma série de ataques por causa de problemas nos presídios. Isso gera uma transferência das lideranças para os presídios federais, o que faz com que eles fiquem incomunicáveis. Ao mesmo tempo, há uma repactuação no Ceará, que faz com que os homicídios caiam bastante em 2019. Quando começa a voltar ao normal, as facções percebem que esse isolamento dificulta a tomada de decisão. Elas, então, começam a colocar vários “Sintonias” (alto escalão de facções) de rua para tomar decisões, sem depender mais de decisões de dentro dos presídios.

Isso muda a dinâmica do crime e leva inclusive a um racha dentro do Comando Vermelho, que vai gerar a Massa Carcerária, uma facção neutra que vai para fora e cria uma nova dinâmica de conflitos. Com essa nova gangue em disputa, o Ceará vê os homicídios explodirem em 2020, que é o único ano que rompeu a tendência de queda dos homicídios no País nos últimos cinco anos. No ano seguinte esse cenário se assenta. Porque territórios já se definem, uma certa estabilidade no mercado se configura, e a polícia, atenta a esse quadro, passa a punir os casos violentos.

Em resumo, para todo mundo que está no crime, que está ganhando dinheiro com drogas, é sempre mais interessante não ter conflito com o grupo rival, ter seu próprio espaço configurado e consolidado, para ganhar dinheiro com menos custos. Quando surge algo novo, normalmente a partir desse desequilíbrio há, muitas vezes, um efeito de conflitos, que duram bastante tempo. Mas a tendência hoje diante de lucros bilionários é ter uma posição racional e profissional para ganhar mais dinheiro e ter menos custos. É o que a gente tem visto hoje.

Essa configuração de gangues com bases prisionais tornou a gestão do tráfico menos truculenta do que era nos anos 2000, no Rio ou em São Paulo, como se via. Ainda há muita barbárie, como vídeos de assassinatos gravados para representar poder, mas há também mais racionalidade. Quanto mais perdem “soldados” ou quanto mais balas precisam trocar, pior para as facções. Os grupos têm preferido a diplomacia, muito influenciados por essa filosofia de profissionalização que o PCC colocou no mercado. Uma nova forma de gestão que tende a ser mais profissional e mais próxima das máfias.

Quais são as principais hipóteses para ter havido alta de assassinatos nas regiões Sul e Centro-Oeste do País? As altas nessas regiões foram puxadas por Paraná e Mato Grosso, respectivamente. Nesses locais não houve estabilização das rivalidades entre facções no último ano?

É uma boa questão para os pesquisadores desses Estados e para os jornalistas. Muitas vezes, quando a gente vê essas variações, há uma boa pergunta para se fazer: o que está acontecendo por lá? Tudo isso que relatei do Ceará, por exemplo, só foi possível saber tempos depois, a partir de pesquisadores que apuram de perto. No caso do Mato Grosso e do Paraná, são regiões de fronteira, que costumam ser relativamente instáveis.

No próprio Paraná, há várias questões, que vêm desde 2016, com o assassinato do Jorge Rafaat (ele era considerado o ‘Rei da Fronteira’ na época. Para pesquisadores, a morte dele aumentou o poder do PCC na região). São áreas em permanentes disputas. Como é um negócio ilegal, há muita dificuldade para saber o que está acontecendo. Mas não deixa de ser natural que aconteça aumento nessas regiões de fronteira, onde há uma tendência de instabilidade sempre muito intensa.

Paraná e Mato Grosso são Estados fronteiriços e estratégicos. Minha hipótese é que a dinâmica criminal tende a dar conta de explicar, porque normalmente essas variações de curto prazo, quando muita gente começa a matar, demonstram uma tática de controle territorial, com outro grupo reagindo. Normalmente, é um aspecto tático, com uma função instrumental.

A morte do Rafaat sempre é apontada como um ponto de virada por pesquisadores, inclusive para a migração de mais disputas do narcotráfico para a região Norte. O Anuário demonstrou que, hoje, a taxa de homicídios nos municípios da Amazônia Legal é cerca de 50% maior do que a do restante do País. Ao mesmo tempo, a da região Norte é a segunda maior do país, quase empatada com a do Nordeste. Por que a região segue tão violenta?

Nos anos 2000, tanto no Nordeste quanto no Norte, os Estados eram menos violentos. São Paulo e Rio de Janeiro se destacavam, além de outros com dinâmicas próprias, como Pernambuco e Espírito Santo. Apesar de ter pistolagem e crimes de mando, as taxas de homicídio no Norte e Nordeste sempre foram mais baixas do que as do Sudeste. Isso começou a mudar a partir dos anos 2010, principalmente no Nordeste, com as gangues chegando.

No caso do Norte, o que começou a acontecer, além dessa mudança da morte do Rafaat e da busca por outras fontes de droga na Amazônia, no Peru e na Colômbia, foi um capital de giro do crime buscando novos negócios. Há hoje esse dinheiro milionário em dólar girando, de venda de drogas para a Europa e tudo mais, que antes não existia. O quilo da cocaína na Europa chegou a 80 mil dólares, enquanto em São Paulo era R$ 15 mil. Há uma multiplicação desse lucro da droga, e esse capital de giro precisa buscar novos investimentos.

O crime ambiental passa a fazer parte dessa cartela de opções. Até pelas rotas e infraestrutura serem comuns, os aviões, os portos, os aeroportos clandestinos. Há uma estrutura em comum, além do ouro para lavagem de dinheiro, que passa a dialogar. Então esse dinheiro entra em maior quantidade e investidores têm negócios que passam a fazer parte desse capital criminal.

O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos

Bruno Paes Manso

Há um novo mercado e um novo perfil de mercado chegando lá, o que gera resistência e rivalidades, além de um desequilíbrio. É uma nova cena de mercado, em decorrência desse capital que entra e se mistura com o crime ambiental, que se fortalece com os quatro anos do governo Jair Bolsonaro e que vira uma outra opção mais palpável. O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos.

Os dados mostram que o perfil dos assassinatos se mantém, com homens jovens no alvo, principalmente negros. O que essa manutenção diz sobre as medidas que vêm sendo tomadas na área de segurança pública no Brasil? E o que poderia ser o foco do governo federal e dos Estados a partir desse cenário trazido pelo Anuário?

A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto relevante de qualquer política de segurança pública. Quando existem muitos homicídios em uma bairro, numa cidade ou em uma localidade, normalmente existe um tirano armado tentando impor um silêncio para a população para ganhar dinheiro. Há uma tirania estabelecida nesses lugares.

Onde há muita violência, há retrocesso político e uma situação muito complicada para as pessoas que vivem sujeitas a essa realidade. Para fortalecer a democracia, é preciso fragilizar esses tiranos armados e essas pessoas que matam para tentar produzir autoridade. Focar na redução da violência é estratégico. Mesmo que isso não acabe com a venda de drogas, pelo menos reduz os piores do comércio de drogas, que são as violências nos bairros onde essas vendas são feitas.

Além disso, é importante começar a entender melhor essa indústria do crime, porque hoje cada vez mais dinheiro está entrando na economia formal, há contas em offshores, presença de laranjas e diversas estratégias para lavar esse dinheiro, e tudo isso precisa ser compreendido de forma mais inteligente. É preciso ter uma posição mais estratégica a partir da compreensão do funcionamento dessa indústria, dos aspectos financeiros, de lavagem de dinheiro. Assim, em vez de ficar em ações que geram conflitos com a Polícia Militar, pode-se ter ações mais estratégicas.

O ministro Flávio Dino afirmou que vai anunciar uma série de medidas na área da segurança pública, e há expectativa de o governo assinar finalmente o decreto das armas. Qual a importância de rever a regulação das armas neste momento, após o crescimento expressivo do número de CACs?

É um passo importante. As armas fragilizaram as polícias, colocaram problemas sérios para as polícias, que passaram a ter de ligar com pessoas armadas nas ruas, com um discurso anti-polícia, o que é até irônico. Essa regulamentação volta a valorizar um discurso de legitimidade das forças policiais, além de se coibir e reduzir o mercado paralelo que estava pior do que nunca.

Muitos se aproveitaram desse descontrole para usar os CACs para vender armas para o crime organizado, vimos diversas ocorrências nesse sentido. O preço da arma diminuiu, caiu bruscamente no mercado paralelo, por causa desse ingresso de armas. Então, regulamentar essa cena é um passo fundamental. E um outro é focar nos hotspots (pontos mais incidentes) de homicídio e priorizar o combate a esse crime.

O Brasil registrou queda de homicídios pelo segundo ano consecutivo em 2022, segundo dados divulgados nesta quinta-feira, 20, no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Com 47.508 casos, o País chega ao segundo menor número da série histórica, iniciada em 2011. A taxa de homicídios caiu para 23,4 casos a cada 100 mil habitantes, redução de 2,4% ante a do ano anterior (24).

A queda consolida uma tendência observada desde 2018, logo após o pico de assassinatos por conta de conflitos entre facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) – de lá para cá, só houve aumento em 2020. Ainda assim, os casos seguem em patamar elevado, com 130 ocorrências por dia. Ao menos cinco pessoas foram assassinadas por hora no último ano.

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso afirma que o principal fator que explica o retrato atual é a dinâmica entre as facções. “Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo”, diz ao Estadão. “Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena.”

Paes Manso diz que esse cenário foi influenciado pelo que ele chama de uma “visão diplomática” do PCC, que teria buscado evitar conflitos nos últimos anos para evitar custos e imprevisibilidade. Outras facções tomaram medidas parecidas. “Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes”, afirma. “Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.”

Polícia Militar cumpre mandados contra suspeitos de homicídios em Maceió, capital do Alagoas Foto: Polícia Militar

O pesquisador reforça que, ainda com o cenário de desaceleração dos homicídios, é importante priorizar a redução de assassinatos ainda mais. Além de focar na adoção de políticas públicas nos Estados mais violentos, como Amapá e Bahia. “A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto mais relevante de qualquer política de segurança pública”, diz. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Bruno Paes Manso:

Como avalia a nova queda de assassinatos no País? Quais fatores, ao seu ver, explicam o cenário atual?

Quando se olha para os últimos cinco anos, há uma tendência de queda, que se manteve desde 2018. A queda em 2022 não foi tão grande na comparação com outros anos, mas passamos pela pandemia de covid-19, pelo aumento de armas em circulação e tudo mais. Então a expectativa era ver o que aconteceria, principalmente com esse aumento de armas, e a gente vê esse registro de cinco anos de queda. É óbvio que as variações de homicídios têm aspectos multicausais, mas uma coisa que tenho batido na tecla há muito tempo é que essas variações estaduais muito bruscas muitas vezes estão associadas às dinâmicas dos mercados criminais.

Mercados mais conflitivos e de rivalidades que se acirram tendem a produzir variações muito intensas e rápidas de um ano para outro. Uma coisa é a gente pensar em reduções de longo prazo, em 50 ou 100 anos, por causa de uma mudança estrutural na educação, na pobreza ou na desigualdade de renda, por exemplo. São aspectos que a gente tenta acompanhar no médio e longo prazo. Só que essas variações de curto prazo, de um ano para outro, muitas vezes são termômetros de dinâmicas criminais, que são as que mais geram violência.

Minha hipótese é que tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo. Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena. As pessoas se profissionalizam e agem racionalmente. A redução do conflito faz parte de um mercado que pode ser planejado, dar mais lucro e menos custos. É um fenômeno que vem acontecendo, com gangues e grupos cada vez mais influentes politica e economicamente em um mundo em crise, em que o mercado ilegal tem cada vez mais força.

Olhando nesse cenário macro, de tendência de queda há cerca de cinco anos, dá para se dizer que há um hiato pelo menos nos conflitos entre as facções maiores, como PCC e Comando Vermelho?

PCC e Comando Vermelho são as duas facções nacionais do País. Principalmente depois de 2010, o PCC começa essa expansão a partir quando chega nas fronteiras, acessa os mercados de produção e distribuição de drogas, e começa a vender para outros lugares. Isso ganha força com a organização reproduzindo o modelo de gangues com base prisional em outros Estados, diante de um crescimento sempre rápido de presos. Mas quando chega uma gangue, você tem resistência local, as próprias regras do PCC causam desconforto. Criam-se gangues locais como alternativa, com outras regras, e há uma transformação da cena criminal. Além de ter o Comando Vermelho, que rivaliza a nível nacional.

Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo

Bruno Paes Manso

Em alguns locais essas rivalidades são mais ou menos violentas. No Rio Grande do Norte, tem o Sindicato do Crime, que em algum momento bateu de frente com o PCC. Outras gangues fazem alianças, mas ao mesmo tempo se contrapõem ao Comando Vermelho. Há os Guardiões do Estado no Ceará, que no começo fazem pacto com o PCC, mas, ao mesmo tempo, atuam em rivalidade com o Comando Vermelho. Uma série de gangues despontam no Brasil inteiro, se associando naturalmente com uma outra gangue e produzindo contextos próprios nos seus Estados.

Ao mesmo tempo que o PCC consegue se transformar, em São Paulo, numa agência reguladora do mercado do crime, criando regras e possibilidades de o crime despontar e lucrar. Nos outros Estados, como cada um tem sua própria história, cada um reage de alguma forma a essa transformação. Ao mesmo tempo, reproduzem esse modelo de gangue de base prisional, com rivalidades que, dependendo do contexto, têm uma dinâmica própria. No Amazonas, por exemplo, despontou a Família do Norte, que consegue ter acesso aos mercados peruanos e colombianos, que não eram tão fortes no Sudeste, que dependiam mais da Bolívia e do Paraguai.

Qual a grande regra da narcoeconomia? Na economia ilegal e bilionária do narcotráfico, se você tem dois concorrentes do mesmo tamanho disputando o mercado, como é um mercado ilegal, essa disputa vai ser feita pela violência, porque você não tem uma mediador. Então o mais forte acaba tentando se impor sobre o mais fraco, o que gera ciclos de violência. Mas quando você tem um grupo, como o PCC em São Paulo, que consegue virar um “governo” e estabelecer regras, mediar os conflitos e virar essa agência reguladora do mercado, a violência tende a diminuir. Isso se reproduz por outros Estados.

No médio prazo, essa visão diplomática do PCC, de que conflito é custo e imprevisibilidade, vai se assentando, principalmente depois de 2017, quando houve aquele pico de violência. Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes. Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.

A redução da taxa de homicídios foi de 2,4% no País e 4,5% na região Nordeste, que puxou a queda. A região continua com a maior taxa de homicídios do País, com a presença de facções como o Sindicato do Crime, mas por que houve uma queda dessa dimensão por lá? Mesmo facções menores se ‘profissionalizaram’?

Há uma experiência maior e uma vivência de mais tempos lidando com a política pública de lá. Homicídios produzem prisão, conflitos e imprevisibilidade. Esse maior tempo de vivência permite às facções fazerem o cálculo do que compensa e do que não se compensa. Há gangues se fortalecendo e conseguindo se estabelecer e se posicionar. São mercados que estão mais estáveis. No Maranhão, por exemplo, hoje o Bonde dos 40 domina a região metropolitana e a capital. Então não há mais uma gangue que queira avançar sobre esse domínio, que já está mais consolidado. Isso gera uma redução muito grande da violência.

Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento

Bruno Paes Manso

No Ceará, não. Antes, tinha os Guardiões do Estado em disputa com o Comando Vermelho. No começo de 2019, houve uma série de ataques por causa de problemas nos presídios. Isso gera uma transferência das lideranças para os presídios federais, o que faz com que eles fiquem incomunicáveis. Ao mesmo tempo, há uma repactuação no Ceará, que faz com que os homicídios caiam bastante em 2019. Quando começa a voltar ao normal, as facções percebem que esse isolamento dificulta a tomada de decisão. Elas, então, começam a colocar vários “Sintonias” (alto escalão de facções) de rua para tomar decisões, sem depender mais de decisões de dentro dos presídios.

Isso muda a dinâmica do crime e leva inclusive a um racha dentro do Comando Vermelho, que vai gerar a Massa Carcerária, uma facção neutra que vai para fora e cria uma nova dinâmica de conflitos. Com essa nova gangue em disputa, o Ceará vê os homicídios explodirem em 2020, que é o único ano que rompeu a tendência de queda dos homicídios no País nos últimos cinco anos. No ano seguinte esse cenário se assenta. Porque territórios já se definem, uma certa estabilidade no mercado se configura, e a polícia, atenta a esse quadro, passa a punir os casos violentos.

Em resumo, para todo mundo que está no crime, que está ganhando dinheiro com drogas, é sempre mais interessante não ter conflito com o grupo rival, ter seu próprio espaço configurado e consolidado, para ganhar dinheiro com menos custos. Quando surge algo novo, normalmente a partir desse desequilíbrio há, muitas vezes, um efeito de conflitos, que duram bastante tempo. Mas a tendência hoje diante de lucros bilionários é ter uma posição racional e profissional para ganhar mais dinheiro e ter menos custos. É o que a gente tem visto hoje.

Essa configuração de gangues com bases prisionais tornou a gestão do tráfico menos truculenta do que era nos anos 2000, no Rio ou em São Paulo, como se via. Ainda há muita barbárie, como vídeos de assassinatos gravados para representar poder, mas há também mais racionalidade. Quanto mais perdem “soldados” ou quanto mais balas precisam trocar, pior para as facções. Os grupos têm preferido a diplomacia, muito influenciados por essa filosofia de profissionalização que o PCC colocou no mercado. Uma nova forma de gestão que tende a ser mais profissional e mais próxima das máfias.

Quais são as principais hipóteses para ter havido alta de assassinatos nas regiões Sul e Centro-Oeste do País? As altas nessas regiões foram puxadas por Paraná e Mato Grosso, respectivamente. Nesses locais não houve estabilização das rivalidades entre facções no último ano?

É uma boa questão para os pesquisadores desses Estados e para os jornalistas. Muitas vezes, quando a gente vê essas variações, há uma boa pergunta para se fazer: o que está acontecendo por lá? Tudo isso que relatei do Ceará, por exemplo, só foi possível saber tempos depois, a partir de pesquisadores que apuram de perto. No caso do Mato Grosso e do Paraná, são regiões de fronteira, que costumam ser relativamente instáveis.

No próprio Paraná, há várias questões, que vêm desde 2016, com o assassinato do Jorge Rafaat (ele era considerado o ‘Rei da Fronteira’ na época. Para pesquisadores, a morte dele aumentou o poder do PCC na região). São áreas em permanentes disputas. Como é um negócio ilegal, há muita dificuldade para saber o que está acontecendo. Mas não deixa de ser natural que aconteça aumento nessas regiões de fronteira, onde há uma tendência de instabilidade sempre muito intensa.

Paraná e Mato Grosso são Estados fronteiriços e estratégicos. Minha hipótese é que a dinâmica criminal tende a dar conta de explicar, porque normalmente essas variações de curto prazo, quando muita gente começa a matar, demonstram uma tática de controle territorial, com outro grupo reagindo. Normalmente, é um aspecto tático, com uma função instrumental.

A morte do Rafaat sempre é apontada como um ponto de virada por pesquisadores, inclusive para a migração de mais disputas do narcotráfico para a região Norte. O Anuário demonstrou que, hoje, a taxa de homicídios nos municípios da Amazônia Legal é cerca de 50% maior do que a do restante do País. Ao mesmo tempo, a da região Norte é a segunda maior do país, quase empatada com a do Nordeste. Por que a região segue tão violenta?

Nos anos 2000, tanto no Nordeste quanto no Norte, os Estados eram menos violentos. São Paulo e Rio de Janeiro se destacavam, além de outros com dinâmicas próprias, como Pernambuco e Espírito Santo. Apesar de ter pistolagem e crimes de mando, as taxas de homicídio no Norte e Nordeste sempre foram mais baixas do que as do Sudeste. Isso começou a mudar a partir dos anos 2010, principalmente no Nordeste, com as gangues chegando.

No caso do Norte, o que começou a acontecer, além dessa mudança da morte do Rafaat e da busca por outras fontes de droga na Amazônia, no Peru e na Colômbia, foi um capital de giro do crime buscando novos negócios. Há hoje esse dinheiro milionário em dólar girando, de venda de drogas para a Europa e tudo mais, que antes não existia. O quilo da cocaína na Europa chegou a 80 mil dólares, enquanto em São Paulo era R$ 15 mil. Há uma multiplicação desse lucro da droga, e esse capital de giro precisa buscar novos investimentos.

O crime ambiental passa a fazer parte dessa cartela de opções. Até pelas rotas e infraestrutura serem comuns, os aviões, os portos, os aeroportos clandestinos. Há uma estrutura em comum, além do ouro para lavagem de dinheiro, que passa a dialogar. Então esse dinheiro entra em maior quantidade e investidores têm negócios que passam a fazer parte desse capital criminal.

O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos

Bruno Paes Manso

Há um novo mercado e um novo perfil de mercado chegando lá, o que gera resistência e rivalidades, além de um desequilíbrio. É uma nova cena de mercado, em decorrência desse capital que entra e se mistura com o crime ambiental, que se fortalece com os quatro anos do governo Jair Bolsonaro e que vira uma outra opção mais palpável. O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos.

Os dados mostram que o perfil dos assassinatos se mantém, com homens jovens no alvo, principalmente negros. O que essa manutenção diz sobre as medidas que vêm sendo tomadas na área de segurança pública no Brasil? E o que poderia ser o foco do governo federal e dos Estados a partir desse cenário trazido pelo Anuário?

A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto relevante de qualquer política de segurança pública. Quando existem muitos homicídios em uma bairro, numa cidade ou em uma localidade, normalmente existe um tirano armado tentando impor um silêncio para a população para ganhar dinheiro. Há uma tirania estabelecida nesses lugares.

Onde há muita violência, há retrocesso político e uma situação muito complicada para as pessoas que vivem sujeitas a essa realidade. Para fortalecer a democracia, é preciso fragilizar esses tiranos armados e essas pessoas que matam para tentar produzir autoridade. Focar na redução da violência é estratégico. Mesmo que isso não acabe com a venda de drogas, pelo menos reduz os piores do comércio de drogas, que são as violências nos bairros onde essas vendas são feitas.

Além disso, é importante começar a entender melhor essa indústria do crime, porque hoje cada vez mais dinheiro está entrando na economia formal, há contas em offshores, presença de laranjas e diversas estratégias para lavar esse dinheiro, e tudo isso precisa ser compreendido de forma mais inteligente. É preciso ter uma posição mais estratégica a partir da compreensão do funcionamento dessa indústria, dos aspectos financeiros, de lavagem de dinheiro. Assim, em vez de ficar em ações que geram conflitos com a Polícia Militar, pode-se ter ações mais estratégicas.

O ministro Flávio Dino afirmou que vai anunciar uma série de medidas na área da segurança pública, e há expectativa de o governo assinar finalmente o decreto das armas. Qual a importância de rever a regulação das armas neste momento, após o crescimento expressivo do número de CACs?

É um passo importante. As armas fragilizaram as polícias, colocaram problemas sérios para as polícias, que passaram a ter de ligar com pessoas armadas nas ruas, com um discurso anti-polícia, o que é até irônico. Essa regulamentação volta a valorizar um discurso de legitimidade das forças policiais, além de se coibir e reduzir o mercado paralelo que estava pior do que nunca.

Muitos se aproveitaram desse descontrole para usar os CACs para vender armas para o crime organizado, vimos diversas ocorrências nesse sentido. O preço da arma diminuiu, caiu bruscamente no mercado paralelo, por causa desse ingresso de armas. Então, regulamentar essa cena é um passo fundamental. E um outro é focar nos hotspots (pontos mais incidentes) de homicídio e priorizar o combate a esse crime.

O Brasil registrou queda de homicídios pelo segundo ano consecutivo em 2022, segundo dados divulgados nesta quinta-feira, 20, no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Com 47.508 casos, o País chega ao segundo menor número da série histórica, iniciada em 2011. A taxa de homicídios caiu para 23,4 casos a cada 100 mil habitantes, redução de 2,4% ante a do ano anterior (24).

A queda consolida uma tendência observada desde 2018, logo após o pico de assassinatos por conta de conflitos entre facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) – de lá para cá, só houve aumento em 2020. Ainda assim, os casos seguem em patamar elevado, com 130 ocorrências por dia. Ao menos cinco pessoas foram assassinadas por hora no último ano.

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso afirma que o principal fator que explica o retrato atual é a dinâmica entre as facções. “Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo”, diz ao Estadão. “Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena.”

Paes Manso diz que esse cenário foi influenciado pelo que ele chama de uma “visão diplomática” do PCC, que teria buscado evitar conflitos nos últimos anos para evitar custos e imprevisibilidade. Outras facções tomaram medidas parecidas. “Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes”, afirma. “Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.”

Polícia Militar cumpre mandados contra suspeitos de homicídios em Maceió, capital do Alagoas Foto: Polícia Militar

O pesquisador reforça que, ainda com o cenário de desaceleração dos homicídios, é importante priorizar a redução de assassinatos ainda mais. Além de focar na adoção de políticas públicas nos Estados mais violentos, como Amapá e Bahia. “A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto mais relevante de qualquer política de segurança pública”, diz. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Bruno Paes Manso:

Como avalia a nova queda de assassinatos no País? Quais fatores, ao seu ver, explicam o cenário atual?

Quando se olha para os últimos cinco anos, há uma tendência de queda, que se manteve desde 2018. A queda em 2022 não foi tão grande na comparação com outros anos, mas passamos pela pandemia de covid-19, pelo aumento de armas em circulação e tudo mais. Então a expectativa era ver o que aconteceria, principalmente com esse aumento de armas, e a gente vê esse registro de cinco anos de queda. É óbvio que as variações de homicídios têm aspectos multicausais, mas uma coisa que tenho batido na tecla há muito tempo é que essas variações estaduais muito bruscas muitas vezes estão associadas às dinâmicas dos mercados criminais.

Mercados mais conflitivos e de rivalidades que se acirram tendem a produzir variações muito intensas e rápidas de um ano para outro. Uma coisa é a gente pensar em reduções de longo prazo, em 50 ou 100 anos, por causa de uma mudança estrutural na educação, na pobreza ou na desigualdade de renda, por exemplo. São aspectos que a gente tenta acompanhar no médio e longo prazo. Só que essas variações de curto prazo, de um ano para outro, muitas vezes são termômetros de dinâmicas criminais, que são as que mais geram violência.

Minha hipótese é que tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo. Com esse papel de player num mercado bilionário, há uma profissionalização da cena. As pessoas se profissionalizam e agem racionalmente. A redução do conflito faz parte de um mercado que pode ser planejado, dar mais lucro e menos custos. É um fenômeno que vem acontecendo, com gangues e grupos cada vez mais influentes politica e economicamente em um mundo em crise, em que o mercado ilegal tem cada vez mais força.

Olhando nesse cenário macro, de tendência de queda há cerca de cinco anos, dá para se dizer que há um hiato pelo menos nos conflitos entre as facções maiores, como PCC e Comando Vermelho?

PCC e Comando Vermelho são as duas facções nacionais do País. Principalmente depois de 2010, o PCC começa essa expansão a partir quando chega nas fronteiras, acessa os mercados de produção e distribuição de drogas, e começa a vender para outros lugares. Isso ganha força com a organização reproduzindo o modelo de gangues com base prisional em outros Estados, diante de um crescimento sempre rápido de presos. Mas quando chega uma gangue, você tem resistência local, as próprias regras do PCC causam desconforto. Criam-se gangues locais como alternativa, com outras regras, e há uma transformação da cena criminal. Além de ter o Comando Vermelho, que rivaliza a nível nacional.

Tem havido uma transformação grande no mercado do crime, um mercado cada vez mais lucrativo e bilionário, porque o Brasil se tornou um grande corredor de drogas do mundo

Bruno Paes Manso

Em alguns locais essas rivalidades são mais ou menos violentas. No Rio Grande do Norte, tem o Sindicato do Crime, que em algum momento bateu de frente com o PCC. Outras gangues fazem alianças, mas ao mesmo tempo se contrapõem ao Comando Vermelho. Há os Guardiões do Estado no Ceará, que no começo fazem pacto com o PCC, mas, ao mesmo tempo, atuam em rivalidade com o Comando Vermelho. Uma série de gangues despontam no Brasil inteiro, se associando naturalmente com uma outra gangue e produzindo contextos próprios nos seus Estados.

Ao mesmo tempo que o PCC consegue se transformar, em São Paulo, numa agência reguladora do mercado do crime, criando regras e possibilidades de o crime despontar e lucrar. Nos outros Estados, como cada um tem sua própria história, cada um reage de alguma forma a essa transformação. Ao mesmo tempo, reproduzem esse modelo de gangue de base prisional, com rivalidades que, dependendo do contexto, têm uma dinâmica própria. No Amazonas, por exemplo, despontou a Família do Norte, que consegue ter acesso aos mercados peruanos e colombianos, que não eram tão fortes no Sudeste, que dependiam mais da Bolívia e do Paraguai.

Qual a grande regra da narcoeconomia? Na economia ilegal e bilionária do narcotráfico, se você tem dois concorrentes do mesmo tamanho disputando o mercado, como é um mercado ilegal, essa disputa vai ser feita pela violência, porque você não tem uma mediador. Então o mais forte acaba tentando se impor sobre o mais fraco, o que gera ciclos de violência. Mas quando você tem um grupo, como o PCC em São Paulo, que consegue virar um “governo” e estabelecer regras, mediar os conflitos e virar essa agência reguladora do mercado, a violência tende a diminuir. Isso se reproduz por outros Estados.

No médio prazo, essa visão diplomática do PCC, de que conflito é custo e imprevisibilidade, vai se assentando, principalmente depois de 2017, quando houve aquele pico de violência. Há um processo de profissionalização dessa cena criminal que a gente não via acontecer antes. Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento.

A redução da taxa de homicídios foi de 2,4% no País e 4,5% na região Nordeste, que puxou a queda. A região continua com a maior taxa de homicídios do País, com a presença de facções como o Sindicato do Crime, mas por que houve uma queda dessa dimensão por lá? Mesmo facções menores se ‘profissionalizaram’?

Há uma experiência maior e uma vivência de mais tempos lidando com a política pública de lá. Homicídios produzem prisão, conflitos e imprevisibilidade. Esse maior tempo de vivência permite às facções fazerem o cálculo do que compensa e do que não se compensa. Há gangues se fortalecendo e conseguindo se estabelecer e se posicionar. São mercados que estão mais estáveis. No Maranhão, por exemplo, hoje o Bonde dos 40 domina a região metropolitana e a capital. Então não há mais uma gangue que queira avançar sobre esse domínio, que já está mais consolidado. Isso gera uma redução muito grande da violência.

Não há uma diminuição do crime. O mercado da droga está mais forte do que nunca, mas se profissionalizou e, ao mesmo tempo, está menos violento

Bruno Paes Manso

No Ceará, não. Antes, tinha os Guardiões do Estado em disputa com o Comando Vermelho. No começo de 2019, houve uma série de ataques por causa de problemas nos presídios. Isso gera uma transferência das lideranças para os presídios federais, o que faz com que eles fiquem incomunicáveis. Ao mesmo tempo, há uma repactuação no Ceará, que faz com que os homicídios caiam bastante em 2019. Quando começa a voltar ao normal, as facções percebem que esse isolamento dificulta a tomada de decisão. Elas, então, começam a colocar vários “Sintonias” (alto escalão de facções) de rua para tomar decisões, sem depender mais de decisões de dentro dos presídios.

Isso muda a dinâmica do crime e leva inclusive a um racha dentro do Comando Vermelho, que vai gerar a Massa Carcerária, uma facção neutra que vai para fora e cria uma nova dinâmica de conflitos. Com essa nova gangue em disputa, o Ceará vê os homicídios explodirem em 2020, que é o único ano que rompeu a tendência de queda dos homicídios no País nos últimos cinco anos. No ano seguinte esse cenário se assenta. Porque territórios já se definem, uma certa estabilidade no mercado se configura, e a polícia, atenta a esse quadro, passa a punir os casos violentos.

Em resumo, para todo mundo que está no crime, que está ganhando dinheiro com drogas, é sempre mais interessante não ter conflito com o grupo rival, ter seu próprio espaço configurado e consolidado, para ganhar dinheiro com menos custos. Quando surge algo novo, normalmente a partir desse desequilíbrio há, muitas vezes, um efeito de conflitos, que duram bastante tempo. Mas a tendência hoje diante de lucros bilionários é ter uma posição racional e profissional para ganhar mais dinheiro e ter menos custos. É o que a gente tem visto hoje.

Essa configuração de gangues com bases prisionais tornou a gestão do tráfico menos truculenta do que era nos anos 2000, no Rio ou em São Paulo, como se via. Ainda há muita barbárie, como vídeos de assassinatos gravados para representar poder, mas há também mais racionalidade. Quanto mais perdem “soldados” ou quanto mais balas precisam trocar, pior para as facções. Os grupos têm preferido a diplomacia, muito influenciados por essa filosofia de profissionalização que o PCC colocou no mercado. Uma nova forma de gestão que tende a ser mais profissional e mais próxima das máfias.

Quais são as principais hipóteses para ter havido alta de assassinatos nas regiões Sul e Centro-Oeste do País? As altas nessas regiões foram puxadas por Paraná e Mato Grosso, respectivamente. Nesses locais não houve estabilização das rivalidades entre facções no último ano?

É uma boa questão para os pesquisadores desses Estados e para os jornalistas. Muitas vezes, quando a gente vê essas variações, há uma boa pergunta para se fazer: o que está acontecendo por lá? Tudo isso que relatei do Ceará, por exemplo, só foi possível saber tempos depois, a partir de pesquisadores que apuram de perto. No caso do Mato Grosso e do Paraná, são regiões de fronteira, que costumam ser relativamente instáveis.

No próprio Paraná, há várias questões, que vêm desde 2016, com o assassinato do Jorge Rafaat (ele era considerado o ‘Rei da Fronteira’ na época. Para pesquisadores, a morte dele aumentou o poder do PCC na região). São áreas em permanentes disputas. Como é um negócio ilegal, há muita dificuldade para saber o que está acontecendo. Mas não deixa de ser natural que aconteça aumento nessas regiões de fronteira, onde há uma tendência de instabilidade sempre muito intensa.

Paraná e Mato Grosso são Estados fronteiriços e estratégicos. Minha hipótese é que a dinâmica criminal tende a dar conta de explicar, porque normalmente essas variações de curto prazo, quando muita gente começa a matar, demonstram uma tática de controle territorial, com outro grupo reagindo. Normalmente, é um aspecto tático, com uma função instrumental.

A morte do Rafaat sempre é apontada como um ponto de virada por pesquisadores, inclusive para a migração de mais disputas do narcotráfico para a região Norte. O Anuário demonstrou que, hoje, a taxa de homicídios nos municípios da Amazônia Legal é cerca de 50% maior do que a do restante do País. Ao mesmo tempo, a da região Norte é a segunda maior do país, quase empatada com a do Nordeste. Por que a região segue tão violenta?

Nos anos 2000, tanto no Nordeste quanto no Norte, os Estados eram menos violentos. São Paulo e Rio de Janeiro se destacavam, além de outros com dinâmicas próprias, como Pernambuco e Espírito Santo. Apesar de ter pistolagem e crimes de mando, as taxas de homicídio no Norte e Nordeste sempre foram mais baixas do que as do Sudeste. Isso começou a mudar a partir dos anos 2010, principalmente no Nordeste, com as gangues chegando.

No caso do Norte, o que começou a acontecer, além dessa mudança da morte do Rafaat e da busca por outras fontes de droga na Amazônia, no Peru e na Colômbia, foi um capital de giro do crime buscando novos negócios. Há hoje esse dinheiro milionário em dólar girando, de venda de drogas para a Europa e tudo mais, que antes não existia. O quilo da cocaína na Europa chegou a 80 mil dólares, enquanto em São Paulo era R$ 15 mil. Há uma multiplicação desse lucro da droga, e esse capital de giro precisa buscar novos investimentos.

O crime ambiental passa a fazer parte dessa cartela de opções. Até pelas rotas e infraestrutura serem comuns, os aviões, os portos, os aeroportos clandestinos. Há uma estrutura em comum, além do ouro para lavagem de dinheiro, que passa a dialogar. Então esse dinheiro entra em maior quantidade e investidores têm negócios que passam a fazer parte desse capital criminal.

O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos

Bruno Paes Manso

Há um novo mercado e um novo perfil de mercado chegando lá, o que gera resistência e rivalidades, além de um desequilíbrio. É uma nova cena de mercado, em decorrência desse capital que entra e se mistura com o crime ambiental, que se fortalece com os quatro anos do governo Jair Bolsonaro e que vira uma outra opção mais palpável. O Norte virou palco de um tipo de violência diferente da pistolagem e da violência ligada à terra, que foram as que sempre marcaram a região. Passou-se a ter uma violência mais parecida com a que existe nos grandes centros urbanos.

Os dados mostram que o perfil dos assassinatos se mantém, com homens jovens no alvo, principalmente negros. O que essa manutenção diz sobre as medidas que vêm sendo tomadas na área de segurança pública no Brasil? E o que poderia ser o foco do governo federal e dos Estados a partir desse cenário trazido pelo Anuário?

A redução de homicídios continua sendo o principal desafio e o aspecto relevante de qualquer política de segurança pública. Quando existem muitos homicídios em uma bairro, numa cidade ou em uma localidade, normalmente existe um tirano armado tentando impor um silêncio para a população para ganhar dinheiro. Há uma tirania estabelecida nesses lugares.

Onde há muita violência, há retrocesso político e uma situação muito complicada para as pessoas que vivem sujeitas a essa realidade. Para fortalecer a democracia, é preciso fragilizar esses tiranos armados e essas pessoas que matam para tentar produzir autoridade. Focar na redução da violência é estratégico. Mesmo que isso não acabe com a venda de drogas, pelo menos reduz os piores do comércio de drogas, que são as violências nos bairros onde essas vendas são feitas.

Além disso, é importante começar a entender melhor essa indústria do crime, porque hoje cada vez mais dinheiro está entrando na economia formal, há contas em offshores, presença de laranjas e diversas estratégias para lavar esse dinheiro, e tudo isso precisa ser compreendido de forma mais inteligente. É preciso ter uma posição mais estratégica a partir da compreensão do funcionamento dessa indústria, dos aspectos financeiros, de lavagem de dinheiro. Assim, em vez de ficar em ações que geram conflitos com a Polícia Militar, pode-se ter ações mais estratégicas.

O ministro Flávio Dino afirmou que vai anunciar uma série de medidas na área da segurança pública, e há expectativa de o governo assinar finalmente o decreto das armas. Qual a importância de rever a regulação das armas neste momento, após o crescimento expressivo do número de CACs?

É um passo importante. As armas fragilizaram as polícias, colocaram problemas sérios para as polícias, que passaram a ter de ligar com pessoas armadas nas ruas, com um discurso anti-polícia, o que é até irônico. Essa regulamentação volta a valorizar um discurso de legitimidade das forças policiais, além de se coibir e reduzir o mercado paralelo que estava pior do que nunca.

Muitos se aproveitaram desse descontrole para usar os CACs para vender armas para o crime organizado, vimos diversas ocorrências nesse sentido. O preço da arma diminuiu, caiu bruscamente no mercado paralelo, por causa desse ingresso de armas. Então, regulamentar essa cena é um passo fundamental. E um outro é focar nos hotspots (pontos mais incidentes) de homicídio e priorizar o combate a esse crime.

Tudo Sobre
Entrevista por Ítalo Lo Re

Repórter da editoria de Metrópole em São Paulo, escreve sobre segurança pública e cidades. É jornalista formado pela UFMG.

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