A juíza de Direito Flávia Martins de Carvalho estende a mão com sorriso e ar leve, quase descontraído, que faz evaporar a imagem tradicional de sisudez dos magistrados. “Excelência?”, ela também dispensa o tratamento.
“É fundamental desconstruir a imagem do juiz distante da sociedade. Temos de nos aproximar. E isso é possível por meio do aspecto humano. Não posso parecer uma deusa, que esteja no Olimpo, intocável. Sou humana. Choro. Os processos me tocam”, diz a juíza no Tribunal de Justiça de São Paulo e também juíza auxiliar do Supremo Tribunal Federal (STF).
O Estadão encontrou a juíza na Livraria da Vila, zona oeste de São Paulo, antes do lançamento da biografia que ela escreveu sobre a ativista Lélia Gonzalez. É um livro infantojuvenil, publicado pela Editora Mostarda, que faz parte de uma série com biografias de personalidades negras inspiradoras. “A literatura permite que me conecte com aquilo que é mais humano nas pessoas, não só o aspecto racional”, diz ela, de 49 anos.
Flávia representa uma ruptura no imaginário do Judiciário também por ser uma mulher negra. Como juíza auxiliar do STF, é uma das pouquíssimas pessoas negras na mais alta Corte brasileira – o órgão afirma não ter números exatos sobre o tema. Funcionários contam ao Estadão que ela é a única juíza negra na corte atualmente.
Em 132 anos de história, foram 171 ministros e ministras do Supremo. Desses, apenas três negros e três mulheres - nenhuma negra.
Flávia atua como juíza auxiliar do gabinete do ministro Luís Roberto Barroso, agora presidente da Corte. Na prática, é responsável pelas análises prévias dos processos em um trabalho de assessoria para a decisão final do ministro. “Sou consciente de quem sou, onde estou e da minha importância. Não a Flávia. Mas a mulher preta, pobre e periférica e que hoje é uma juíza que atua na maior Corte do País, o STF. Não sou ególatra. Mas é o que a juíza Flávia representa no contexto brasileiro”.
A pouca representatividade negra se repete no TJ-SP, onde Flávia atua como juíza de Direito. No tribunal estadual, são 21 magistrados pretos e negros entre de 2573 magistrados (0,82%).
Um STF mais parecido com o povo
A discussão sobre equidade racial no Judiciário ganhou força com a campanha de organizações da sociedade civil e do movimento negro, que pressiona o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a nomear uma mulher negra para a cadeira vaga após a aposentadoria da ministra Rosa Weber.
O nome da própria Flávia surge em algumas listas de “supremáveis” - a juíza acha graça do neologismo. “Eu me sinto lisonjeada, é um reconhecimento importante, mas não me lancei como candidata. A importância maior é o reconhecimento de que há muitas mulheres capacitadas”, afirma.
Entre outros nomes lembrados, estão Adriana Cruz, juíza federal titular da 5a Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro; Lívia Sant’anna Vaz, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia, além de Soraia Mendes, jurista, escritora e advogada com atuação e obras reconhecidas pelo Supremo e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Uma das listas foi elaborada pela Educafro, ONG voltada para o apoio educacional da comunidade afro-brasileira. “Temos mais de 50 juristas negras capacitadas para ocupar o cargo de ministra”, afirma o padre franciscano David Raimundo dos Santos, o Frei David, fundador e diretor-geral da entidade.
Ele acredita que, se tiver composição mais parecida com a do povo brasileiro, o STF pode conquistar mais credibilidade, representatividade e autoridade. Hoje, há 28% de mulheres negras na população. Frei David também afirma que o combate ao racismo está ligado à presença de pessoas negras em posições de poder.
Lula, porém, tem sinalizado que vai decepcionar as entidades. Os nomes mais cotados para a vaga não são negros nem mulheres. Um deles é o ministro da Justiça e Segurança, Flávio Dino. Outro dos candidatos mais lembrados é Jorge Messias, ministro da Advocacia-Geral da União (AGU).
Tênis apertado e apenas um livro na estante
A conversa com a magistrada deveria durar uma hora por causa da agenda atribulada, mas o tempo regulamentar ganhou vários minutos de acréscimo e de lembranças. Os livros que Flávia escreve são um acerto de contas com o passado.
Filha de um servidor público aposentado e de uma dona de casa que fazia bicos como babá, empregada doméstica e manicure para complementar a renda, a juíza conta que o orçamento era apertado. Tão justo que ela teve de usar um tênis apertado durante toda a última série em que estudou em uma escola particular, aos 10 anos. Não dava para trocar. Ela se lembra de ter tido apenas um livro, a história do cachorrinho Joly. Alguns trechos que ainda estão fresquinhos na sua memória afetiva.
Os livros se multiplicaram ao longo das carreiras que construiu. Aí, foram as estantes que ficaram apertadas. Além do curso de Comunicação Social e de Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Depois de uma sólida carreira em gestão empresarial na iniciativa privada, Flávia se tornou juíza aos 44 anos.
A luta contra as desigualdades de gênero, raça e classe social vem desde a época em que sofria bullying por causa do penteado com maria-chiquinha na infância. Quando tinha 6 anos, disse que queria ser branca. As motivações exatas se perderam na memória, mas estão relacionadas à vida escolar. A menina ficou com a impressão de que a cor das pessoas faz diferença.
Teve certeza disso em várias outras situações da vida adulta, até quando procurou emprego por um ano, sem sucesso, mesmo com um baita currículo embaixo do braço. Em sua visão, isso é reflexo do racismo estrutural.
A menina de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, se transformou em diretora de Promoção da Igualdade Racial da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entre 2020 e 2022. Também se tornou uma das principais vozes pela igualdade social e racial em espaços majoritariamente brancos e masculinos. É uma luta diária.
“Para ontem, a gente precisa reconhecer que o racismo existe na nossa sociedade. Para hoje, precisamos pensar políticas públicas e cumprir o ciclo de pensar, executar, checar e corrigir. Mas isso leva tempo. A educação antirracista é fundamental para começarmos outro modelo de sociedade”.
*Este conteúdo foi feito em parceria com a ONG Educafro