No centro da crise penitenciária causada pela fuga de dois criminosos do Presídio Federal de Mossoró (RN), a Polícia Penal Federal aguarda até hoje a regulamentação da carreira. Inserida na Constituição só em 2019, as forças penais têm origem ainda no 1º mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a fragilidade institucional do cargo, segundo especialistas, prejudica a gestão do sistema penitenciário.
Na semana passada, Rogério Mendonça e Deibson do Nascimento escaparam após escalar uma luminária na cela, acessar o teto e chegar à área externa do presídio, onde cortaram o alambrado de proteção. Os criminosos utilizaram barras de ferro que teriam sido retiradas da própria cela, como o Estadão mostrou, para alargar o buraco da lâmpada.
Essa foi a primeira fuga do sistema prisional federal, criado em 2006, e cerca de 600 agentes atuam nas operações na caçada aos detentos, que têm ligação com o Comando Vermelho.
“Desde a criação da Polícia Penal Federal em 2019, não foi resolvido o dilema de qual é o mandato das polícias penais. Se podem investigar, se são ou não são polícia judiciária, se podem fazer policiamento ostensivo para recapturar presos que fugiram”, diz Renato Sérgio Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Esse é o principal impacto, que enfraquece o mecanismo de gerenciamento e governança, e aí tem uma crise como a tivemos”, afirma.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública afastou na segunda-feira, 20, três servidores de cargos de direção da unidade de Mossoró. Os servidores afastados pela corregedoria da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) dirigiam as divisões de Inteligência, de Segurança e a Administrativa da Penitenciária Federal. A medida foi aplicada cautelarmente enquanto a investigação estiver em curso.
Segundo o Estadão apurou, não há indícios de participação desses servidores na facilitação da fuga, mas a pasta optou pelo afastamento para garantir que não haja qualquer interferência nas investigações. Na semana passada, o diretor geral do presídio já havia sido afastado do cargo.
Os investigadores não descartam a participação de agentes na fuga. Na semana passada, Lula sugeriu que houve conivência das forças policiais para facilitar a fuga dos criminosos que, ironizou o presidente, “só faltaram contratar uma escavadeira”.
Desde que o caso veio a público, a categoria refuta acusações de corrupção. “A credibilidade dos policiais penais ficará bem clara com o fim das investigações, no sentido de que não houve corrupção”, diz Gentil Nei, presidente da Federação Nacional dos Policiais Penais Federai. “Se comprovada a desídia (dos policiais), responderão por suas omissões, mas é um fato fácil de corrigir futuramente.”
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Segundo a Fenappf, o Brasil tem 1.497 policiais penais federais ativos. Relatório da Senappen de dezembro mostra que, no ano passado, o Brasil tinha 530 detentos no sistema federal. O Estadão solicitou informações atualizadas à Senappen sobre número de presos e de servidores, mas não obteve resposta. Após a fuga, segundo relatos, a penitenciária reforçou as equipes de plantão.
Em uma conta simples, o contingente significaria uma razão de quase três agentes para cada detento. A categoria argumenta, porém, que boa parte do quadro está envolvido em outras atividades, o que tornaria o cobertor mais curto do que parece.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, pediu à pasta da Gestão e da Inovação (MGI) a convocação imediata de 80 policiais penais federais que já obtiveram a aprovação em concurso.
“Há vários agentes em Pernambuco, na Força Penal Nacional. Mas temos tantos outros cruzando o Brasil, conduzindo presos para audiências e tribunais de júri, tantos outros na sede, no setor de licitação geral, no planejamento estratégico, fazendo uma gestão maior do sistema penal federal, e na Senappen. Se divide aquele número pela quantidade de presos, não é a realidade”, argumenta Nei.
Ataques do PCC estão por trás da criação da categoria
O surgimento da Polícia Penal Federal está, em parte, ligado a ações violentas do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo no início dos anos 2000. Desde então, a carreira foi recebendo atribuições além de cuidar da custódia dos presos, como participar de escoltas e efetuar atividades administrativas.
Em 2003, o governo federal decidiu criar cargos efetivos de Agente Penitenciário Federal na Carreira Policial Federal e citou como um dos motivos “refrear o ‘império’ de delinquentes. Naquele mesmo ano, o PCC havia promovido uma série de ataques em São Paulo, deixando mortos e feridos
Na exposição de motivos enviada à época ao Congresso pelo então ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, o governo indica a preocupação com episódios liderados por facções criminosas.
Segundo o documento, a criação do cargo era necessária “para assumir a segurança dos presídios federais, objetivando refrear o ‘império’ de delinquentes que há muito ultrapassaram os limites do absurdo, chegando ao cúmulo de transformar uma cidade inteira em refém de atos extremamente repugnantes, tais como o fechamento de bairros por ordem de tais indivíduos”.
Criado em 2006, o sistema federal recebeu nomes de peso do crime organizado, como o líder máximo do PCC, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola; e o líder do Comando Vermelho, Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar.
Apesar do alto grau de periculosidade dos detentos custodiados no sistema, só em 2019, por meio de uma emenda à Constituição, os policiais penais federais passaram a integrar o artigo sobre segurança pública na Carta Magna. Até o momento, porém, a regulamentação da atividade da categoria, que deveria ocorrer por projeto de lei, ainda não foi aprovada.
Em janeiro, o governo federal assinou acordo com os servidores penais federais, regulamentando parte dos pedidos da categoria, como a requisição de que próximos concursos coloquem formação de ensino superior como critério para ingressar na carreira. O governo atendeu a reivindicações relacionadas à remuneração.
Antes de chegar ao acordo, os policiais penais federais afirmaram que eram vítimas de tratamento diferenciado, na comparação com a Polícia Federal e a Rodoviária Federal. A expectativa é de que um projeto de lei de autoria do Executivo completando a regulamentação seja enviado até agosto.
No acordo feito com o MGI, a categoria obteve reajuste de mais de 60%: o salário no topo da carreira, que estava na casa dos R$ 13 mil, poderá chegar a R$20 mil.
Procurada pela reportagem, a pasta de Gestão e Inovação não se manifestou até a publicação da reportagem.
Mudança na estrutura de gestão
No ano passado, o governo Lula modificou a estrutura de governança do sistema penal brasileiro. Antes, o país tinha o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que foi transformado na Senappen. Com o aumento de status do órgão, foi ampliado o escopo das atividades desempenhadas e sua estrutura.
Além disso, uma nova diretoria foi criada para cuidar do tema Cidadania e Alternativas Penais. Apesar da mudança, o corpo técnico do órgão permaneceu o mesmo, com grande parte de servidores da carreira de policial penal federal. A reestruturação, na visão de especialistas, tornou mais complexa a execução das tarefas no sistema.
“Isso ampliou as tarefas da polícia penal e acaba por gerar ruídos na gestão da política”, explica Lima. “Quando a gente tem esse sistema que muda completamente o gerenciamento, vai criando ruídos, muitas vezes deixando situações sem dono. E a soma dessas falha leva à situação que aconteceu em Mossoró. A ampliação era necessária. Mas, sem estrutura, gera ruído”, avalia.