À frente da Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, o delegado Sandro Caron diz que não é possível enxergar o crime como fenômeno regional. Diante da recente escalada de poder das facções – uma delas é suspeita de ordenar ataques nas ruas no Rio Grande do Norte –, ele defende a necessidade de articular cidades, Estados e União nas ações de combate à violência.
Eleito este mês para presidir o Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública (Consesp), Caron elogia o uso de câmeras nos uniformes de policiais militares, mas reconhece que, a despeito de casos bem sucedidos, a medida ainda encontra opiniões divergentes entre secretários. “É uma avaliação muito local”, diz ele, que também já esteve à frente da pasta da Segurança no Ceará.
O secretário diz ser precoce avaliar a segurança pública no governo Lula (PT), mas vê como positiva o que descreve como uma inclinação para a diálogo neste momento inicial. “São coisas que têm de se avaliar depois de um ano de gestão, em tempo mais alongado. Mas me parece, no momento em que já se cogita a criação de uma Guarda Nacional e várias outras medidas, que estão buscando soluções diferentes”, afirma.
Caron não critica a política de liberação de armas de fogo, uma das principais bandeiras do governo Bolsonaro (PL), mas defende a ampliação do controle sobre os equipamentos, como tem sido feito pelo governo federal. O número de armas nas mãos de civis avançou significativamente e chegou a quase 3 milhões recentemente, segundo dados obtidos pelos institutos Sou da Paz e Igarapé.
Natural de Porto Alegre, o secretário tem hoje 47 anos e ingressou na Polícia Federal em 1999, onde foi Diretor de Inteligência por dois anos. Ele é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atuou na coordenação, no Estado, da Segurança da Copa do Mundo de 2014, além de ter coordenado o serviço antiterrorismo nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão:
O senhor foi eleito este mês presidente do Consesp e terá, em abril, o primeiro encontro com o conselho nessa posição. Quais são as prioridades dos Estados na área de segurança pública?
O Consesp vem há bastante tempo atuando e, desde o ano passado, se tornou um órgão consultivo do Ministério da Justiça, tem várias missões. Uma delas é a integração entre os secretários de segurança. Em torno de 3 a 4 vezes ao ano, todos nos encontramos para discutir assuntos que possam ser do interesse de todos. Obviamente aquilo que sempre está na pauta do Consesp é o combate ao crime organizado, uma realidade de todo o Brasil.
Nas reuniões, sempre são expostas essas situações e aí os Estados têm, muitas vezes, oportunidade de manifestar o que estão fazendo, colocar suas dificuldades. Essa também é uma segunda função importante: a difusão de boas práticas. Não se pode fazer política em segurança pública. Temos de agir sempre com uma visão de Estado e trabalhar integrados: União, Estados e municípios. Um dado muito concreto é que a gente tem de enfrentar, com muita força, essa questão do crime organizado e dos homicídios no País. Temos 3% da população mundial, mas, infelizmente, 20% dos homicídios no mundo são no Brasil.
Sandro Caron
Nos últimos dias, houve uma onda de ataques no RN, com suspeita de participação da facção Sindicato do Crime. A governadora Fátima Bezerra disse que a hipótese é que de isso foi motivado por medidas de segurança adotadas, mas também há a leitura que é uma resposta a condições precárias em presídios do Estado. Como avalia?
A realidade que ocorre hoje no Rio Grande do Norte é uma realidade de praticamente a maioria dos Estados. O crime vem – desde 2013, 2014 e 2015 – adquirindo essa característica do crime organizado. Uma situação importante que houve ali foi esse pronto apoio do Ministério da Justiça.
Para combater isso (o crime organizado), temos de ter polícias militares bem equipadas, bastante ostensividade, para garantir também a situação de segurança da população. Tem de haver, obviamente, resposta muito firme a isso que ocorreu. Se eventualmente alguém achar que tem de fazer algum tipo de reivindicação, que faça de forma dentro da lei – para isso, temos advogados, OAB, Defensoria Pública, Ministério Público – e não procurando infringir qualquer tipo de terror à população.
Aí acho que podemos ir um pouco mais além. Temos uma lei de antiterrorismo no Brasil, inclusive a época em que essa lei estava em discussão eu estava como Diretor de Inteligência da PF, participei de muitas reuniões em Brasília, e acho que já deveríamos começar a pensar, pelo menos também abrir o debate, se não seria o momento de fazer ajuste na tipificação do terrorismo prevista na legislação, para que possa enquadrar uma conduta dessas efetivamente como crime de terrorismo. O objetivo claro daqueles delinquentes era criar um clima de pânico na população. Eles já tentaram isso em outros Estados buscando que, em razão desse clima de pânico, o governo do Estado recue. Mas é exatamente isso que não se pode fazer.
Nos últimos dois anos, o senhor foi secretário de Segurança no Ceará, Estado vizinho do RN. Há perspectiva de os ataques que ocorrem hoje escalarem para um cenário similar ao do período entre 2017 e 2019, quando houve uma avanço em disputas de facções como PCC, Comando Vermelho, Família do Norte etc? Como estão essas disputas hoje e qual é a capacidade de resposta dos Estados?
Olhando de fora, em uma primeira análise, parece ser uma questão mais local. E uma coisa importante: a ação e a resposta firme que estão sendo dadas lá possivelmente coibem eventuais tentativas em outros locais. O Estado e a segurança pública jamais podem recuar diante da ação de delinquentes. Temos de mostrar que não cedemos à chantagem do crime, seja qual for.
Sandro Caron
O que justifica o governo do RN não conseguir, por meio de serviços de inteligência, impedir ataques antes mesmo de começarem? E de que maneira as polícias podem trabalhar de modo mais integrado, inclusive para evitar que isso ocorra?
O secretário (Francisco) Araújo disse que havia, no dia anterior (ao início dos ataques), indicativo de algum tipo de atentado. Obviamente eles procuraram saturar as áreas para tentar detectar. Mas, como não tive acesso à Inteligência, o fato é: quando uma informação dessas vem de forma muito geral, procura-se dispor da estrutura de policiamento, de reforços que tem. Mas jamais se conseguirá cobrir todos os pontos do Estado. É provável que, por conta de reforços e saturações que tenham feito em áreas mais sensíveis, eles tenham evitado ataques em determinados pontos.
Acionar a Força Nacional tem sido uma estratégia eficiente? Como avalia a estratégia de recorrer a militares para reforçar a segurança nos Estados, como as GLOs (Garantia da Lei e da Ordem)? Apoia a ideia de criar uma guarda nacional para casos desse tipo?
É importante distinguir que o reforço que o Ministério está mandando é da Força Nacional, não seriam militares pela GLO. São policiais militares de outros Estados que recebem treinamento padrão e vão para lá. Em uma situação como essa, em que houve grande crise, é natural que se peça apoio, e é importante. Tem que pedir mesmo.
A questão da GLO, já seria uma coisa a se avaliar em situações muito especiais, como já foi feito no Rio de Janeiro, uma coisa muito específica. Sobre a Guarda Nacional, confesso que não me debrucei ainda com detalhes sobre o tema, mas acho que é importante. Em um primeiro momento, sou inclinado à criação. Até mesmo para atuações como essa. Ou por exemplo: temos toda uma demanda de combater desmatamento, garimpo ilegal na Amazônia. Uma Guarda Nacional seria um grande caminho. Esses policiais que estão na Força Nacional integram PM nos Estados. Se tiver de deslocar mil policiais em uma grande crise para determinado Estado, outros vão acabar cedendo. Se tem uma Guarda Nacional, é uma forma de reforçar, sem reduzir o efetivo das polícias em outros Estados.
A gestão Lula já foi alvo de críticas na área de segurança por especialistas que cobram maior unificação e mais medidas práticas. O governo tem deixado a desejar em propostas e ações na área?
Já tivemos, em janeiro, uma primeira reunião com o ministro (da Justiça e Segurança) Flávio Dino e toda equipe do ministério, da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública). Estão fazendo diagnósticos, procurando ouvir os secretários. Quando se fala do ministério, são coisas que têm de se avaliar depois de um ano de gestão, em tempo mais alongado. Mas me parece, no momento em que já se cogita a criação de uma Guarda Nacional e várias outras medidas, que estão buscando soluções diferentes.
Temos de fazer hoje no Brasil coisas que ainda não foram feitas, temos que seguir com as boas práticas, mas fazer coisas que não foram feitas. Na maioria dos Estados, há o fenômeno do crime organizado. Mudam, conforme os Estados, os nomes dos grupos, mudam os criminosos, mas a forma de atuação de todos é muito semelhante. Não se pode mais olhar o crime como fenômeno regional. Você é secretário de um Estado, mas tem de estar de olho no crime de todo o Brasil. Porque o crime hoje não é mais local e regional. É, no mínimo, nacional, e às vezes internacional. Há grupos de crime organizado no Brasil que atuam em vários países. Já temos de pensar em redimensionar os efetivos e as estruturas das polícias civis para que se tenha um aumento gradual.
Essa forma de atuar do crime é caminho sem volta, eles vão atuar pelo crime organizado. Compete ao Estado desmantelar esses grupos, com prisões e enfraquecimento, mas temos de ter mais estrutura de investigação. A forma mais efetiva de se enfraquecer o crime organizado é com a prisão das lideranças dos grupos e com a asfixia financeira.
Sandro Caron
Em São Paulo, o secretário da Segurança, Guilherme Derrite, fala bastante sobre déficit no efetivo da Polícia Civil. Incrementar a Polícia Civil, além dessa visão interseccional dos Estados, é uma forma a médio e longo prazo de combater o crime organizado?
Essa visão que o secretário Derrite tem de São Paulo é a mesma da maioria dos secretários. Temos de melhorar muito o número de policiais civis. Contra o crime organizado, é preciso investigação. Eles têm uma forma cautelosa de agir que dificulta prisões em flagrante. Para chegar onde estão os recursos financeiros, para apreender e tirar o dinheiro ou identificar quem são as verdadeiras lideranças, demanda investigação de muito tempo. Para ter segurança para o cidadão, é preciso ter as duas polícias (Civil e Militar) fortalecidas, equipadas, motivadas.
O ministro Dino sinalizou mudança de parâmetros de rateio do Fundo Nacional de Segurança para Estados, com mais recursos para quem incentiva o desarmamento da população e usa câmeras nos uniformes de policiais. É a favor das câmeras? Como avalia a reorganização de verbas com base nessas tecnologias?
Em relação às câmeras corporais, a posição no Rio Grande do Sul é clara: estamos com licitação em andamento para contratação das câmeras, que serão usadas na Brigada Militar, que é a nossa Polícia Militar, e também na Civil. Vemos como uma medida positiva por três aspectos. primeiro, porque é uma segurança para o cidadão – no sentido de se coibir algum abuso policial –; segundo, que a câmera corporal é uma segurança para o próprio policial – havendo alguma alegação de abuso da pessoa que é presa, por exemplo, é uma forma de verificar se houve abuso ou não. Acaba também sendo uma garantia para o policial: a possibilidade de se livrar de uma imputação falsa. E terceiro: havendo localização, por exemplo, de drogas, de armas ou outros bens ilícitos, aquelas imagens também podem ser usadas para instruir um inquérito policial e, depois, um processo judicial.
Mesmo com essas vantagens apontadas pelo senhor, no conselho ainda há opiniões divergentes?
Sim, no conselho ainda existem opiniões divergentes. É uma medida relativamente recente, vários Estados ainda estão avaliando, procurando ter ideia dos custos. Não só em eventual aquisição e locação, mas também de armazenamento desses dados. Alguns Estados já tomaram a decisão, como o Rio Grande do Sul, e já estão em vias de contratar. Outros já usam (a exemplo de São Paulo, Minas e Santa Catarina), e outros ainda estão avaliando. É uma avaliação muito local. Isso faz parte.
Avalia que houve “bolsonarização”, como é apontado por parte dos analistas? Qual sua visão sobre policiais, e também sobre militares, ingressando em carreiras políticas?
A polícia sempre tem de ser técnica. No Ceará, a gente assumiu a secretaria logo após o motim de 2020. Aquilo tinha gerado uma desorganização no sistema de segurança pública. Assumimos com uma diretriz, e acho que esse objetivo foi alcançado: reorganizar o sistema de segurança pública e impingir esse caráter de que a polícia tem de ser técnica. Afirmar que houve uma “bolsonarização” sem maiores elementos é complicado para mim.
O que posso falar é da realidade do Ceará. De 2020 a 2022, quando fui secretário de Segurança no Estado, tínhamos lá um governador do PT (Camilo Santana, hoje ministro da Educação), e o que ocorre é que, em todo esse período, interagimos muito bem com o Ministério da Justiça. Embora o Estado tivesse linha política totalmente diversa do governo federal, sempre apoiamos o governo federal e eles sempre nos apoiaram nas demandas. Assim que tem de ser.
Quando falo em politização das polícias, não entro tanto no mérito da possibilidade alguém concorrer ou não a mandato eletivo, mas quero dizer que devemos ter polícias técnicas, que prendam ou deixem de prender com base em casos concretos, critérios técnicos e legais. Quem tem que mandar na polícia não é a política, é a lei. A polícia tem que se guiar pela legalidade. Quando falo que nós não podemos fazer política com segurança pública, é isso. Sabemos que, como pessoa física, eventualmente o policial vai ter uma preferência por um partido político, por uma determinada linha de pensamento.
Uma das bandeiras do governo Bolsonaro era facilitar o acesso a armas pelos civis. Neste ano, o governo Lula publicou um “revogaço” de medidas da gestão anterior e prometeu maior controle das armas em circulação, inclusive com centralização de cadastros na PF. Mais armas nas mãos de civis são hoje um problema?
Uma questão que ainda é muito ideológica. A gente terá de debater e amadurecer. Mas o fato é que, independentemente da linha que se adote, é importante que os órgãos de segurança tenham acesso ao registro de toda e qualquer arma de fogo que circule em território nacional. Não podemos conceber que uma arma esteja na casa de uma pessoa ou que circule na rua e a polícia daquele Estado não tenha acesso ao registro daquela arma. Por exemplo: temos eventualmente uma pessoa que, por autorização legal, tem um significativo número de armas em sua residência. É importante que a segurança pública tenha esse dado concreto, porque há uma situação de risco por isso, até mesmo de roubo ou furto naquele local.
Sandro Caron
Uma queixa de policiais civis de alguns Estados é que, para averiguar se alguém era CAC, era necessário enviar um pedido ao Exército para que liberassem os dados que estavam no Sigma. Só que, nesse tempo, a investigação já poderia ter sido atrasada, piorando o resultado da apuração. Isso também é um problema?
Não se pode conceber que a Polícia Militar e a Polícia Civil do Estado não tenham acesso a uma informação dessas em tempo real. Muitas vezes um dado desses é que vai definir se o policial, por exemplo, dá voz de prisão em flagrante ou não. Concordo totalmente com a queixa.
Pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que todos os tipos de violência contra mulher cresceram no último ano, incluindo o feminicídio. Qual o espaço desse tema nas discussões do conselho?
A situação do feminicídio já foi trazida em várias reuniões do Consesp. Temos, infelizmente, esse aumento em vários Estados e em outros locais do mundo. O feminicídio exige forma totalmente diversa de atuação da segurança pública. É um crime que, muitas vezes, é silencioso, porque ocorre dentro das casas. Muitas vezes a polícia só tem conhecimento de uma situação de violência doméstica depois que ela evoluiu para feminicídio.