Enquanto avança em programas de governos estaduais e municipais no Brasil, o reconhecimento facial tem gerado resistência, críticas e até proibições em cidades no exterior, como São Francisco, Baltimore e Portland. Um dos principais berços dessa tecnologia, os Estados Unidos têm discutido a questão especialmente após o crescimento do movimento Black Lives Matter, diante das dificuldades dos equipamentos em identificar pessoas não brancas, mulheres e transgêneros.
Em 2021, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, pediu a suspensão de iniciativas públicas e privadas de reconhecimento biométrico em espaços públicos ao menos até que os sistemas cumpram padrões de privacidade e proteção de dados.
O respeito à privacidade e outros direitos fundamentais também é um dos pontos chave, assim como a própria efetividade. Neste ano, contudo, algumas localidades norte-americanas voltaram atrás no banimento, como Nova Orleans, a fim de combater o aumento nas estatísticas de criminalidade.
O debate sobre biometria também tem ganhado espaço no continente europeu, tanto que a Comissão Europeia defendeu o banimento da tecnologia em vigilância em tempo real remota voltada à segurança pública. A regulação de inteligência artificial também tem sido discutida no Parlamento Europeu, cujo Painel para o Futuro da Ciência e Tecnologia (STOA, na sigla em inglês) publicou um relatório no fim de 2021 em que avalia que o reconhecimento facial representa “altos riscos” para os direitos e liberdades fundamentais de indivíduos e grupos inteiros.
Desde 2020, parte das maiores empresas de tecnologia do mundo tem anunciado restrições à operação desse tipo de software, como a Microsoft, a IBM e a Amazon, especialmente pela polícia.
Na internet, há até a difusão de acessórios e alternativas que prometem impedir ou dificultar o reconhecimento facial, como roupas e bonés, por exemplo. Esses tipos de itens foram difundidos durante uma onda de protestos em Hong Kong contra o governo chinês, em 2019, na qual manifestantes utilizaram máscaras, luzes e pinturas faciais para não serem identificados.
Na China, não só as imagens dos cidadãos são gravadas, como há indícios também da realização de rastreio de telefones, de monitoramento de compras e até de registro de conversas online. Essa situação mais extrema, que até lembra livros e filmes de ficção distópicos, tem gerado receio sobre como o vigilantismo governamental vai escalar nas próximas décadas, inclusive com tecnologias que buscam padrões comportamentais para prever e evitar uma ocorrência, como crimes e protestos.
Pesquisadores apontam motivos do avanço do reconhecimento facial no Brasil
Introduzida no País especialmente para a Copa do Mundo, as Olimpíadas e outros eventos de grande porte há quase uma década, o reconhecimento facial está em uma segunda onda de difusão nos últimos três anos. Incentivos do governo federal, o fortalecimento da segurança pública na agenda política, esforços de empresas do setor e até a pandemia da covid-19 estão entre os motivos apontados por especialistas ouvidos pelo Estadão.
Em 2019, por exemplo, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, baixou uma portaria com incentivos financeiros do Fundo Nacional de Segurança Pública para a adoção do reconhecimento facial e de outras tecnologias de inteligência artificial.
Coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes avalia que a tecnologia cresceu não apenas em alas mais conservadoras, mas também mais progressistas, que a viram como uma forma mais isenta de identificação, o que considera uma constatação falsa.
O pesquisador explica que a tecnologia começou a se difundir nos últimos três anos inicialmente por meio de governos estaduais, para uso de polícias, com a Bahia como Estado em que mais se destacou. Mais recentemente, ganhou espaço aos poucos entre prefeituras de capitais e até de cidades do interior, com forte presença de multinacionais e “mini tecs”, que revendem a tecnologia para municípios de menor porte.
O mapeamento da tecnologia no País tem enfrentado dificuldades pelo avanço nos municípios. Enquanto as prefeituras dizem que não usam para segurança pública e apenas repassam às polícias, os Estados respondem não ter um programa do tipo e utilizar as recebidas da esfera municipal. Na prática, a segurança é o principal foco desse tipo de iniciativa.
Já a pesquisadora Debora Pio, do MediaLab-UFRJ, comenta que alguns municípios aproveitaram exceções legais para aquisições na pandemia sem licitação para investir nesse tipo de tecnologia. Uma das justificativas era também de identificar aglomerações.
Reconhecimento facial divide opiniões; veja argumentos de críticos e defensores
O uso de reconhecimento facial divide opiniões no País e no exterior. Entre os pontos mais criticados, estão casos de falso positivo e a violação de direitos individuais, enquanto defensores falam que pode ser benéfico se bem utilizado e aprimorado. Projetos de leis contra esse tipo de tecnologia também tem se espalhado nos últimos anos, assim como campanhas, como a #SaiDaMinhaCara, liderada pelo Coding Rights, o MediaLab-UFRJ/Rede Lavits, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Coordenador do CESeC, Pablo Nunes argumenta que os sistemas de reconhecimento facial têm histórico nacional e internacional de falsos positivos, especialmente com pessoas negras e mulheres. “Há a ideia de que o algoritmo seja isento, mas não é.”
Nunes comenta que os Estados Unidos têm uma profusão de casos de falsos positivos ao longo de 20 anos do uso desse tipo de tecnologia. Também em 2019, por exemplo, um homem negro ficou dez dias na cadeia após ser erroneamente identificado como autor de um caso de furto e tentativa de atropelamento. “Me parece uma questão de tempo que tenhamos mais casos do mesmo tipo”, afirma.
Ele cita relatos de policiais de um projeto-piloto no Rio que relataram ter sido acionados para abordagens de pessoas que não tinham cometido crimes ou eram desaparecidas. O jornal O Globo noticiou em 2019, por exemplo, que uma mulher negra foi levada até a delegacia após ser identificada erroneamente por biometria facial como uma procurada por homicídio, que nem sequer estava mais foragida e, sim, presa há quatro anos. Em paralelo, o próprio processo de reconhecimento por fotos, tão comum em delegacias, tem passado por uma revisão jurídica e perdido espaço.
Por outro lado, o jurista Floriano de Azevedo Marques Neto avalia que todo recurso tecnológico tem aspectos positivos e negativos. Professor titular da Faculdade de Direito da USP, chama de “ludistas” as campanhas contra o reconhecimento facial no País e defende que o recurso seja aperfeiçoado para evitar a discriminação de determinados grupos, como a população negra.
“O fato da China usar para reprimir protestos não anula que a polícia da Bahia prendeu um estuprador em bloco de carnaval (por meio de reconhecimento facial)”, compara. Ele diz que as críticas devem ser direcionadas ao mau uso, e não ao recurso em si. “O que pode ser importante é rever o viés da imagem, do algoritmo, que não é menos preconceituoso do que o olhar de um agente de segurança e, nesse caso, é ajustável.”
Também crítico dessa tecnologia, o pesquisador do programa de Telecomunicações de Direitos Digitais do IDEC e advogado Luã Cruz avalia que iniciativas como a do novo programa da Prefeitura de São Paulo podem acabar judicializadas. “O ideal é que o edital não vá para a rua. Pode ser que, no futuro, seja considerado ilegal e se tenha perdido tempo e dinheiro com algo problemático.”
Ele avalia que a proposta de edital não deixa claro como será a gestão dos dados pessoais e não demonstra conhecimento técnico suficiente. “As câmeras normais de monitoramento têm certa finalidade, mas o reconhecimento facial traz uma camada de problemas que não suporta os benefícios não comprovados.”