Cerca de 150 refugiados afegãos, entre homens que viajaram sozinhos e famílias com crianças pequenas, ocupam um saguão no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Sem ter para onde ir, eles estão acampados em um espaço aberto entre um posto de atendimento a migrantes e uma agência bancária. Mesmo com visto regularizado, permanecem por lá na expectativa de receber apoio do poder público.
Alguns dos refugiados foram encaminhados recentemente para centros de acolhimento, mas o grupo, que muda de composição a todo momento, tem crescido especialmente desde agosto. Segundo a prefeitura de Guarulhos, só neste mês ao menos 250 afegãos se cadastraram no posto de atendimento a migrantes do aeroporto para receber assistência. É o maior patamar desde o início do ano.
Diante da situação, os refugiados se organizam para dividir roupa, comida, colchões e cobertores, boa parte deles obtidos por doações. Tentam ainda se manter positivos quanto à possibilidade de uma nova vida.
O Afeganistão vive em guerra desde o fim do ano passado, quando o grupo armado Taleban retomou o controle do país. O Brasil, então, passou a oferecer um visto humanitário para receber refugiados, encaminhando aqueles que não tinham recursos para centros de acolhimento.
Com o tempo, porém, as vagas nesses espaços tornaram-se insuficientes. Órgãos públicos e representantes da sociedade civil agora buscam alternativas para contornar essa situação.
Afegão relata perseguição do Taleban
Há cinco dias dormindo no aeroporto, o afegão NoorRahman Naeimi, de 35 anos, trabalhou no Exército do Afeganistão por cerca de 20 anos. Fez duas graduações, de engenharia civil e mecânica, e tinha uma boa perspectiva para o futuro. Depois que o Taleban assumiu o poder, há cerca de ano, essa realidade foi se apagando aos poucos. “Nos primeiros dois, três meses não houve problema para ninguém”, conta. “Mas depois um amigo próximo do meu pai sumiu”, continua ele, que diz que o pai também era militar.
Após investigação, a conclusão foi que o Taleban havia sumido com o amigo, que nunca mais foi encontrado. O medo era que ocorresse o mesmo com ele ou com algum familiar. “Depois disso, o Taleban foi até minha casa por duas vezes e perguntou onde eu estava, mas um de meus filhos disse que eu tinha saído”, conta o afegão, que era morador da província de Laghman. “Desde então vivi escondido com meu pai e irmão por sete meses.”
Naeimi conta que começou a falar por celular com um amigo que já estava no Brasil e procurou ajuda qualificada para correr atrás do visto humanitário. Com a documentação encaminhada, foi ao Irã com o pai, de 61 anos, e com o irmão, de 23, para fazer os procedimentos finais. Depois do aval, eles compraram passagens com um dinheiro que tinham juntado e voaram para o Brasil mesmo sem qualquer recurso extra. A esperança, agora, é ajeitar a vida por aqui.
“Não tínhamos dinheiro para trazer o resto da família, mas vamos tentar encontrar um bom emprego aqui para trazê-los”, disse ele, que é pai de seis filhos, três meninos e três meninas.
O afegão diz que se vê morando em São Paulo. “Ainda não fui do lado de fora do aeroporto, mas, aqui dentro, todos se mostram boas pessoas e nos ajudam de alguma forma. Alguns trazem comida, outros até barras de chocolate”, afirma.
NoorRahman Naeimi, refugiado
Apesar das dificuldades, Naeimi se mostra positivo quanto a uma nova vida. “Nós não temos muitos cobertores, colchões... Minha camisa está muito suja, não tem lavanderia, chuveiro. É uma situação muito ruim aqui, mas o que posso fazer? Mesmo com essa situação, depois disso eu vou agradecer ao governo brasileiro por nos dar uma chance de vir para cá e salvar nossas vidas.”
Entre a desolação e a cooperação
A reportagem do Estadão passou o início da tarde desta terça-feira, 11, no local. Por lá, encontrou um cenário de desolação entre homens, que são maioria no local, e famílias sem ter para onde ir. Ainda assim, o grau de cooperação entre os presentes, sobretudo para quebrar barreiras da língua, chama atenção.
Como o espaço é amplo, dezenas de crianças afegãs correm e brincam pelo local durante o dia, enquanto os adultos se reúnem nas cadeiras do saguão para fazer orações, usar os celulares para mandar atualizações para as famílias e para conversar sobre como os dias têm sido. Também agradecem a todo momento os voluntários que atuam no local.
Uma delas é a ativista Swany Zenobini, de 29 anos, que relembra que a ocupação por parte dos afegãos começou a ganhar força no fim de agosto. “Todo dia chega refugiado afegão e todo dia não tem vaga, não tem espaço de acolhimento”, afirma ela, que integra o coletivo Frente Afegã. “Já presenciei senhor de 103 anos dormindo no chão, mulher grávida já em trabalho de parto dormindo no chão… Agora tem até neném de seis meses aqui.”
Segundo a ativista, há dois perfis principais de refugiados no local: homens solteiros e famílias com crianças. “A gente já viu famílias até com 12 pessoas”, relembra. Em comum entre todos, a motivação para a viagem. “Eles vêm para fugir do Taleban. Sem exceção. Ou porque foram perseguidos, ou porque receberam ameaça de morte, ou porque trabalhavam em um emprego que hoje o Taleban condena.”
Swany Zenobini, voluntária
Entre as hipóteses para alta repentina, Swany acredita que, quando o visto humanitário foi emitido, em setembro do ano passado, houve um ano para que os afegãos de classe média levantassem recursos para comprar passagem aérea. Agora, a chegada de novos refugiados é tamanha que, segundo a ativista, os grupos se renovam frequentemente. “Esse grupo tem gente que está aqui há quase 10 dias. Aí eles são acolhidos, todo dia se renova.”
Enquanto Swany falava com a reportagem em determinado momento, um dos afegãos que acampavam no local chegou até ela e, por meio de uma tradução do Google Tradutor, mostrou um texto em que dizia: “Estou aqui com minha família há dez dias. Disseram que arrumariam um lugar para a gente”.
Após dizer a ele que estava ciente, a ativista disse que a ansiedade é frequente quando os afegãos passam mais dias no local, principalmente quando não conseguem se comunicar pelo inglês. “É um campo de refugiados no maior aeroporto do País.”
Posto presta apoio aos imigrantes
A prefeitura de Guarulhos atua no local por meio do Posto Avançado de Atendimento Humanizado aos Migrantes, onde os refugiados se cadastram para obter ajuda dos órgãos públicos brasileiros para obter alojamento.
Uma queixa dos voluntários, porém, é que após a pandemia o espaço deixou de funcionar 24 horas por dia – agora fecha às 19h. “É inadmissível a gente estar no meio de uma crise imigratória e o dispositivo que foi criado como política pública para funcionar em prol dos refugiados não estar funcionando à noite.”
Conforme o secretário de Desenvolvimento e Assistência Social de Guarulhos, Fábio Cavalcante, com a pandemia, houve um “decréscimo no quadro de Recursos Humanos na prefeitura inteira”.
O secretário explica que, atualmente, há quatro voos diários que chegam do Oriente Médio ao Aeroporto de Guarulhos com refugiados afegãos. “Três voos, dois da Emirates e um da Qatar (Airways), chegam antes do fechamento do posto. Com os três voos chegando, a gente faz o atendimento e encerra às 19h”, afirma.
“Mas há um movimento do posto em voltar a ser 24 horas”, continua ele, que diz que ainda não há previsão para isso. Com a Copa do Mundo, que começa no próximo mês no Catar, a previsão das companhias é aumentar os voos, o que liga um alerta ainda maior para o atendimento no aeroporto. “A gente já está fazendo um estudo sobre isso.”
O aumento da demanda de refugiados por ajuda, explica ele, ocorreu principalmente a partir de abril deste ano. “A gente teve 180 pessoas (atendidas) em julho, 200 em agosto e agora 250 em outubro, que é o ápice”, afirma Cavalcante.
O posto, explica o secretário, atendeu 1,1 mil pessoas desde abril e passou a dar maior suporte aos refugiados quando a situação se agravou. “A gente garante a segurança alimentar através de café da manhã, almoço e jantar, cobertor a gente distribui, e kit higiene.”
Segundo ele, o posto cuida do referenciamento dos refugiados no aeroporto e encaminha a lista para o governo de Estado, que é quem faz a gestão das vagas no centro. “No município, a gente tem dois acolhimentos que foram abertos para dar retaguarda a essa demanda, mas estão lotados.”
“É um movimento novo, um movimento de um grupo que não tem uma diáspora consolidada aqui no Estado de São Paulo”, afirma Maria Beatriz Nogueira, chefe do escritório de São Paulo do Acnur, comissarioado da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados.
Diante disso, ela afirma que a agência tem acompanhado a situação “com muita tensão e preocupação”, buscando apoiar principalmente serviços públicos para que possam seguir com o acolhimento.
“Aqui no posto humanizado, por exemplo, que é a porta de entrada, o primeiro ponto de informação, e que necessariamente precisa ser fortalecido para que qualquer outro encaminhamento de sucesso aconteça, o Acnur apoia com mediadores culturais, intérpretes”, afirma.
Atualmente, são três profissionais a serviço da agência que se revezam para dar suporte ao atendimento no posto. “Isso aconteceu principalmente em agosto, quando começaram a se avolumar as pessoas aqui.”
A GRU Airport, concessionária que administra o aeroporto, informou que vem acompanhando a ação para acolhimento de famílias afegãs que chegam ao Brasil, por parte da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social da Prefeitura de Guarulhos, por meio do Posto Avançado de Atendimento Humanizado, e do Estado de São Paulo.
O Ministério das Relações Exteriores (MRE) disse que assunto é acompanhado de perto desde a adoção da portaria interministerial MRE/MJSP n. 24 de 3 de setembro de 2021, que permite a concessão de visto temporário e autorização de residência para nacionais afegãos.
Desde o início da política até o último dia 7, foram autorizados 6.299 vistos. Na maior parte dos casos, a vinda ao Brasil foi intermediada por organizações da sociedade civil, que os recebem e promovem a integração local.
De acordo com informações da Secretaria de Desenvolvimento do Estado de São Paulo (SEDS), 116 afegãos foram acolhidos na Casa de Passagem Terra Nova em 2022, sendo sete nesta terça-feira.
O local faz parte dos chamados “equipamentos sociais”, rede de integração da pasta que atende refugiados junto às repúblicas. Somadas, as duas oferecem cerca de 100 vagas, e muitos dos recebidos deixam os lugares por vontade própria, fazendo apenas uma “escala” no Brasil, e podem permanecer lá por tempo indeterminado até comprovarem condições de irem a uma moradia autônoma.
A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) de São Paulo informou que 93 afegãos que estavam no aeroporto foram encaminhados ao Centro de Acolhida Especial (CAE) da Penha, aberto exclusivamente para abrigar este grupo de refugiados. /COLABOROU FABIO TARNAPOLSKY