RIO - A violência contra a adolescente vítima de estupro no Rio em 21 de maio segue na internet. Nas redes sociais, têm sido compartilhados xingamentos misóginos e acusações de conivência com o tráfico, junto a imagens e áudios atribuídos a ela. Um funk que a insulta já tem mais de 60 mil visualizações. A letra, cheia de palavrões, lista homens que a teriam violado, com referências geográficas do Morro da Barão, zona oeste do Rio, onde ocorreu o crime, e suas cercanias: "o menor do bairro 13", "o moleque da Menezes", "o moleque da Assembleia", "o menor da Baronesa".
A música se chama "Não fala da (apelido da menina), a (apelido) fortalece" e tem como subtítulo "X. (o órgão sexual feminino) de tunil (modo como foi escrita a palavra túnel)". Está no ar desde a sexta-feira passada, em diferentes montagens, ora com fotos que seriam dela, retiradas do Facebook, ora com fotos de quem a postou. A notícia do estupro surgiu na quarta-feira anterior, depois que um vídeo em que a jovem aparece nua e desacordada, com um homem manipulando seus órgãos genitais e outros debochando, foi viralizado nas redes sociais.
Usuários do YouTube, homens e mulheres, elogiaram a música e postaram comentários jocosos sobre a vítima. Um trecho diz que a menina foi violada pela "tropa da Barão" (traficantes de droga da favela). Noutro, "reclama": "tanta mina pra falar, vocês quer (sic) falar da (apelido)." Noutro, a "defende": "A (apelido) fortalece", ou seja, se relaciona sexualmente com os bandidos.
Sob a justificativa de que o inquérito corre sob sigilo de Justiça, por se tratar de uma menor, a Polícia Civil não confirmou se investiga a autoria dos vídeos e comentários. Procurado pelo Estado, o Google, dono do YouTube, não confirmou se irá tirar os vídeos do ar - a medida depende de ordem judicial.
Veja casos de violência sexual contra mulher que chocaram o Brasil e o mundo
"O YouTube possui um conjunto de regras descritas de forma clara em nossas diretrizes. Se uma pessoa se sente ofendida por algum conteúdo postado, é possível fazer uma notificação por meio da ferramenta de denúncia. Se for detectada alguma violação das políticas do produto, o vídeo pode ser removido. No Brasil, o Marco Civil da Internet determina que a remoção de conteúdo requer ordem judicial. Portanto, caso o vídeo não seja removido por infração das nossas políticas, a parte que se sentir ofendida pode buscar ordem judicial que, se deferida, será atendida no prazo legal", diz nota.
Com vivência na Justiça da Infância e Juventude, o desembargador Siro Darlan disse que quem divulgou imagens da vítima nua infringiu o artigo 240 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O artigo estabelece que "produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente" pode resultar em condenação a até oito anos de prisão. Segundo Darlan, quem postou o funk que fala do crime fez apologia ao estupro, crime previsto no Código Penal, com pena de três a seis meses de reclusão.
O magistrado afirmou que também se aplica no caso a chamada Lei do Bullying (2015), que trata de violência psicológica e intimidação, física ou virtual (sem prever punições aos autores). "A polícia tem que investigar. Essas práticas são parte da nossa cultura, que estabelece que o macho pode tudo, inclusive fazer a mulher de gato e sapato. A vítima está sendo criminalizada."
Autor do livro Batidão - uma história do funk, o jornalista Silvio Essinger lembrou que o funk é historicamente machista, assim como outros gêneros musicais, mas tem se aberto a discursos feministas, de funkeiras que reivindicam o direito de viver a sexualidade como bem entenderem. "Existem funks terríveis que retratam a mulher como objeto sexual, de forma explícita, mas o machismo não existe só no funk ou na favela".